Capítulo I.
Uma Viagem Inesperada
- E mesmo ciente das conspirações opressoras da igreja manteve-se padre. Tu és um grande cínico, meu amigo.
- Não larguei oficialmente a batina, mas não me considero padre; como disse não converto os chineses ao cristianismo. Quando tentei me desligar da igreja não consegui, e o fato de ter continuado padre foi uma imolação forçada pelos bispos senegaleses. A mim não foi concedido qualquer graça, não podia deixar a igreja depois de tudo o que aconteceu, eles precisavam me manter enclausurado no sacerdócio, para que minha atitude não despertasse suspeitas.
- Ancian, me parece que tu estas absorvido em desatinos. Eu me desliguei da igreja e não encontrei qualquer obstáculo. Por que acha que no meu caso houve um tratamento diferenciado?
- Na França as coisas acontecem de outra maneira. O governo te ofereceu um cargo na escola pública, e tenho certeza que, se insinuasse rejeição ao suposto mimo, seria forçado a aceitar o emprego. Sob a tutela estatal, não precisariam mantê-lo acorrentado ao sacerdócio; a posição pública garantiria uma vigilância ainda maior. Ou acha que durante todos estes anos ninguém seguiu seus rastros?
- De fato fui forçado, mesmo sem oferecer resistência, a aceitar o emprego na escola. E talvez estes detalhes tenham pré sugestionado seu intelecto a criar estes devaneios conspiratórios. O que não entendo é a relação dessas infames memórias com a árvore azul. Por acaso pretende encontrar uma resposta às lancinantes dúvidas que o enchem de culpa e desesperanças? Era isso que tentava insinuar?
- Gostaria apenas de voltar a ver algum laivo de pureza e inocência. E o seu filho parece saber o caminho das flores que tanto procuro.
Nesta altura da conversa, ambos estavam exaustos e alcoolizados. Foram dormir. Philippe adormeceu com a sensação de que seu amigo flertava com a insanidade; e, como bom cristão, deveria recondicionar o espírito do seu velho afeto à santidade de cristo.
Uma Viagem Inesperada
O menino
Ravi, herói dessa e de muitas outras aventuras, antes de ser levado ao Mundo da
Nuvem Azul, vivia acossado pela solidão e pelo frio de sua velha mansarda no
norte da França. Ele era filho único de Philippe, um velho e cansado
missionário que lesionava teologia a alunos secundaristas. Desde o nascimento
do filho, interrompera sua vida nômade, fixando-se naquela terra de atmosfera
álgida e inóspita; porém ainda tinha o intuito de prosseguir em suas errantes
viagens, pois acreditava na linguagem da fé cristã e no poder curativo de Deus.
Seu filho, no entanto, até então alheio às misteriosas migrações de seu pai,
ainda não vislumbrava qualquer possibilidade de deixar seu local de origem;
talvez por isso sonhava, perdido na imaginação, com lugares cálidos, paisagens
ensolaradas e reconfortantes.
Certo dia,
como se houvesse despertado de um sonho que se tornaria real, Ravi ouviu da
boca de seu pai o anúncio de uma viagem, ou melhor, de uma mudança. Dentro de
um mês iriam ao sul da China. Philippe pregaria o evangelho para aldeões
chineses, com a certeza de levar um pouco de conforto ou uma suposta cura espiritual
àquele povo tão sofrido. Ao saber da notícia o menino Ravi ficou estupefato,
mas logo passou a fazer planos dos mais fantasiosos. Achava que encontraria
elefantes gigantescos, tapetes mágicos, feiticeiros poderosos e animais
falantes. Em poucos dias traçou um imenso roteiro, que envolvia desde o estudo
do mandarim até a aquisição de objetos que julgava importantes, tais como um
afiado canivete, um chapéu de aventureiro, uma bússola, e uma corda forte e
resistente.
Chegada a viagem, Ravi não conseguia conter a euforia. Perguntava a todo
o instante ao pai se os chineses eram amigáveis e se encontrariam seres
fantásticos pelo caminho. Seu pai, desejoso de
fomentar a imaginação do filho, descrevia, com minúcias de detalhes, a
vegetação, os animais, as rochas, montanhas, rios e lagos da país. Tudo aquilo
era absorvido com vivacidade pelo menino, de forma que seria inevitável, aos
que observassem tal situação, pensar que tais desejos se frustrariam com uma
realidade decepcionante.
Durante a
longo viagem pai e filho conversaram. A curiosidade do menino, no entanto,
sempre encontrava barreiras na autoridade sacerdotal do pai.
- O que o senhor
irá ensinar aos chineses?
- Vou
fornecer a verdade, tentar ensinar o que nunca puderam aprender.
- Vai
ensinar a palavra de Deus aos chineses? Como fazia na escola?
- Sim, mas
lá tudo será diferente. Eles não conhecem a história de cristo, muitos sequer
ouviram falar dela.
- Mas eles não têm outros deuses? Talvez
saibam outras histórias tão belas quanto a de cristo.
- Talvez...,
porém nada se compara com a verdade. Se tu imaginares um lindo leão alado pode
se iludir com a impressão de que este leão é o maior e o mais vistoso de todos,
mas este sempre será um leão falso, e a beleza dele não seria comparável à do
leão verdadeiro.
- E se
existirem leões alados, e se existir uma outra verdade ainda mais incrível do
que a nossa própria imaginação poderia conceber?
- Mas a
verdade que temos, a verdade de Deus, é a mais incrível de todas; ela não
transcende só a nossa imaginação, ela transcende nosso espírito; diante dela
leões alados, dragões de multicabeças, deuses do olimpo, fantasmas do bosque ou
qualquer figura, objeto ou sensação imaginada é parca de riqueza, é oca,
miserável. Todos os mitos inventados pelo homem podem nos levar a diversos
caminhos, e alguns desses caminhos são bons, mas nenhum deles, a não ser o
caminho em cristo, nos guia verdadeiramente à vida boa. Para encontrar Deus
precisamos seguir seus passos, e isto nos conduz à ascese, uma depuração do espírito
tão recrudescente que somos levados a praticar todas as virtudes cristãs.
seguir seus
passos, e isto nos conduz à ascese, uma depuração do espírito tão recrudescente
que somos levados a praticar todas as virtudes cristãs.
- Mas Deus
determina tudo o que é bom? O que é bom pra mim, pra você, pros chineses, pros
animais e seres mágicos?
- Deus é o
grande arquiteto da realidade. Criou o céu, a terra, as montanhas, as árvores,
os animais e todas as pessoas; e para cada um forneceu uma finalidade, um
propósito. A finalidade do céu é proteger a terra; da terra gerar a vida; dos
animais servir aos homens; e dos homens louvar a Deus e sua criação. Se existissem
seres fantásticos, e talvez eles existam, certamente Deus os concedeu alguns
desígnios; pois tudo em sua obra é perfeito e acabado, tudo obedece suas leis.
- Talvez na
China encontremos alguns seres fantásticos. Se encontrar tentarei descobrir o que
Deus reservou a eles.
- Sim meu
filho, faça isso. Deus abençoará sua sabedoria.
A conversa
entre pai e filho se estendeu por horas. Ravi, sequioso em explicar a riqueza
de suas fantasias, perorou sobre seus sonhos; as paisagens, os animais, os sons
e as cores daquele mundo que era só seu. Dizia ao pai que talvez tudo aquilo
fosse real, e que em algum lugar encontraria um portal de acesso àquele feixe
imenso de sensações. Philippe, orgulhoso da sensibilidade do filho, sempre aos
afagos, insistia em apontar para o coração da criança ao se referir à passagem
secreta do mundo imaginado pelo filho.
- Tu
guardas a chave desse lugar. Ela está em você, dentro de ti. Sinta a pulsação
do seu corpo, perceba o quanto seu espírito é belo e sublime, o quão cheio de
vivacidade, de vida guarda em seu âmago. O mundo imaginado por ti é o reflexo,
uma miragem de Deus; um pedacinho dele e da sua obra. Confesso que seu pai
também tem um mundo próprio, também, como tu, sonhas; mas, ao me reconhecer
como um servo humilde, uma partícula, um ornamento de luz do nosso senhor, sei
que meu mundo não é só meu, é apenas uma nesga, um farelo da verdadeira
criação. Apesar disso, preservo meus farelos, enfeito minha imaginação,
transformo aquilo que possuo em algo ainda mais belo, isso é uma forma de
louvor, de homenagem àquele que me fez e criou. Quando olho para ti, filho;
percebo uma grande sensibilidade, um espírito criador, um artista. Não
desperdice está dádiva, não deixe seus farelos se perderem em suas mãos. Quando
descreve seu mundo, me ensina um pouquinho sobre Deus, e isso me expande a
felicidade.
Ravi às
vezes ficava confuso com os sermões do pai, no entanto adorava ouvir sua voz; o
tom professoral dele era compensado por uma suavidade deslizante, quase etérea.
Além disso o som era emoldurado por gestos tão sincrônicos, que os discursos do
pai, por mais que tivessem um conteúdo repetitivo, pedante, nunca o entediava,
pelo contrário, lhe enchia de força criadora. Por vezes imaginava seu pai como
um homem rinoceronte, o conteúdo das falas se refletia no corpo bruto, pesado e
rígido, já a forma de expressão se misturava às linhas, curvas e estruturas tão
diversificadas do animal, com o corno longilíneo e as patas roliças, o tronco
arredondado e a cabeça delgada. Também o temperamento; calmo e pacato quando
não incomodado, severo e raivoso ao pressentir perigo, assemelhava-se com o de
Philippe. Durante o voo, o pai convertido em rinoceronte e apertado na poltrona
inadequada para seu corpanzil, divertia o garoto com frases cheirosas e macias.
- Sabes
como fortalece sua criação, fortifica seus farelos?
- Não,
papai!
- Precisa
iluminar ainda mais o que é luminoso, e levar luz para os lugares de sombras.
Cuidado com os pântanos, os desertos, o frio. Cuidado, muito cuidado. Não se
perca em medos, angústias; não faça do seu pedacinho de mundo um tugúrio contra
as trevas; um refúgio aos perigos reais. Dê cores vivas aquilo que insiste em
ser cinza, colora a noite com camadas e espessuras de amor.
Com sorrisos
pai e filho a todo momento se compraziam em cumplicidade. Era prazeroso trocar
afetos com palavras e conhecimentos com o olhar. A viagem, apesar de longa, se
comprimiu num tempo de satisfatória empatia, e a exaustão de horas numa
poltrona desconfortável, principalmente para o pai rinoceronte, foi equilibrada
pela presença e companhia do outro.
No saguão do
aeroporto de Guangzhou, os dois esperaram pelas bagagens, mal sabiam que um
imenso infortúnio já havia acontecido; entre idas e vindas de infindáveis voos
comerciais, seus pertences se perderam em extravio. A essa altura o canivete
afiado, a bússola, o chapéu de aventureiro, a corda resistente, todas as roupas
e livros de Ravi, além das roupas e da coleção de textos sagrados de Philippe,
incluindo sua portentosa edição da Bíblia Sagrada, ocupavam um acalorado
depósito nas terras tropicais do Brasil. Nem eles nem os funcionários da
companhia aérea sabiam disso, de forma que após um longo período de espera,
confusos empregados, vestindo roupas asseadas com logotipos nada criativos de
empresas aéreas, informaram o problema, pedindo, sem qualquer convicção,
paciência ao pai e ao filho.
Já
resignados com a perda da bagagem, eles decidiram, antes de pegar a condução
que os levariam até a aldeia de Huangphu, local que passariam os próximos anos,
comprar alguns itens indispensáveis. Entre lojas convencionais e exóticas, se
divertiram na experimentação de vestuários engraçados aos olhos ocidentais; e
já desfeitos do amargor ocasionado pela incompetência no transporte de seus
pertences, dialogaram sobre a situação.
- Papai,
toda esta confusão me fez refletir.
- Ainda
está chateado por ter perdido suas coisas?
- Não!
Comprar novas roupas está sendo ótimo; quero me ambientar com este novo mundo,
e vestir estes panos engraçados irá me ajudar.
- Se
soubesse nem tinha me preocupado com a bagagem; estou triste apenas pelos
livros.
- Você pode
comprar outros aqui.
- Vou ter
que procurar muito pra achar uma Bíblia que eu possa ler.
- O senhor
não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados
no aeroporto.
- O senhor
não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados
no aeroporto.
- Não meu
filho. Papai, assim como qualquer homem, tem suas limitações.
- Ah...
então deve ser isso. Quem perdeu nossa bagagem deve ter algumas limitações.
Neste
momento, pai e filho se entreolharam com o semblante em risos. Ravi continuou
sua análise jocosa; Philippe, numa reviravolta de descontentamento, tentou
frear a fervura cômica do filho que, no entanto, insistia.
- Não
entendo pai, me parece que nós, os humanos, somos falhos em demasia; quando
precisamos cumprir nossas obrigações o fardo a carregar parece muito pesado.
- Muitas
vezes a aparência se confundi com desleixo. Fazemos o que é possível, e quando
algo sai do lugar precisamos retirar o melhor do que não foi bem feito. Agora
por exemplo estamos nos divertindo, e isto graças a companhia aérea, graças à
nossa bagagem extraviada.
- Graças ao
desleixo da companhia que não cumpriu sua finalidade. Talvez esteja exagerando,
já que a finalidade das companhias aéreas é levar os passageiros com segurança
ao destino, nisto ela foi divina. Esta outra parte da bagagem deve ser um
adendo desimportante.
Ravi olhou
para o pai interrogativo, tentava, um pouco aflito, ler a expressão do homem
rinoceronte. Philippe mastigava, como se ruminasse o sutil atrevimento do
filho, talvez mais uma frase ou pequena provocação despertasse a ira do animal
selvagem.
Philippe
pela primeira vez percebia que seu filho estava crescendo, não era mais, apesar
da tenra idade, apenas um menino. Aquele comentário sardônico e atrevido não
era da feição do "petit enfant", em verdade o pai sequer compreendia
a extensão daqueles dizeres, poderia ser uma interpretação curiosa,
perfeitamente adaptável à ingenuidade infantil. Sem, no entanto, querer investigar
o alcance das palavras do filho, decidiu mudar de assunto e se esforçar para
recriar a atmosfera de minutos atrás. Pegou o traje mais colorido e estampado
da prateleira da comprimida boutique que estavam e vestiu por cima de seus
andrajos convencionais; Ravi se alegrou.
Abastecidos
de vestimentas de todos os tipos e cores, caminharam apressadamente, estavam
prestes a perder a condução à aldeia. No caminho, um senhor de barba muito
branca e cabelos finos que caiam sobre os ombros segurou, à sorrelfa, os braços
do menino. Surpreendido com o repentino gesto do ancião, olhou em seus olhos em
espanto. O velho parecia cego, seus glóbulos oculares eram cinza
esbranquiçados. Quando começou a falar, o pai despertou para o que estava
acontecendo e tentou acudir o filho; em um gesto rígido e repentino
desvencilhou o braço da criança aprisionado pelo invasor, mas não conseguiu
evitar os gemidos, que mais pareciam lamúrias de morte, do estranho. Num lapso
temporal de difícil apreciação, ouviram frases tormentosas. Ravi, pouco afeito
ao mandarim, nada entendeu; porém seu pai, a julgar pela expressão do rosto,
captou as esquálidas palavras do velho.
Voltando ao
ritmo da caminhada que antecedeu o incidente, Ravi, antes mesmo de se refazer
do susto, quis entender o conteúdo daquelas estranhas palavras. Seu pai, apesar
de tentar cobrir de desimportância o ocorrido, disse aquilo que compreendeu.
Contou que o velho falava de um menino de olhos azuis que encontraria muitos
obstáculos e resistências num mundo particular, e estas aventuras simbolizariam
uma grande passagem. Para Philippe o ancião se referia metaforicamente às
transformações da juventude.
- Ele disse
também algo estranho sobre uma feiticeira, mas não consegui compreender bem. Na
verdade, aquele velho é apenas um sujeito exótico, absorvido por falsas crenças
e motivado talvez pela nossa aparência um tanto incomum para ele.
- Estranho
ele falar de um menino de olhos azuis, eu poderia jurar que aquele senhor era
cego. Mas pelo visto ele enxergava bem, provavelmente melhor do que nós dois,
papai.
- Uma
figura estranha, dessas que existem em todos os lugares. Lembra do andarilho
Pierre que vivia nos arredores da escola e adorava assustar os meninos ao final
das aulas? - Ravi assentiu com a cabeça - Então, este senhor é o Pierre chinês.
- Philippe esboçou um sorriso pouco convincente aos olhos da criança.
- Lá na aldeia
encontraremos sujeitos estranhos assim?
- Acho que
não; a maioria dos aldeões são camponeses, trabalham quase o dia todo e não
devem ter tempo para se prestar a estas fantasias oraculares.
- Então
aquele senhor era um oráculo, estava falando sobre o meu futuro?
- Falava
sobre o futuro de qualquer menino, já que a passagem para a juventude e a vida
adulta sempre é permeada por imensas aventuras.
- E a
feiticeira?
- Bobagem,
apenas bobagem.
No ônibus
que os conduziriam até a aldeia, Ravi ficou pensando na mensagem do velho.
Seria ele um sábio oráculo? Um profeta que o alertara sobre perigos vindouros?
Que mundo era aquele? Seria o mesmo dos seus sonhos? E a feiticeira? Deveria, a
partir de então, ser cauteloso, evitar perigos e seguir as orientações do pai.
Divagando
sobre o caso, suas elucubrações só foram interrompidas quando, na metade do
percurso, percebeu a incrível paisagem que o circundava. Estava numa poltrona
recostado à janela, ao seu lado Philippe cochilava. A estrada acompanhava um
imenso desfiladeiro e as atribulações da pista exortavam o motorista a seguir
em vagarosa prudência. O ritmo lento possibilitava a total apreciação do
ambiente; e nada poderia ser tão prazeroso para o menino. Quando o pai
descreveu o que encontrariam no lugar, durante o voo de Paris à Guanghzou, não
conseguiu esmiuçar nem a décima parte de toda aquela beleza; Ravi se inebriava,
suas sensações, seu espírito e ânimo se engrandeciam a cada árvore e montanha
que repentinamente se desvelavam no horizonte.
Abaixo do desfiladeiro existia uma gigantesca
floresta de vegetação espessa e frondosa. Todas as árvores tinham folhas de um
verde escuro muito vivo, comum para aquela época do ano. E, não obstante tudo o
que era visto durante quilômetros a fio aparentasse recrudescente semelhança,
para Ravi cada detalhe das montanhas e florestas era genuinamente original. A
superfície extremamente acidentada produzia uma atmosfera de impotência e
prostração. Diante do inexpugnável o menino se sentia bem; a hiperbólica
paisagem se assentava com perfeição ao seu simbólico mundo, e naqueles
calmantes momentos que permearam a viagem, chegou a acreditar que seus sonhos
eram reais e que seu mundo imaginado era apenas a projeção daquele exótico
ambiente. Porém, nada estava fora do lugar, e, por mais que forçasse a vista
para enxergar distâncias ainda não alcançadas, todos aqueles contornos
preservavam uma estância real; nada imaginado, tudo verdadeiro.
Quando já
se aproximavam do destino, depois de enfrentar o desfiladeiro, trecho mais perigoso
da viagem, uma árvore de folhas azuis, matizada por radiantes feixes de luz e
ao pé de uma sublime e violenta cachoeira, apareceu no horizonte. A imagem era
tão bela que o menino, em grande alvoroço, tentou acordar o pai que ainda
dormia. Ao despertar com os gritos da criança de "olha, rápido, rápido,
veja," fixou os olhos pra onde os dedos do filho apontavam e enxergou uma
cadeia de montanhas. Perguntou por que tamanho estardalhaço. Ravi, ao notar que
o pai não acordara a tempo de presenciar a imagem que dificilmente sairia de
sua memória, se entristeceu em lamúrias. Aborrecido pelo despertar letárgico do
homem rinoceronte, tentou, sem muito entusiasmo, descrever o que vira. Mas
aquela árvore era inefável, e nem o poeta mais acalorado daria forma às luzes
azuis que irradiavam daquele opúsculo da natureza.
Tudo tão
azul, visualmente sonoro; tudo tão belo, onírico, pleno; tudo em afasia
reconfortante, que se faz memória do para sempre. Entre outros dizeres estes e
outros mais poderiam recompor uma pequena porção de tudo aquilo que o garoto
Ravi sentia ao reconstruir a imagem da árvore azul através da lembrança que
ainda era sensação, percepção do momento quase presente. A folhagem espessa,
aparentemente macia que se dispunha singular dentro da imensa floresta de
vegetação convencional, poderia ser o reflexo de seus olhos de tons azulados.
Outros passageiros conseguiram captar tão proeminente visão? Ou aquele
espetáculo foi percebido apenas por ele? Quando o ônibus parou numa pequena
cidadezinha o menino não hesitou, foi logo perguntando ao motorista, antes de
saltar do veículo:
- Onde fica
aquela árvore de folhas azuis? Podemos chegar até ela?
- Árvore
azul? O que está dizendo? Não existem árvores azuis - replicou o confuso
motorista, em um sonoro sotaque de difícil compreensão.
- Passamos
por ela, quilômetros atrás. O senhor deve saber já que percorre estes caminhos
quase diariamente.
- Lamento
rapaz, mas nunca vi nenhuma árvore azul por estas bandas, e olha que viajo nesta
estrada a mais de vinte anos.
Se
esforçando para entender as palavras do condutor, Ravi lançou um esgar
tristonho. Percebendo o semblante do menino, tentou logo consertar o estrago
feito pela resposta decepcionante.
- Sabe
menino, já estou velho; minha visão não anda boa e ela é capaz apenas de
diferenciar a estrada da vegetação. Com a idade perdemos um pouco a
sensibilidade, e o que, aos olhos de um passageiro atento, seria de imediata
apreensão, aos meus passa despercebido. Muitas vezes comentam comigo algo que
viram pelo caminho e eu quase sempre não reconheço. Acho até que nasci apenas
para manter a atenção àquilo que não se distancia muito do meu rosto; talvez
por isso seja um bom motorista e não consiga me distrair com esta e outras
paisagens tão impressionantes. Mas se queres achar a árvore azul pergunte ao
velho Ancian, ele mora a poucos metros daqui, é topógrafo e conhece cada
detalhe dessas florestas.
Repentinamente
animado, Ravi sorriu ao motorista e agradeceu pela condução. Philippe, admirado
pela sensibilidade do senhor de aparência tão simplória, acenou com dizeres
cristão. "Que Deus abençoe sua jornada!" Por coincidência, pai e
filho, antes de seguirem a cavalo o resto do percurso até a aldeia na manhã
seguinte, dormiriam na casa de Ancian naquela noite. O topógrafo também era
missionário e ajudaria Philippe em sua empreitada. Já do lado de fora do
ônibus, disse ao menino que encontrariam Ancian, repousariam em sua casa antes
de seguir viagem.
O topógrafo
vivia num humilde casebre a poucos metros da capela. Era senegalês e conhecia
Philippe. A muitos anos atrás fundaram juntos uma vila católica ao sul do
Congo. Nesta época, Ancian já havia feito seus estudos topográficos da região chinesa,
e logo depois de deixar a vila africana, um pouco antes do próprio Philippe,
voltara aquele lugar de relevo acidentado não mais como topógrafo, mas como
missionário.
Chegaram ao
casebre e foram muito bem recebidos pelo senegalês. Um velho de pele muito
escura e barba grossa que, um pouco grisalha, dava os primeiros sinais da
idade. A construção de pedra abrigava três cômodos, uma sala, um quarto e um
banheiro. O anfitrião, após os formalismos da chegada, ajudara os inquilinos
com a bagagem, os convidando a assentar no confortável sofá feito à palha. Após
as primeiras conversas, Ravi, já não contendo a ansiedade, perguntou ao dono da
morada sobre a árvore azul e se era possível visitá-la. A princípio um pouco
contrariado e surpreendido pela pergunta do jovem rapaz, Ancian quis saber em
que ponto da estrada tinha visto a árvore. Ao ser informado que ela não se
distanciava muito da cidadezinha, deu uma resposta pouco contundente, porém
muito simbólica.
- Engraçado você ter visto esta árvore. Poucos
conseguem vê-la. Confesso que a muitos anos atrás, quando era jovem e vinha a
região pela primeira vez, avistei esta mesma árvore. Tal como você me inebriei
com tamanha beleza. Aquela visão era tão bela que dificilmente poderia passar
despercebida pelo mais desatento dos viajantes, mas aos poucos fui percebendo
que eu era o único a reconhecê-la. Com todos os moradores que conversava nenhum
dava qualquer sinal da existência da árvore. Quando iniciei meus trabalhos
topográficos tinha certeza que a encontraria; porém, após algum tempo de
insucesso na minha busca, esqueci dela; cheguei a pensar que estava sonhando.
Fiz muitos mapas da região, ao passo que poderia jurar ter percorrido cada
palmo dessa superfície; mas se tu falas que viu a mesma árvore que vi a tantos anos
atrás é porque minha busca foi incompleta e certamente ela deve estar em algum
lugar de difícil acesso. Se teu pai permitires, amanhã antes do sol raiar,
podemos, com a ajuda dos meus infindáveis mapas, procurá-la.
Philippe em
protesto, indagou:
- Mas
amanhã iremos à aldeia, e ao que parece você já combinou com alguns citadinos
de seguir viagem conosco para iniciarmos a construção do pequeno templo. Acho
que esta aventura terá que ser adiada, coisas mais importantes precisam ser
feitas.
- Caro
amigo, procurar esta árvore não é um mero passatempo. Amanhã sairemos cedo e se
até o final da tarde nada encontrarmos, poderemos adiar as buscas para outro
momento. Um dia de atraso é perfeitamente aceitável. Acho, inclusive, que seu
garoto ficaria assaz descontente se ao menos amanhã não tentarmos achá-la.
O homem
rinoceronte, já não mais contendo sua exasperação de ânimo, falou não em tom
professoral e suave, mas ríspido, quase furioso:
- Por
favor, perder um dia para procurar algo que não existe é um grande sacrilégio.
Ao invés de alimentar as fantasias do meu filho, deveria acalentar seu coração
com a verdade.
Ravi olhou
raivoso para pai. Até então nunca pensaria ouvir palavras tão severas e brutas
daqueles lábios.
- Meu
amigo, não são fantasias; eu também vi a árvore, não estava a mentir. Acha que
poderia macular o nobre espírito do seu filho inventando e fomentando
fantasias? Somos homens de Deus, e foi ele que colocou esta árvore no nosso
caminho.
Philippe,
ainda insatisfeito, se recompôs e, concordando com a ideia de procurarem a
árvore, pediu desculpas ao filho. O homem rinoceronte novamente ruminava sob o
olhar desencantado da criança.
***
Insatisfeito
com o pai, e já nutrindo uma forte empatia pelo velho senegalês, Ravi foi para
o quarto se deitar; precisava se recompor para a busca do dia seguinte. Os dois
homens, enquanto o menino dormia, continuaram sobre o sofá de palha
conversando. Bebiam saque e vinho, e a medida que o corpo de ambos esquentava,
a mente se amoldava numa construção de linguagem mais pura e sem barreiras.
Conversaram sobre os tristes incidentes de anos atrás no sul do Congo, quando
os dois nada fizeram para impedir um monstruoso massacre, promovido com o apoio
do governo central do país contra congoleses já convertidos ao catolicismo.
- Eu me
lembro das chamas e dos gritos de horror. Quando tudo se incendiava e nós
abrigávamos a família Bongolê no interior da capela, não tivemos a coragem de
Deus para evitar nem uma nódoa de tragédia - dizia Ancian com lágrimas aos
olhos.
- Tudo
aquilo que aconteceu não estava ao nosso alcance, fomos surpreendidos pela
milícia do governo e tivemos sorte em sobreviver. Eles destruíram tudo menos a
capela, e eu nunca entendi por que eles preservaram a humilde morada de Deus;
certamente não foi por medo de uma intervenção dos céus - Philippe suspirou em
angústia, aos poucos retomava as lembranças pungentes daquele momento nada
misericordioso. Pálido e com o olhar em trevas, continuou - Quando eles
invadiram a capela e espancaram pai e mãe Bongolê na frente da filha, senti uma
fúria impotente, e depois - não conseguiu continuar, se engasgava em
ressentimentos.
Os dois, olhando para o vazio, pareciam
vivenciar mentalmente toda a perfídia do passado. Naquela noite ignominiosa um
comboio militar invadiu a vila católica fundada por eles. A mais de dois anos
trabalhavam ao lado de trinta famílias camponesas, produzindo inhame, banana,
mandioca e sorgo. Além do cultivo, disseminavam a cultura cristã não só na
aldeia como nos arredores. Durante aquele tempo sofreram algumas intervenções e
retaliações do governo instituído, principalmente o confisco de mercadorias,
mas nada que pudesse ameaçar a existência da comunidade e nem limitar o alcance
dos seus projetos cristãos; tampouco poderiam imaginar qualquer violência
contra eles e os aldeões. No entanto, no final da primavera foram surpreendidos
pela invasão de quinze homens fortemente armados. Eles destruíram todas as
casas, mataram alguns camponeses que ofereceram resistência e prenderam os
demais; diziam estar seguindo ordens do ministro de Estado. Quando entraram na
capela e perceberam que uma família de pai, mãe e filha estava escondida, riram
em laivos de revolta insinuando um castigo iminente. E de fato a punição veio
de forma irascível. Dois deles espancaram o homem e a mulher e um terceiro
sobre o altar de cristo violentou a menina na frente de todos. Philippe e
Ancian nada fizeram, assistiram toda a barbárie sem reação. O miliciano que
parecia liderar o grupo, quando viu seus comandados praticando os atos infames,
atirou na menina antes de agredir o homem que a violentava. Com sangue nas mãos
esbofeteou Ancian e ameaçou Philippe com o revólver. Pai e mãe Bongolê, ao
presenciarem a execução da própria filha, já desesperados pela situação, tentaram,
de todas as formas e com a toda a fúria de seus corpos, intervir; acabaram
mortos pelos homens que os seguravam. Após a desforra aviltante, os
missionários foram abandonados sozinhos na vila destruída.
Mais tarde
Ancian, a pedido do governo senegalês, foi deportado para seu país de origem;
Philippe continuou no Congo protegido pela embaixada francesa. Acompanhou o
processo que julgou os excessos cometidos pelos militares no trágico incidente.
Mesmo recebendo muitas ameaças, foi a testemunha principal do julgamento. O
governo se eximiu de culpa, condenando os autores diretos do massacre. A
punição, no entanto, acabou sendo bastante branda comparada aos crimes
cometidos; e tanto Ancian quanto Philippe nunca mais se recuperaram do trauma.
O senegalês voltou para a China, lugar que se sentia mais seguro e livre das
plangentes sensações que atormentavam sua memória, já o pai de Ravi começou a
lesionar teologia na escola de sua cidade natal, onde teve uma vida pacata ao
lado de sua falecida esposa e longe das tormentas do passado.
- Pensei
que após o ocorrido tu irias perder a fé. Fiquei surpreso quando soube de sua
vinda para cá depois de tão pouco tempo da tragédia - disse Philippe de volta
ao presente.
- Naquele
tempo pensei em largar a batina, estava revoltado com Deus. Todo o ocorrido foi
demasiadamente pesado, e minha fé não era capaz de sustentar insidiosas
lembranças. Abandonei Deus e a vida, entrei num estado de melancolia profunda e
nada fiz naqueles meses que sucederam o massacre. Depois, já sem fé, decidi
comunicar, ao cardeal de Dakar, minha decisão de abandonar a igreja; e quando
fiz isso as lembranças do Congo voltaram a ficar insuportáveis, e eu sabia que
ao longo do demorado processo de desligamento elas iriam perdurar
violentamente. O cardeal Sagna, no entanto, me fez uma proposta; ao invés de
largar a batina eu poderia me mudar pra cá, lugar que sempre nutri inestimável
carinho. Aceitei a proposta, e desde então vivo aqui. De certa forma recuperei
minha fé, porém não aceito mais os dogmas cristãos; não lesiono teologia,
tampouco compartilho com os chineses a autoridade cega da mensagem de cristo.
Ensino a eles a fomentar o que cada um tem de bom. Aliás, quando fores a capela
perceberá que nada existe em homenagem ao Deus das escrituras, lá é apenas uma
simples construção que incentiva os homens a entrar em contado com o deus que
cada um reserva dentro de si.
- Neste
tempo todo não ensinou nada a este povo? Nenhuma palavra de cristo, nenhuma
mensagem cristã?
- Ensino e
tento despertar o lado bom que existe em todos nós. Acho que este foi o intuito
de cristo, sua verdadeira missão. Nunca pretendi subverter a cultura chinesa
com qualquer moralismo apegado cegamente ao evangelho.
- Perdeste
a fé, meu caro Ancian, perdeste a fé! - o tom da fala transmitia desesperança e
resignação, e os olhos de Philippe, após escutar o velho amigo, estavam soltos,
não visuais, perdidos, inertes, quase mortos.
- Não! Sou
um homem de Deus, e como tal incuto conforto e compaixão naqueles que se
enveredam num caminho de sombras. Os chineses não precisam da mitologia cristã
para o exercício de virtudes. A partir de suas fábulas podemos não só ensinar o
que é justo, bom e belo; como também aprender um pouco mais sobre nós mesmos e
sobre o mundo. Esta cultura, este povo, assim como todas as outras culturas e
todos os outros povos nos têm a oferece uma nova forma de enxergar a vida e de
vivê-la de maneira boa.
- Vim a
China para ajudar um velho amigo na tarefa evangelizadora; porém percebo que
terei de fazer, começando do zero, tudo sozinho. E já não sei mais se posso
chamá-lo de amigo. Tu te transformaste em outra pessoa, não é o jovem Ancian
que nutria tanto afeto. Somos tão diferentes agora, pensamos a realidade e a fé
de forma tão distintas que não é possível mais compartilhar com você a amizade.
- Não se
engane, o que nos fez amigo não foi a crença cristã, o que nos fez amigo foi a
troca sem amarras, sem censura de afeto. Lembra de quando nos conhecemos? Você
debochava do meu sotaque e eu motejava de sua pele clara. Em nossa primeira
caminhada juntos, sob um sol escaldante, brinquei com a vermelhidão repentina
de sua face. Você, mesmo com dor e diante de um desconhecido que zombava do seu
incômodo, me agradeceu pelos momentos divertidos de prosa e descontração.
Ficamos amigos naquele mesmo dia, não pela vivência cristã que nos igualava,
mas sim por aquilo que nos tornava diferentes. Nossa empatia foi galvanizada
pelas nossas díspares experiências de vida.
Um pouco
convencido pelas palavras do amigo, transmitiu um doce olhar e comentou:
- Você, com
seu humor jocoso e sotaque atrevido, era o que faltava para a minha severidade
aparvalhada de homem frio.
- E tu eras
o frescor necessário à minha linguagem incandescente.
No período
em que Philippe ficou sob a tutela da embaixada francesa no Congo, se sentiu
impotente. Diante de tamanha tragédia e ciente da repercussão negativa do
incidente sobre a cúpula do governo congolês, sabia que uma atmosfera de
injustiça permearia o julgamento dos culpados. O que não sabia era que a
própria França tinha interesse em encobrir o caso. As ligações econômicas do
seu país com a nação africana não poderiam ser abaladas pelo contratempo que
vitimou dezenas de famílias insignificantes à política cínica e não humanitária
do Estado europeu. Eles precisavam, a todo custo, atenuar as consequências do
massacre, e para tanto obrigaram os diplomatas e funcionários da região a
orientar o missionário durante seu testemunho no processo. Era de interesse de
ambos os governos a extinção de todas as comunidades voltadas à agricultura
familiar e de subsistência. Planejavam intensificar o cultivo predatório da
monocultura latifundiária, para que a chefia governamental do Congo se
enriquecesse com a exportação de produtos primários, e para que o governo francês
tivesse acesso a matérias primas de baixo custo. Uma transição de poder
motivada pela barbárie dos eventos catastróficos poderia abalar as relações
mercantis entre os dois países, e isto não era aceitável.
Findado o
processo, Philippe retornou a França e foi, quase coercitivamente, alocado à
uma cidadezinha próxima a Paris, recebendo o cargo de professor de teologia
numa escola secundarista. Por lá viveu alheio às implicações macroeconômicas
ligadas à tragédia. Sem saber, era vigiado de perto por agentes estatais que
fiscalizavam o conteúdo de suas aulas, palestras e textos publicados. A culpa e
o sentimento de injustiça o acompanharam por longa data, mas, ao contrário do
amigo senegalês, manteve-se circunspecto em relação à Deus e à fé cristã. Sentia
que algo maior estava reservado para àquelas singelas famílias de camponeses
que transmitira a verdadeira linguagem da fé; e se sentia remorso pela inação
diante da violência contra o povo que aprendera a amar, de alguma forma
acalentava suas angústias a partir da espiritualidade em cristo.
Impedido de
continuar suas migrações pelo mundo, levando a mensagem cristã às mais diversas
culturas, decidiu se desligar da Igreja. Um forte sentimento, que julgava ser
divino, o incutia a um estilo de vida diferente. Para ele era da vontade de
Deus que largasse a batina para constituir uma família.
Conheceu
sua esposa no colégio. Ela era professora de literatura, e, tal como a maioria
das pessoas de sua geração, não tinha fé, tampouco acreditava em Deus. A
diferença espiritual que os separavam, de alguma forma incendiou a fogueira
interna da paixão. Os dois se apaixonaram. Philippe, que ainda não conhecia a
sensação do amor romântico, pensava que o sentimento era a mais etérea
recompensa dos céus; sua mulher, já afeita aos prazeres da carne, acreditava
que conseguiria demonstrar ao marido a dissonância entre Deus e a convulsão
amorosa do corpo. Mesmo renitentes em suas originárias crenças, mantiveram um
relacionamento estável, que seguiu o ritmo de uma canção barroca, sincronizada
entre as trevas e a luz.
Ravi nasceu
em meio a muitas alegrias e projetos; ambos continuavam na escola, seguindo
suas vidas comuns. Porém, as atribulações do cotidiano afastaram pai e mãe. Se
separaram pouco depois da criança completar um ano. A mulher ficou com o filho.
Durante este período Philippe andou angustiado, preso à sensação de fracasso;
julgava que sua união com a antiga esposa deveria ser eterna.
A mãe de
Ravi faleceu sob circunstâncias misteriosas. Na ocasião o menino passava o fim
de semana com o pai. A mulher foi encontrada morta no banheiro de sua casa; a
perícia constatou morte súbita devido a um aneurisma cerebral que a mulher não
conhecia ou ao menos não revelara a ninguém.
Esta nova
tragédia modificou a vida de pai e filho. A criança, de apenas dois anos, ainda
era muito pequena para expressar conscientemente a perda; no entanto a
separação repentina da mãe abalara por completo seu desenvolvimento e formas de
se relacionar com o mundo. Ravi se aproximou, a cada nova etapa da infância, a
um caminho de fantasias e sensibilidades. Seu pai, diante da necessidade de
acolher o filho, não teve muito tempo para experienciar a tristeza; fez de tudo
para mantê-lo afastado das crueldades da vida, sempre mostrando ao menino a beleza
de todas as coisas. Dizia à criança que sua mãe estava no céu sempre a
protegê-lo; e que, se ele quisesse conversar com ela, bastaria ouvir a voz que
perpassava seu coração.
Escondendo
o seu passado de Ravi, viveu anos pacatos ao lado do filho e lecionando na
escola. Meses antes da viagem para China e sem se relacionar com qualquer outra
mulher, decidiu voltar a igreja. Sua boa relação com o arcebispo de Paris fez
com que fosse readmitido na congregação católica. Alguns setores da instituição
cristã, ligadas ao antigo governo francês, temiam sua volta ao celibato,
pretendiam manter a antiga tragédia do Congo encoberta por diversos panos;
decidiram enviá-lo a China para mantê-lo bem longe dos holofotes. Juntá-lo a
Ancian, no isolamento desertor do continente asiático, não incomodava os
membros da igreja; afinal, numa inócua vila chinesa, Philippe e o padre
senegalês, mesmo juntos, seriam inofensivos.
Na conversa
entre os dois missionários regadas a bom vinho e resguardada pelo sonho da
criança que dormia no quarto sem nada ouvir, Philippe contou ao velho amigo, em
verdadeira cumplicidade, parte do seu passado recente. Um pouco antes de
dormir, dialogaram sobre a aventura que enfrentariam no dia seguinte.
- Quando
disse ao meu filho que também havia visto a árvore de folhagem azul, pensava
estar fomentando sua imaginação, ou, no mínimo, protegendo-o das cruezas do
mundo. Como tu mesmo disseste, ninguém nunca comentou sobre esta peculiar
espécie de vegetação, ninguém nunca a viu; ninguém nunca admitiu sua
existência. Não entendo suas intenções, tampouco posso acreditar que tiveste a
mesma ilusão visual do meu menino.
- Quando
seu filho descreveu a árvore, de folhas azuis espessas e ao lado de uma
portentosa cachoeira, foi como se ele tivesse resgatado meu passado. Tive a
mesma visão, e na época não julgava estar louco. Sei que pode parecer estranho,
inacreditável; mas amanhã, quando partirmos em nossa busca, procurarei pela
árvore com a mesma paixão da criança. Aliás, minha intuição diz que
encontraremos esta árvore e que ela nos trará conforto e respostas que tanto eu
quanto você procuramos.
- Supondo
que a árvore exista e que nós a encontraremos, qual resposta ela poderá nos
fornecer? O que faremos com uma mera experiência visual de algo que a princípio
tu e meu filho supõem ser bela? No máximo faremos uma descoberta biológica,
encontraremos uma espécie nova de vegetação; porém, como não somos botânicos ou
biólogos, de nada servirá nossa empreitada.
- Acho que
a fé cristã te fez cético. Somos adultos e como tais carecemos de inocência.
Temos nossos traumas, réprobas lembranças; talvez um desazo da consciência que
insiste em retirar de nós a pulsão criadora, o contado, o sentimento e o
sentido que transcende a realidade. Nem tudo que existe se oferece, muitas
vezes vivemos alheio ao que se dispõe do nosso lado. Seu filho, no entanto,
ainda guarda dentro de si a pureza que o permite ver além das aparências. Ele
nos conduzirá até a árvore, e diante dela recuperaremos a potência, o frêmito
da vida, os auspícios da paz de espírito - olhou para Philippe que parecia
confuso, não entendendo ao certo aquelas insinuações; a fisionomia do amigo
modificou o tom e o teor da sua prosa - O que fizemos no Congo foi diabólico,
subvertemos a cultura de dezenas de camponeses e em troca eles receberam a
morte. Nós éramos os instrumentos necessários para limpar o terreno antes do
massacre. Sem saber, fomos usados pela igreja, pela França e pelos políticos
congoleses. Todos aqueles milicianos que promoveram o massacre estavam a mando
do governo central, tenho certeza que sabe disso. No processo, no qual
participou e ajudou na farsa, condenaram os homens que participaram diretamente
das atrocidades, mas no fim associaram o grupo a uma organização terrorista que
intentava eliminar comunidades cristãs. Este grupo nunca existiu, todos aqueles
homens eram mercenários contratados pelo ministro de guerra. A verdade foi
camuflada, e as relações do governo com o massacre ficou escondida. Massacres
semelhantes foram feitos ao longo desses anos, e associaram todos eles a
divergências religiosas entre grupos paramilitares e camponeses. Comunidades
islâmicas fundadas nas últimas décadas também foram alvo dos achaques violentos
dessa falsificação política, e não me assustaria nem um pouco pensar que uma
suposta cúpula do islamismo instrumentaliza fieis para a promoção de interesses
econômicos escusos. Hoje no Congo praticamente inexiste comunidades agrícolas
voltadas para o cultivo não predatório da terra; a maior parte dos camponeses
trabalha em grandes latifúndios, vivendo uma vida miserável e em condições
subumanas. Ter consciência da minha participação neste jogo espúrio de relações
econômicas, lacera qualquer condolência que por ventura julgava ter pela nossa
corrompida instituição cristã.
- Não posso
acreditar nesta sua revelação conspiratória. Sei que o governo participou do
massacre e que, ao longo do processo, uma imensa atmosfera de injustiça
impossibilitou a descoberta da verdade. Em vários momentos me senti angustiado
por ter corroborado com tamanha farsa, mas pensar que tudo o que aconteceu
tinha sido planejado desde o início, que nós e outros missionários fomos
enviados para a África com o objetivo diabólico devidamente arquitetado pela
igreja e pelos governos da França e do Congo, não passa de uma fantasia
espetaculosa de suas interpolações traumáticas.
- Estou
apenas simplificando uma história bastante complexa. Não sei de fato de que
forma a igreja me instrumentalizou, mas não posso permitir que algo semelhante
se repita sob a tutela de meus olhos.
- E mesmo ciente das conspirações opressoras da igreja manteve-se padre. Tu és um grande cínico, meu amigo.
- Não larguei oficialmente a batina, mas não me considero padre; como disse não converto os chineses ao cristianismo. Quando tentei me desligar da igreja não consegui, e o fato de ter continuado padre foi uma imolação forçada pelos bispos senegaleses. A mim não foi concedido qualquer graça, não podia deixar a igreja depois de tudo o que aconteceu, eles precisavam me manter enclausurado no sacerdócio, para que minha atitude não despertasse suspeitas.
- Ancian, me parece que tu estas absorvido em desatinos. Eu me desliguei da igreja e não encontrei qualquer obstáculo. Por que acha que no meu caso houve um tratamento diferenciado?
- Na França as coisas acontecem de outra maneira. O governo te ofereceu um cargo na escola pública, e tenho certeza que, se insinuasse rejeição ao suposto mimo, seria forçado a aceitar o emprego. Sob a tutela estatal, não precisariam mantê-lo acorrentado ao sacerdócio; a posição pública garantiria uma vigilância ainda maior. Ou acha que durante todos estes anos ninguém seguiu seus rastros?
- De fato fui forçado, mesmo sem oferecer resistência, a aceitar o emprego na escola. E talvez estes detalhes tenham pré sugestionado seu intelecto a criar estes devaneios conspiratórios. O que não entendo é a relação dessas infames memórias com a árvore azul. Por acaso pretende encontrar uma resposta às lancinantes dúvidas que o enchem de culpa e desesperanças? Era isso que tentava insinuar?
- Gostaria apenas de voltar a ver algum laivo de pureza e inocência. E o seu filho parece saber o caminho das flores que tanto procuro.
Nesta altura da conversa, ambos estavam exaustos e alcoolizados. Foram dormir. Philippe adormeceu com a sensação de que seu amigo flertava com a insanidade; e, como bom cristão, deveria recondicionar o espírito do seu velho afeto à santidade de cristo.
***
Acordaram
bem cedo, antes do nascer do sol. Ravi estava super agitado e seus movimentos
denunciavam grande ansiedade. Ancian calmamente se preparava para jornada e
Philippe, com o semblante em resmungos, não conseguia disfarçar o fastio, que
poderia ser tanto pela ressaca da noite anterior, quanto pelo desânimo de se
aventurar numa busca sem sentido. Enquanto pai e filho se arrumavam no quarto,
o velho topógrafo preparava torradas com geleia de broto de bambu, comida
tipicamente chinesa que ao longo dos anos aprendera a apreciar. Após a
refeição, os três deixaram a mansarda em direção ao estábulo. Três cavalos,
prontos para a cavalgada, despunham-se inertes, aguardando o primeiro comando.
Um dos cavalos era negro, os outros dois cinzas. O cavalo negro chamava-se
Colossos, os cinzas não tinham nome. Diante dos cavalos, Philippe desautorizou
o menino de seguir viagem sozinho, achava-o muito jovem para controlar um
animal tão grande. Ancian, sem querer abalar a autoridade paterna, comentou:
- Venha
comigo, cavalgaremos com o Colossos. Ele é um cavalo dócil e muito sensível; é
capaz de adivinhar o caminho certo, mesmo quando nos sentimos perdidos. Acho
que se você mentalizar a figura da árvore azul que avistou ontem, Colossos
saberá nos guiar até ela - Ravi olhou para o pai como se esperasse algum sinal
de autorização. Ao consentir com a cabeça, ajudou o menino a subir no cavalo;
Ancian já estava sobre o animal.
- E você
papai, vai com qual cavalo, o mais claro ou o mais escuro?
Philippe,
achou estranha a pergunta do filho, não conseguia discernir qual dos outros
dois era mais escuro. Sem dizer palavra, montou sobre o que se encontrava mais
perto do seu corpo.
- Como ele
chama? - Ravi perguntou a Ancian.
- Estes
outros dois não têm nome. Colossos foi batizado com o nome do pai. Quando eu
era jovem, o pai Colossos me ajudou muito na feição desses mapas que carrego na
bolsa. Juntos identificamos a maior parte da superfície dessas terras. Ele
também era um lindo cavalo negro - acariciou a crina do animal, antes de
prosseguir - a sensibilidade do nosso colega foi herança do pai, e como os dois
eram tão semelhantes, tanto em aparência quanto em comportamento, decidi manter
o nome.
- Ah... mas
os outros dois deveriam ter nome, tudo deve ter nome. Por que não escolhemos um
nome para o cavalo de papai? Já que seguiremos viajem juntos é importante batizá-lo.
Os dois
adultos concordaram, sugerindo que a escolha caberia ao menino.
- Vamos
chamá-lo de Mago. Mestre Mago.
Com as
primeiras nesgas de sol, deixaram a cidadezinha em direção à floresta. Colossos
liderava o pequeno comboio. Cavalgavam com lentidão, se orientando pela bússola
do velho topógrafo. Tudo indicava que a árvore azul se encontrava a leste de
onde estavam. A primeira hora de jornada foi divertida; Ancian contou diversas
histórias da região, lendas e mitos que compunham a cultura local. Ravi atento
às palavras do senegalês e ao mesmo tempo de olho na exuberante paisagem que
percorriam, absorvia tudo com muita energia. As imensas moitas de bambu e as
curiosas árvores dispostas ao seu maravilhado olhar o ajudavam a compor os
cenários das narrativas poéticas que ouvia dos lábios do seu companheiro de
viagem. Philippe seguia mais calado, fazendo, entre longos intervalos de tempo,
pequenos comentários sem vigor ou entusiasmo.
Ao sol
a pino, pararam para descansar. Estavam na soleira do rio Verde. Deixaram os
animais beberem água e pastarem um pouco, enquanto comiam algumas frutas e o
guisado de arroz preparado exclusivamente para a viagem.
- Tenho a
impressão que já nos distanciamos em demasia da cidade. Não encontramos nada, e
pelo visto este rio não aparenta desembocar numa cachoeira mais pra frente.
Talvez seja melhor voltarmos - disse o homem rinoceronte já tentando
identificar os primeiros sinais de decepção nos olhos do seu velho amigo.
- De forma
alguma. Conheço muito bem este rio. Quando chove ao norte seu volume aumenta
muito. As águas cobrem metros de superfície que circundam seu leito perene.
Muito dessa água segue por outros vãos e caminhos. Provavelmente a cachoeira
vista pelo seu filho é oriunda das inundações ocasionadas pela chuva. Não
encontraremos a árvore azul se seguirmos o rio; se fosse tão fácil assim, todos
na região a conheceriam - apontou para a terra que parecia bastante úmida e
continuou - olhe para o chão, está tudo encharcado; é bem provável que ontem o
rio inundou.
Pegou seus
mapas e após detalhada observação percebeu que precisavam cruzar o rio e seguir
para o sul. Juntaram as coisas, montaram nos cavalos e seguiram viagem. O rio
estava raso, sem correnteza; os cavalos o atravessaram com facilidade.
Philippe, mesmo desconhecendo os fenômenos naturais e climáticos, achava
impossível um rio tão raso após uma enchente no dia anterior. Apesar da dúvida
e do descontentamento, nada comentou.
Um pouco
mais a frente, encontraram um panda que, sem perceber a presença dos invasores,
se alimentava, aparentando prazer, bambus acochambrados ao seu redor. Ravi
ficou encantado com a delicadeza do animal. Aquele ursinho tão fofo parecia ser
um sinal de que logo encontrariam a árvore azul. Ainda preso à contemplação da
criatura, o menino ouviu as palavras em tom pesaroso do velho topógrafo.
- Temos que
retornar. Olhem para o norte, as nuvens se enegreceram. Provavelmente chove, e
em poucos minutos a enxurrada irá nos impedir de atravessar o rio.
Olharam
para as nuvens e perceberam os repentinos tons sombrios que matizavam seus
contornos. A cada segundo elas ficavam mais plúmbeas, e o próprio panda, que
instante atrás aparentava tranquilidade, se inquietou a procura de abrigo.
Deram meia volta. Decepcionado, Ravi nem pôde protestar.
De volta ao
leito do rio, Colossos, que ainda seguia à frente de Mestre Mago, empacou. Por
algum motivo recusava a transpor as águas. Philippe, açoitando a lombar do seu
cavalo, ultrapassou os companheiros de viagem e iniciou a travessia. Ainda era
cedo, porém o dia já aparentava sinais de escuridão; as nuvens negras filtravam
a luminosidade e dava um aspecto tenebroso ao ambiente. O rio estava mais
profundo. Na metade do percurso, Mestre Mago se desesperou, já não conseguia
mais vencer a correnteza. Aos gritos, Philippe tentava incentivar o animal a
seguir a travessia, mas aos poucos o rio enchia e a violência das águas se
acentuava. Uma camada espessa de corredeira afogou o cavalo, inçando Philippe
ao interior do rio. Num gesto repentino, Ancian saltou de Colossos e se jogou
às águas, com a expectativa de salvar o amigo, que a esta altura já era transportado
pela correnteza. Ravi, confrangido, observava o infortúnio do pai sem esboçar
reação. Viu os adultos serem levados pelo rio, sem qualquer indício de que eles
conseguiriam vencer a hostilidade inesperada da natureza.
Ainda
petrificado com o incidente, o menino percebeu que Colossos se distanciava da
margem do rio Verde. Sem comandar o animal, deixou que o mesmo o conduzisse a
algum lugar seguro. O cavalo, aos poucos, galvanizava a energia dos seus
passos; em minutos já galopava em grande velocidade. Ravi, segurando firme as
rédeas, adejava sobre o animal. Já não pensava em nada, sua racionalidade
estava amorfa.
Percorrendo
quilômetros a toda velocidade, Colossos exsudava em cansaço. Saltava sobre
galhos e troncos distribuídos pelo caminho. O dia que ainda não era noite já
não resguardava qualquer claridade, e as sombras da densa vegetação deixava a
atmosfera lôbrega. Ao se aproximar de um amplo barranco, o cavalo de chofre
arrefeceu. A parada brusca não impediu a queda, e juntos, o animal e o menino,
rolaram morro abaixo. Com o corpo encravado em terra, Ravi, que por alguns
segundos perdera por completo a consciência, mais pelo susto da queda do que pelos
ferimentos, recuperou as forças e, ainda deitado ao chão, olhou ao redor,
recompondo em memória o ocorrido. Ao seu lado, Colossos arfava; seus olhos
denunciavam a iminência da morte. O garoto se levantou. Face a face com o
animal, de alguma forma percebeu que o olhar do bichano apontava em súplica e
pranto para uma pequena cavidade em rocha, desenhada bem próxima dos dois e que
se assemelhava a uma caverna. Deixando o animal descansar, depois de alguns
afagos de afeto e comiseração, se dirigiu a caverna. A passagem era estreita,
porém seu corpo jovem e franzino não encontrou maiores dificuldades para
transpor a pequena abertura. Em escuridão total, nenhum laivo de luminosidade
penetrava o ambiente, Ravi engatinhou pela passagem convicto que encontraria
algo do outro lado. Na medida que penetrava ao interior da cavidade rochosa,
feixes de luz ficavam cada vez mais visíveis do outro lado. Após alguns metros
de esforço, conseguiu vencer o túnel. Quando olhou para a paisagem que adornava
o outro lado da passagem, seus sentidos turvaram em surpresa. O dia estava
claro, suavizado pela luz do sol; e bem perto dos seus olhos a portentosa
árvore de folhagem azul queimava o alvedrio de suas predileções. Ela, sonora,
onírica, sublime, pendia a sua frente; a imagem era tão bela que o menino se
sentiu obnubilado. Enfim, encontrara o objeto de desejo. Queria muito estar ao
lado do pai e de Ancian para que os dois partilhassem com ele a emoção e o
espanto daquele momento único de contemplação.
Como se a
beleza vencesse a verdade, Ravi se recusava a fechar os olhos ou ao menos
redirecionar a atenção para os outros campos oferecidos ao seu foco visual. Era
a árvore azul, e nada nem ninguém enfraqueceria a força ociosa dos seus gestos.
Não havia mais corpo, não havia mais sentido; apenas consubstanciação.
Por fim,
interrompeu a contemplação e, meneando a cabeça, olhou ao redor. Estava
exatamente no local que avistara no dia anterior; um belo vale iluminado pelas
vozes do coração e ornado pela cachoeira de águas claras. Ainda absorvido pela
imagem da árvore azul, começou a se lembrar dos incidentes da viagem. Seu pai e
o velho senegalês tinham sido levados pelo rio, a esta hora poderiam estar em
apuros. Mestre Mago se afogara, talvez já estivesse morto; e seu valente
cavalo, o nobre Colossos, compadecia, do outro lado, em dores. Por enquanto
nada poderia fazer para ajudar os três que se perderam no rio, porém ajudar o
cavalo negro era algo que ainda estava ao seu alcance. Teve uma ideia, pegaria
algumas folhas azuis da árvore e levaria à Colossos, provavelmente as lindas
folhagens recuperariam a saúde do animal. Moveu o corpo, que voltara a ser seu,
e com inesperada habilidade escalou o grosso tronco. Colheu uma dezena de
folhas e, sem pestanejar ou olhar para trás, voltou a caverna. Engatinhou pelo
interior escuro da passagem, mas ao contrário do que presumia não conseguiu encontrar
a entrada, por algum motivo o túnel estava fechado. Sem entender o que
acontecia, deu meia volta e retornou. Ao sair da caverna, novo susto. A
paisagem era a mesma, mas os raios de sol, que cintilavam e davam cores ao
ambiente, haviam desaparecido. A árvore estava lá, incrustada na mesma
superfície de solo, mas carecia de folhagem, nenhuma folhinha azul se dispunha
sobre os galhos; e as dezenas de folhas colhidas minutos atrás estavam secas,
com coloração amarronzada.
O inebriado
sonho se convertera em má sorte, e se as folhas azuis eram o amparo das
desventuras das últimas horas; neste novo cenário, sem sol ou pureza, a
liberdade da inexpugnável estética do instante anterior convertera-se em
prisão. O céu, plúmbeo e sem vida, anunciava uma grande tempestade; relâmpagos
ressoavam ao redor, produzindo sons de uma orquestra do pavor. A pulsação do
seu corpo seguia o ritmo da elegia natural; tinha medo, muito medo.
Os
primeiros respingos de chuva o exortaram ao interior da caverna, precisava se
proteger da tempestade. Ouvindo as lamúrias do vento e da água que despencava
do céu, rogou para que nenhum mal lhe acontecesse. Lembrou da mãe, ou da
imagem que ao longo dos anos criara para poder se comunicar com ela; pediu para
que o protegesse. Talvez ela estivesse perdida naquela exótica paisagem,
esperando o momento exato para salvar o filho. Como se um dilúvio de memória
incendiasse seu espanto, começou a sibilar uma doce canção que sua mãe costuma
cantar quando ainda era um pequeno bebê. Em suavidade, cantou em
lembranças:
"Dorme
meu filho querido
Se a noite
não se acalmar
Estarei sempre
ao seu lado
Aos afagos
a te acalentar
Se tiveres
medo
Serei seu
esteio
Se de fome
acordar
Meu corpo
livrar-te-á do anseio
Se de tudo,
ainda precisares de luz
Serão os
brilhos dos meus olhos que irão te guiar”
Enquanto a
natureza se renovava, dormiu um sonho tranquilo. Ao acordar, deixou a caverna;
e, para o gáudio de seu espírito, o sol brotava no horizonte. A cachoeira
oferecia água limpa em abundância e a árvore continuava sem folhagem; no
entanto, a luz amenizava a crueza de seus galhos vazios, deixando-a bela. Mas
uma vez tentou atravessar a caverna e novamente não obteve êxito. Precisava
encontrar outro caminho de volta a aldeia. Estava bastante preocupado com o
pai. No fundo sabia que o homem rinoceronte escaparia da desdita do rio, e
quando percebesse o seu sumiço faria de tudo para encontrá-lo. Voltou à
paisagem ensolarada e ao olhar para o céu, observou algo estranho; uma espécie
de nuvem azul se destacava no dossel claro. A diferente atmosfera sugeria ao
menino que ele se encontrava em outro mundo.
FG
Comentários
Postar um comentário