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Aventuras de Ravi - XXVIII

Os três cabeçudos, assustados com o desmaio do menino, tentaram socorrê-lo. Os outros transeuntes, ao observarem a situação, acionaram socorro. Em minutos uma comitiva de salvamento, envolvendo dois enfermeiros verdes e um médico laranja, chegaram ao local; colocaram Ravi sobre a maca e o encaminharam ao hospital mais próximo. Como não conheciam a anatomia do visitante, o deixaram, ainda desacordado, na sala de espera. Presumiram que talvez o ar da cidade tivesse produzido alguma reação alérgica ou uma possível embolia. Ravi respirava e suas funções vitais não apresentavam comprometimento. O médico que lhe prestou os primeiros socorros, o doutor Hollande, quis saber quem era o paciente. Conversou com os irmãos para averiguar a origem do menino. Bleu, com ares de timidez, disse ser Ravi humano, sendo assim, para ele, os profissionais do hospital deveriam ter bastante zelo; a melhor solução seria tirar o menino da cidade, e caso não se recuperasse, procurar assistência em outro povoado mais afeito às condições clínicas da espécie. Hollande não deu ouvidos ao cabeçudo, mesmo sabendo se tratar de um paciente incomum, resolveu usar o procedimento padrão. Aplicou três injeções de uma mistura de líquens silvestres colhidos e processados nas terras geladas. O remédio não surtiu o efeito esperado e em pouco tempo a pele clara do menino começou a arroxear; o coma foi constatado.

Enquanto Ravi passava maus momentos no hospital, Giallo foi ao encontro do Senhor Green. Queria estabelecer as bases contratuais que, em troca dos serviços do menino, quitariam suas dívidas.

"Senhor Green, boa tarde! Tenho uma proposta irrecusável a fazer. Se vossa excelência concordar em perdoar minhas dívidas irei te ceder meu novo escravo. Ele vem do norte, trata-se de um jovem aprendiz de guerreiro; é da raça humana e como todos desse povo tem grande habilidade manual; poderá servi-lo nos afazeres domésticos, preparar suas refeições e organizar a casa. Ele não conhece nossa culinária mas tem grande facilidade em aprender."

Desconfiado, o ancião perguntou como o garoto se transformou em escravo.

"Por intermédio de meu pai. Vossa excelência conheceu os poderes mágicos dele. Pois então, meu pai, antes de nos deixar, lançou um feitiço sobre aquele povo. Deve saber que nossa casa foi herança dos guerreiros do norte, também sabe que papai controlava os guerreiros com sua alquimia. Esse menino, chamado Ravi, foi enfeitiçado mesmo antes de encontrar a vida. Ficou estabelecido que ao completar onze anos deixaria seu povoado para nos servir. O feitiço é tão forte que ele é capaz de obedecer qualquer ordem. Se concordares com meu acordo, estarei disposto a ceder os serviços da criatura à vossa excelência."

O amarelo, no caminho à residência do Senhor Green, passou no tabelionato para oficializar o contrato que escreveu em poucos minutos. Queria formalizar tudo o quanto antes, não poderia dar tempo ao azar. Diante do velho, ofereceu o documento para que o mesmo assinasse.

"Giallo, seu finório de uma figa, não caio nas suas lorotas. Cadê o menino? Quero vê-lo antes de assinar qualquer coisa."

"Ravi teve um ligeiro mal-estar, mas em breve estará à disposição. Se criar resistência ou embaraço, faço o acordo com alguém mais esperto. O seu vizinho Amertume já sinalizou interesse nos serviços do rapaz. Estaria disposto a pagar três mil coroas, quantia muito superior ao que lhe devo. Só não fechei com ele porque tenho muito apreço pelo senhor; mas se insistir nas ofensas irei reconsiderar a proposta do amável Amertume." 

"Amável Amertume? Não diga besteiras, meu vizinho é um rabugento mal amado. Duvido que ele pagaria quantia tão extravagante pelo rapaz."

"Tem razão, a quantia oferecida foi alta. Mas sabe Senhor Green, acho que Amertume está querendo te afrontar; percebi que ele tem muita disposição em retirar seu sossego. Até por isso neguei a oferta. Tenho uma relação de estima com o senhor, e mais importante do que o lucro é a amizade e confiança que nutro por ti."

Senhor Green ficou contrariado, a malevolência do devedor o irritava; porém não poderia deixar seu vizinho passar por cima dele. Isso era inaceitável. Seria melhor confiar no pelintra amarelo do que correr o risco de sofrer enxovalho.

Amertume era seu vizinho de porta. Green morava num edifício de carvalho com seis apartamentos. Durante seus longos anos na morada, o único que lhe causava desconforto era Amertume. Este reclamava de tudo, da música que ouvia, da flauta que tocava, dos amigos que recebia. Entrementes seu maior desgosto envolvia a soberba do desafeto. Green era respeitado por todos pelo tamanho da cabeça, provavelmente a maior entre os cogumelos da cidade, no entanto, durante a juventude sempre teve que conviver com a afronta de cogumelos de cores mais afortunadas. Green era verde, e, como tantos de sua cor, não teve muitas chances na vida. Cresceu no subúrbio, junto a grandes impostores e falsários. As cruezas da sua condição o levaram ao crime. Passou longa temporada na prisão. Quando deixou o cárcere, tentou se reerguer dentro da lei. Muitos anos na miséria o deixaram resistente para aproveitar um inesperado capricho da sorte. Ganhou na loteria e comprou um antiquário. Vendia e comprava de tudo; as relíquias musicais, fossem elas discos ou instrumentos, eram os artefatos que mais lhe inebriavam. Gostava de tocar flauta e tinha muitos amigos músicos; todos clientes e apreciadores da loja. Conheceu o pai dos cabeçudos no antiquário, mas, como o alquimista vivia em viagens, nunca desenvolveram verdadeiro afeto. Talvez por isso tenha construído ao redor do alquimista imagem tão mitológica. Sempre que conversavam, o pai cabeçudo lhe deixava aturdido, e aos seus olhos as palavras que ouvia tinham um poder mágico. Os boatos de bruxaria foram propagados por ele, e muitas das falácias envolvendo o falecido cabeçudo tiveram origem naquele velho antiquário. Estabilizado nos negócios adquiriu respeito e com a idade a cor verde de sua cabeça já não mais lhe perturbava, seu passado de violência e preconceitos ficou pra trás. Porém, quando Amertume virou seu vizinho, as coisas novamente mudaram. 

Amertume era roxo e sua vida seguiu pelo caminho contrário. Cheio de oportunidades na juventude não soube aproveitar. Trabalhava no almoxarifado de uma das repartições públicas. Seus companheiros de trabalho eram, em sua maioria, verdes como Green. Amertume os detestava; os achavam inferiores, mal educados, desleixados. A cor de sua cabeça e os inúmeros fracassos - era bem difícil encontrar um cogumelo roxo ocupando cargo tão desvalorizado - o fizeram amargo. Não tinha amigos, e, quem o conhecia, não gostava. Vivia em síndrome de superioridade, e seu humor era insuportável; reclamava de tudo, odiava todos.

Quando virou vizinho de porta do Senhor Green, deu vazão a todos os seus ressentimentos. Não perdia nenhuma oportunidade para afrontá-lo, insultá-lo e reclamar do menor ruído. Inúmeros processos corriam na justiça; Amertume queria ver o ancião em apuros. Sempre que discutiam, o preconceito com a cor verde saltava aos ouvidos; os dois se detestavam e as brigas discursivas chegavam nos limites da agressão física. Amertume já tinha sido condenado por injúria, e o Senhor Green por perturbar a boa convivência com sons além do permitido. A rivalidade era intensa e o ódio recíproco.  

"Me dê esse papel. Eu assino. Mas se estiveres blefando terá que me enfrentar no tribunal. Meu afeto por seu pai não será suficiente para perdoá-lo."

"Senhor Green, vossa excelência não irá se arrepender. O menino é bom de serviço; pode, inclusive, te auxiliar nas vendas do antiquário."

O acordo foi estabelecido e Giallo se comprometeu em trazer o menino o quanto antes.

FG

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