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Aventuras de Ravi - X

Após os primeiros passos, Panda Colossos se deu conta que havia esquecido de encher o tonel com água. Caminhara até a cachoeira justamente para se abastecer com a límpida fonte. Ao dizer a Ravi que precisava voltar para pegar água fresca, o menino se deu conta que, amarrado à cintura do animal falante, encontrava-se uma enorme garrafa de três ou quatro metros de largura por uns cinco de comprimento. Colossos, deixando o menino na montanha, retornou. Novamente sozinho, reparou na paisagem ao redor. Uma vasta cadeia de montanhas, que se estendiam a perder de vista. As montanhas tinham pouca vegetação, eram permeadas por terras de tons alaranjados e gramíneas não muito verdes. O solo alaranjado de certa forma combinava com o céu de tonalidade semelhante. A nuvem azul, continuava lá em cima, pairando sobre ele. O contraste no alto da montanha era ainda mais belo, já que no vale o céu ainda refletia cores convencionais, idêntico ao céu da França. Bem ao longe, do seu lado esquerdo, a paisagem parecia se enegrecer, já ao lado direito o matiz era esverdeado. As cores do dossel, cheio de chispas multicoloridas nas junções do verde com o laranja e do laranja com o negro, lhe davam uma sensação de alegria. O gáudio provocado pela avalanche de cores era indescritível. A ânsia pela volta, naqueles instantes de contemplação, foi apagada pela beleza da onírica experiência visual. Já não lembrava de seu pai, e nem dos infortúnios recentes.

Quando Panda Colossos reapareceu com o tonel cheio d´água, reparou na expressão maravilhada do menino. Não quis interromper o momento da criança. Aguardou que os olhos sonhadores do pequenino dessem o sinal para que os dois seguissem viajem. Ao notar a presença do amigo, Ravi perguntou por que aquele céu era tão colorido. 

"Cada lugar tem um céu característico. Estamos nas terras alaranjadas. Alguns povos vivem aqui, mas geralmente eles se escondem em túneis, suas cidades e moradas se localizam no subsolo; são conhecidos como povo da areia. Ao norte o céu é avermelhado, lá vivem muitas criaturas diferentes; dentre elas pequeninos iguais a você. No oeste, a paisagem é negra; não conheço esta região, sei, no entanto, que lá existe um imenso castelo." - Apontou seu dedo para o lado direito, indicando a parte verde do horizonte, antes de continuar - "Lá fica minha casa, no meio da floresta. Hoje passaremos a noite na árvore que faço de morada. Amanhã seguiremos para o norte."

"Existem outros céus? Acho que o meu caminho de volta deve estar em algum horizonte azul."

"Sim, o mundo das águas é azul. Lá também nunca fui, sei que fica ao sul; mas não poderia guiá-lo até lá. Embora o céu nos indique o caminho, muitas vezes nossa visão se ilude, e sem perceber nos vemos perdidos."

"Meu pai sempre me disse para olhar além das aparências, ver aquilo que nossos olhos insistem em depreciar."

Panda Colossos olhou inquisitivo para o menino. Seus olhos negros estavam a pensar. Aquela criatura, de feições dóceis e tamanho assustador, não aparentava inteligência, tampouco insinuava sabedoria. Ravi de modo algum poderia esperar uma resposta articulada e de difícil interpretação, mas ela veio:  

"Não sei onde é sua casa, pequeno Mister Ravras. Também não conheço tudo que existe. Talvez você tenha vindo de longe, talvez você saiba o que eu nunca conseguiria entender. Se agora estamos juntos é porque o acaso assim determinou. São os eventos fortuitos que nos propulsiona ao futuro. Nossos sentidos são falhos e a realidade muda a cada instante; se a realidade muda, nosso futuro também; dessa forma não existe destino, não existe o certo e nem o errado, existe apenas o mundo e o que dele podemos aprender. Concordo com seu pai, a aparência é produto do acaso, e este está sempre a modificar; mas fugir da aparência, negando o que nos é dado, é fugir do mundo. Estamos a todo momento aprendendo, e só aprendemos pela aparência, porque apenas ela existe. Por trás da aparência não existe verdade."   

"Mas tudo foi criado com algum propósito. A água que carrega em seu tonel serve para beber. Suas pernas para caminhar. Assim funciona com todas as coisas, tudo tem sua finalidade, provavelmente você também carrega algum propósito, algum desígnio. E este propósito, este desígnio deve estar escondido para além do que possa aparentar."

"Concordo, minhas pernas me permite superar distâncias, mas isso nada me diz; eu poderia usá-la para outras coisas, eu posso cavar, derrubar árvores, saltar, tudo usando minhas pernas; a depender da situação, a depender do acaso posso modificar as funções dela. Vivo sozinho, e quase todos os povos têm medo de mim. Eles não gostam das criaturas negras; muitos inventaram histórias que julgam verdadeiras para alimentar este temor. Dizem que sou perigoso, malvado; mas não me sinto assim. Aliás, não acredito na bondade ou maldade das coisas. Quando acreditamos em alguma narrativa que separa o mundo entre coisas boas e ruins, estamos estreitando nossas possibilidades, diminuindo a vida em falsificações. Meus pais e familiares morreram, e como não conheço ninguém mais com minha aparência, tive que me isolar. Quando me aproximo de algum povo ou criatura diferente, causo pavor. Este medo gera violência, e para me defender dela me mantenho isolado. O acaso me fez sozinho, e contra ele nada posso fazer. Se um dia entendessem que dentro de mim não existe uma barbárie natural, talvez pudessem conviver com minha presença."

"Confesso que tive muito medo de você, me escondi na caverna por puro temor."

"Eu sei, já estou acostumado. Provavelmente seu povo também o incentiva a temer criaturas negras, não é verdade?"

"De onde vim, ninguém nunca ouviu falar de criaturas negras. Olhando pra você diria que é um Panda gigante, um monstro. E dos monstros sempre tive medo, não sei por quê. Sempre ouvi histórias de criaturas monstruosas malvadas, que destroem tudo e matam todos; estas histórias devem ter me incutido medo quando me deparei com sua aproximação. Ao mesmo tempo, quando vi seu rosto, tão inofensivo e fofo, minha fobia se arrefeceu."

"Acha meu rosto fofo?" - Panda Colossos sorriu; sua boca imensa tinha muitos dentes afiados; mas Ravi já não sentia nenhum temor pela aparência do amigo.

"Sim, você é meu amigo mais fofo."   

FG

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