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Aventuras de Ravi - XVII

Os irmãos viviam naquela casa de alvenaria a muitos anos. Foi um presente que receberam de guerreiros do norte. Nunca souberam ao certo por que um povo tão diferente havia sido generoso com eles. Diziam as más línguas que o pai dos cabeçudos havia enfeitiçado os guerreiros, usando bálsamos dos mais diversos cheiros, para que eles se tornassem escravos. Cabeçudo pai era um grande conhecedor dos fungos e das suas propriedades mágicas, e no imaginário popular, teria habilidade, técnica e astúcia para controlar qualquer criatura.

Quando jovem foi um curandeiro de prestígio. Muitos acreditavam que ele falava com os deuses e que suas receitas eram de ordem divina. Já no fim da vida seus filhos nasceram dos descalabros do seu corpo depositados num vetusto tronco podre que ornamentava a sala. Os cabeçudos eram cogumelos, geralmente nasciam de partes em decomposição de outros cogumelos mais velhos. Todos eram assexuados, dessa forma a ideia de família, com pai, mãe e filhos, de fácil acepção para Ravi e para a maioria das criaturas do mundo da nuvem azul, para a sociedade do cogumelo carecia de sentido. Sem diferenciação de gênero, os cogumelos estabeleceram outras hierarquias. O tamanho da cabeça, por exemplo, refletia a idade e geralmente se associava ao prestígio. Cogumelos com a cabeça muito grande eram legítimos anciões. Já que a maioria dos cogumelos não vivia muito, ter o diâmetro da cabeça duas vezes maior que o próprio corpo era sinal de uma vida auspiciosa e isso ensejava respeito e admiração entre os mais jovens. Porém a forma mais natural de hierarquização entre eles envolvia a coloração das cabeças. Cada cogumelo nascia com cores específicas, e elas refletiam na personalidade. Entre os cabeçudos, certas tonalidades de cabeça eram mais valorizadas que outras; embora reconhecessem que o desenvolvimento da sociedade dependesse da colaboração de todos. Quando alguma cor se tornava escassa, geralmente o povo entrava em declínio. O violeta, e o roxo eram as cores de maior valor social, pois associadas às habilidades públicas e religiosas. Na sociedade do cogumelo, a maioria dos políticos, governadores e reis eram roxos; e entre os sacerdotes o violeta era predominante. O marrom e o verde eram as tonalidades mais numerosas e de menor prestígio. O pai cabeçudo era marrom, e durante a infância nunca foi incentivado a conhecer os bálsamos ou qualquer outra propriedade com teor curativo, tampouco lhe permitiram ingressar na escola sacerdotal, instituição que formava cogumelos para a vida religiosa. No entanto aprendeu na rua, no gueto a arte curandeirista. Com o tempo demonstrou-se um mágico, afeito a todas as substâncias medicinais, e conhecedor nato dos mitos e crenças de diversas culturas. Seu conhecimento e domínio da oratória gerou, entre seus pares mais humildes, grande reputação; alguns o consideravam bruxo. Como entendia diversos idiomas e tinha grande facilidade em relacionamentos sociais, fez amizade com criaturas de várias espécies. Dentre seus amigos mais íntimos estavam os guerreiros do norte. O intercâmbio afetivo entre o cogumelo e aquele povo fez surgir o ardiloso boato de que ele, o pai cabeçudo, usando suas técnica alquimista, os havia enfeitiçado. Ainda diziam que o feitiço tinha sido imperfeito, uma vez que a casa oferendada aos filhos era tão incomum. De alvenaria, passava muito longe de ser a habitação ideal a um cogumelo; já que eles geralmente viviam em construções de madeira podre, feitos com restos de árvores mortas; ou em casas de barro úmido, untadas por finas camadas de gosma fúngica. Os três cabeçudos, no entanto, sempre viveram naquela casa; talvez a única, habitada por cogumelos, com chaminé. Nutriam tênue lembrança do pai, e sabiam mais sobre ele através das falácias espalhadas na cidade do que pelas recordações. A morada, apesar de incomum por fora, no lado de dentro estava perfeitamente adaptada ao feitio de seus moradores. Muita gosma, troncos podres, líquens e fungos tornavam o ambiente interno agradável; e além de tudo tinham a vantagem da chaminé. A superfície rochosa das paredes permitia o cozimento de deliciosas iguarias. E se a maioria dos cogumelos cozinhavam em caldeirões dispostos no quintão das casas; os irmãos cabeçudos podiam realizar suas refeições junto ao aconchego caloroso do lar. 

Ao contrário da maior parte das criaturas, os cogumelos não se reproduziam através do vínculo afetivo e sexual. Muitos só deixavam descendentes após a morte. Nestes casos os filhos cresciam sobre o corpo do pai, e quando estavam preparados para criar autonomia, se depreendiam do substrato do acendente para, a partir de então, viver sozinhos; sem a tutela direta da autoridade familiar. Para a sobrevivência da espécie, muitos cogumelos passavam a vida preparando o terreno para que seus filhos, que dificilmente conheceriam, pudessem sobreviver. Construíam casas ideais aos pequenos cogumelos, abastecidas de condimentos e utensílios primordiais a primeira infância. Como cresciam sem pais, o vínculo com os irmãos era bastante forte, e a relação sempre se iniciava de forma horizontal; entre eles não existia qualquer hierarquia de poder. Porém, com os primeiros contatos sociais, com cogumelos mais velhos e adaptados à cultura; a relação horizontal aos poucos se enfraquecia. Como a cor das cabeças determinava a personalidade, a depender da coloração alguns cogumelos assumiam o controle da família de irmãos, estabelecendo laços de autoridade e poder. Os roxos ou violetas geralmente controlavam os demais, e a autoridade da vida privada quase sempre se estendia à vida pública. Com o florescimento das sociedades de cogumelo, este pequeno fator biológico se galvanizou, e entre eles o valor da igualdade não era inteligível. A depender da coloração, a vida de alguns era mais cômoda e nobre do que a de outros; porém o local de nascimento, a origem nada significava em termos de estruturação social; o que os desigualavam não era o berço, mas o fator biológico arbitrário de suas cabeças.

Entre os três irmãos cabeçudos, todavia, existia certa consistência solidária. Primeiro que nenhum dos três tinha a predisposição biológica e cultural do comando, nenhum era roxo ou violeta; segundo, e talvez mais importante, porque cresceram afastados da cidade e com contato menos intenso com outros de sua espécie. Quando nasceram, seu pai ainda vivia; mas antes de adquirirem autonomia, de se depreenderem do substrato que lhes davam vida, o alquimista morreu. Dessa forma a influência paterna foi quase insignificante, e a igualdade entre os três, em termos de poder e decisão, era quase genuína.

O pai cabeçudo, antes de morrer, como já tinha deixado descendentes - os filhos cresciam em parte do corpo que se soltara ainda em vida - decidiu viajar às terras vulcânicas, para que sua matéria se consumisse com as chamas. Para o velho cogumelo era a passagem mais digna para o mundo dos mortos, e ter o corpo queimado seria uma espécie de transformação. Talvez tivesse este pensamento tão incomum devido ao seu intenso contato com outras culturas. Mas entre os cogumelos, a atitude do velho alquimista era um vilipêndio de alguém sucumbido à loucura.

A longa vida do pai cabeçudo foi cheia de aventuras e aprendizados. Poucos viveram tantos anos quanto ele; no seu tempo, tinha a maior e mais proeminente cabeça. Tanto é verdade que teve o raro privilégio de ter filhos em vida, muito embora não tenha conseguido vê-los crescer. Entre os membros do seu povo, ver o desenvolvimento dos filhos dificilmente seria encarado como uma dádiva divina, mas para ele, insuflado pelos mitos de outros homens e criaturas, olhar para os filhos no desabrochar da gestação tinha um valor simbólico inestimável. Morreu e viveu de forma boa, dentro daquilo que aprendeu a amar e acreditar; rompeu paradigmas e preconceitos. Para alguém tão desprivilegiado pelo árbitro da natureza, que lhe fez marrom, quase o condenando a uma vida de miséria e ostracismo, suas andanças pelo mundo, suas amizades e prestígio entre os mais humildes foi uma grande graça de Deus.

FG          

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