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A Nuvem Azul - I

Capítulo I.

Uma Viagem Inesperada

O menino Ravi, herói dessa e de muitas outras aventuras, antes de ser levado ao Mundo da Nuvem Azul, vivia acossado pela solidão e pelo frio de sua velha mansarda no norte da França. Ele era filho único de Philippe, um velho e cansado missionário que lesionava teologia a alunos secundaristas. Desde o nascimento do filho, interrompera sua vida nômade, fixando-se naquela terra de atmosfera álgida e inóspita; porém ainda tinha o intuito de prosseguir em suas errantes viagens, pois acreditava na linguagem da fé cristã e no poder curativo de Deus. Seu filho, no entanto, até então alheio às misteriosas migrações de seu pai, ainda não vislumbrava qualquer possibilidade de deixar seu local de origem; talvez por isso sonhava, perdido na imaginação, com lugares cálidos, paisagens ensolaradas e reconfortantes.

Certo dia, como se houvesse despertado de um sonho que se tornaria real, Ravi ouviu da boca de seu pai o anúncio de uma viagem, ou melhor, de uma mudança. Dentro de um mês iriam ao sul da China. Philippe pregaria o evangelho para aldeões chineses, com a certeza de levar um pouco de conforto ou uma suposta cura espiritual àquele povo tão sofrido. Ao saber da notícia o menino Ravi ficou estupefato, mas logo passou a fazer planos dos mais fantasiosos. Achava que encontraria elefantes gigantescos, tapetes mágicos, feiticeiros poderosos e animais falantes. Em poucos dias traçou um imenso roteiro, que envolvia desde o estudo do mandarim até a aquisição de objetos que julgava importantes, tais como um afiado canivete, um chapéu de aventureiro, uma bússola, e uma corda forte e resistente.

Chegada a viagem, Ravi não conseguia conter a euforia. Perguntava a todo o instante ao pai se os chineses eram amigáveis e se encontrariam seres fantásticos pelo caminho. Seu pai, desejoso de fomentar a imaginação do filho, descrevia, com minúcias de detalhes, a vegetação, os animais, as rochas, montanhas, rios e lagos da país. Tudo aquilo era absorvido com vivacidade pelo menino, de forma que seria inevitável, aos que observassem tal situação, pensar que tais desejos se frustrariam com uma realidade decepcionante.

Durante a longo viagem pai e filho conversaram. A curiosidade do menino, no entanto, sempre encontrava barreiras na autoridade sacerdotal do pai.

- O que o senhor irá ensinar aos chineses?

- Vou fornecer a verdade, tentar ensinar o que nunca puderam aprender.

- Vai ensinar a palavra de Deus aos chineses? Como fazia na escola?

- Sim, mas lá tudo será diferente. Eles não conhecem a história de cristo, muitos sequer ouviram falar dela.

 - Mas eles não têm outros deuses? Talvez saibam outras histórias tão belas quanto a de cristo.

- Talvez..., porém nada se compara com a verdade. Se tu imaginares um lindo leão alado pode se iludir com a impressão de que este leão é o maior e o mais vistoso de todos, mas este sempre será um leão falso, e a beleza dele não seria comparável à do leão verdadeiro.

- E se existirem leões alados, e se existir uma outra verdade ainda mais incrível do que a nossa própria imaginação poderia conceber?


- Mas a verdade que temos, a verdade de Deus, é a mais incrível de todas; ela não transcende só a nossa imaginação, ela transcende nosso espírito; diante dela leões alados, dragões de multicabeças, deuses do olimpo, fantasmas do bosque ou qualquer figura, objeto ou sensação imaginada é parca de riqueza, é oca, miserável. Todos os mitos inventados pelo homem podem nos levar a diversos caminhos, e alguns desses caminhos são bons, mas nenhum deles, a não ser o caminho em cristo, nos guia verdadeiramente à vida boa. Para encontrar Deus precisamos seguir seus passos, e isto nos conduz à ascese, uma depuração do espírito tão recrudescente que somos levados a praticar todas as virtudes cristãs.

seguir seus passos, e isto nos conduz à ascese, uma depuração do espírito tão recrudescente que somos levados a praticar todas as virtudes cristãs.

- Mas Deus determina tudo o que é bom? O que é bom pra mim, pra você, pros chineses, pros animais e seres mágicos?

- Deus é o grande arquiteto da realidade. Criou o céu, a terra, as montanhas, as árvores, os animais e todas as pessoas; e para cada um forneceu uma finalidade, um propósito. A finalidade do céu é proteger a terra; da terra gerar a vida; dos animais servir aos homens; e dos homens louvar a Deus e sua criação. Se existissem seres fantásticos, e talvez eles existam, certamente Deus os concedeu alguns desígnios; pois tudo em sua obra é perfeito e acabado, tudo obedece suas leis.

- Talvez na China encontremos alguns seres fantásticos. Se encontrar tentarei descobrir o que Deus reservou a eles.

- Sim meu filho, faça isso. Deus abençoará sua sabedoria.  

A conversa entre pai e filho se estendeu por horas. Ravi, sequioso em explicar a riqueza de suas fantasias, perorou sobre seus sonhos; as paisagens, os animais, os sons e as cores daquele mundo que era só seu. Dizia ao pai que talvez tudo aquilo fosse real, e que em algum lugar encontraria um portal de acesso àquele feixe imenso de sensações. Philippe, orgulhoso da sensibilidade do filho, sempre aos afagos, insistia em apontar para o coração da criança ao se referir à passagem secreta do mundo imaginado pelo filho. 

- Tu guardas a chave desse lugar. Ela está em você, dentro de ti. Sinta a pulsação do seu corpo, perceba o quanto seu espírito é belo e sublime, o quão cheio de vivacidade, de vida guarda em seu âmago. O mundo imaginado por ti é o reflexo, uma miragem de Deus; um pedacinho dele e da sua obra. Confesso que seu pai também tem um mundo próprio, também, como tu, sonhas; mas, ao me reconhecer como um servo humilde, uma partícula, um ornamento de luz do nosso senhor, sei que meu mundo não é só meu, é apenas uma nesga, um farelo da verdadeira criação. Apesar disso, preservo meus farelos, enfeito minha imaginação, transformo aquilo que possuo em algo ainda mais belo, isso é uma forma de louvor, de homenagem àquele que me fez e criou. Quando olho para ti, filho; percebo uma grande sensibilidade, um espírito criador, um artista. Não desperdice está dádiva, não deixe seus farelos se perderem em suas mãos. Quando descreve seu mundo, me ensina um pouquinho sobre Deus, e isso me expande a felicidade.

Ravi às vezes ficava confuso com os sermões do pai, no entanto adorava ouvir sua voz; o tom professoral dele era compensado por uma suavidade deslizante, quase etérea. Além disso o som era emoldurado por gestos tão sincrônicos, que os discursos do pai, por mais que tivessem um conteúdo repetitivo, pedante, nunca o entediava, pelo contrário, lhe enchia de força criadora. Por vezes imaginava seu pai como um homem rinoceronte, o conteúdo das falas se refletia no corpo bruto, pesado e rígido, já a forma de expressão se misturava às linhas, curvas e estruturas tão diversificadas do animal, com o corno longilíneo e as patas roliças, o tronco arredondado e a cabeça delgada. Também o temperamento; calmo e pacato quando não incomodado, severo e raivoso ao pressentir perigo, assemelhava-se com o de Philippe. Durante o voo, o pai convertido em rinoceronte e apertado na poltrona inadequada para seu corpanzil, divertia o garoto com frases cheirosas e macias.

- Sabes como fortalece sua criação, fortifica seus farelos?

- Não, papai!

- Precisa iluminar ainda mais o que é luminoso, e levar luz para os lugares de sombras. Cuidado com os pântanos, os desertos, o frio. Cuidado, muito cuidado. Não se perca em medos, angústias; não faça do seu pedacinho de mundo um tugúrio contra as trevas; um refúgio aos perigos reais. Dê cores vivas aquilo que insiste em ser cinza, colora a noite com camadas e espessuras de amor.   

Com sorrisos pai e filho a todo momento se compraziam em cumplicidade. Era prazeroso trocar afetos com palavras e conhecimentos com o olhar. A viagem, apesar de longa, se comprimiu num tempo de satisfatória empatia, e a exaustão de horas numa poltrona desconfortável, principalmente para o pai rinoceronte, foi equilibrada pela presença e companhia do outro.

No saguão do aeroporto de Guangzhou, os dois esperaram pelas bagagens, mal sabiam que um imenso infortúnio já havia acontecido; entre idas e vindas de infindáveis voos comerciais, seus pertences se perderam em extravio. A essa altura o canivete afiado, a bússola, o chapéu de aventureiro, a corda resistente, todas as roupas e livros de Ravi, além das roupas e da coleção de textos sagrados de Philippe, incluindo sua portentosa edição da Bíblia Sagrada, ocupavam um acalorado depósito nas terras tropicais do Brasil. Nem eles nem os funcionários da companhia aérea sabiam disso, de forma que após um longo período de espera, confusos empregados, vestindo roupas asseadas com logotipos nada criativos de empresas aéreas, informaram o problema, pedindo, sem qualquer convicção, paciência ao pai e ao filho.

Já resignados com a perda da bagagem, eles decidiram, antes de pegar a condução que os levariam até a aldeia de Huangphu, local que passariam os próximos anos, comprar alguns itens indispensáveis. Entre lojas convencionais e exóticas, se divertiram na experimentação de vestuários engraçados aos olhos ocidentais; e já desfeitos do amargor ocasionado pela incompetência no transporte de seus pertences, dialogaram sobre a situação.

- Papai, toda esta confusão me fez refletir.

- Ainda está chateado por ter perdido suas coisas?

- Não! Comprar novas roupas está sendo ótimo; quero me ambientar com este novo mundo, e vestir estes panos engraçados irá me ajudar.

- Se soubesse nem tinha me preocupado com a bagagem; estou triste apenas pelos livros.

- Você pode comprar outros aqui.

- Vou ter que procurar muito pra achar uma Bíblia que eu possa ler.

- O senhor não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados no aeroporto.

- O senhor não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados no aeroporto.

- Não meu filho. Papai, assim como qualquer homem, tem suas limitações.

- Ah... então deve ser isso. Quem perdeu nossa bagagem deve ter algumas limitações.

Neste momento, pai e filho se entreolharam com o semblante em risos. Ravi continuou sua análise jocosa; Philippe, numa reviravolta de descontentamento, tentou frear a fervura cômica do filho que, no entanto, insistia.

- Não entendo pai, me parece que nós, os humanos, somos falhos em demasia; quando precisamos cumprir nossas obrigações o fardo a carregar parece muito pesado.

- Muitas vezes a aparência se confundi com desleixo. Fazemos o que é possível, e quando algo sai do lugar precisamos retirar o melhor do que não foi bem feito. Agora por exemplo estamos nos divertindo, e isto graças a companhia aérea, graças à nossa bagagem extraviada.

- Graças ao desleixo da companhia que não cumpriu sua finalidade. Talvez esteja exagerando, já que a finalidade das companhias aéreas é levar os passageiros com segurança ao destino, nisto ela foi divina. Esta outra parte da bagagem deve ser um adendo desimportante.

Ravi olhou para o pai interrogativo, tentava, um pouco aflito, ler a expressão do homem rinoceronte. Philippe mastigava, como se ruminasse o sutil atrevimento do filho, talvez mais uma frase ou pequena provocação despertasse a ira do animal selvagem.

Philippe pela primeira vez percebia que seu filho estava crescendo, não era mais, apesar da tenra idade, apenas um menino. Aquele comentário sardônico e atrevido não era da feição do "petit enfant", em verdade o pai sequer compreendia a extensão daqueles dizeres, poderia ser uma interpretação curiosa, perfeitamente adaptável à ingenuidade infantil. Sem, no entanto, querer investigar o alcance das palavras do filho, decidiu mudar de assunto e se esforçar para recriar a atmosfera de minutos atrás. Pegou o traje mais colorido e estampado da prateleira da comprimida boutique que estavam e vestiu por cima de seus andrajos convencionais; Ravi se alegrou.

Abastecidos de vestimentas de todos os tipos e cores, caminharam apressadamente, estavam prestes a perder a condução à aldeia. No caminho, um senhor de barba muito branca e cabelos finos que caiam sobre os ombros segurou, à sorrelfa, os braços do menino. Surpreendido com o repentino gesto do ancião, olhou em seus olhos em espanto. O velho parecia cego, seus glóbulos oculares eram cinza esbranquiçados. Quando começou a falar, o pai despertou para o que estava acontecendo e tentou acudir o filho; em um gesto rígido e repentino desvencilhou o braço da criança aprisionado pelo invasor, mas não conseguiu evitar os gemidos, que mais pareciam lamúrias de morte, do estranho. Num lapso temporal de difícil apreciação, ouviram frases tormentosas. Ravi, pouco afeito ao mandarim, nada entendeu; porém seu pai, a julgar pela expressão do rosto, captou as esquálidas palavras do velho.

Voltando ao ritmo da caminhada que antecedeu o incidente, Ravi, antes mesmo de se refazer do susto, quis entender o conteúdo daquelas estranhas palavras. Seu pai, apesar de tentar cobrir de desimportância o ocorrido, disse aquilo que compreendeu. Contou que o velho falava de um menino de olhos azuis que encontraria muitos obstáculos e resistências num mundo particular, e estas aventuras simbolizariam uma grande passagem. Para Philippe o ancião se referia metaforicamente às transformações da juventude. 

- Ele disse também algo estranho sobre uma feiticeira, mas não consegui compreender bem. Na verdade, aquele velho é apenas um sujeito exótico, absorvido por falsas crenças e motivado talvez pela nossa aparência um tanto incomum para ele.

- Estranho ele falar de um menino de olhos azuis, eu poderia jurar que aquele senhor era cego. Mas pelo visto ele enxergava bem, provavelmente melhor do que nós dois, papai.

- Uma figura estranha, dessas que existem em todos os lugares. Lembra do andarilho Pierre que vivia nos arredores da escola e adorava assustar os meninos ao final das aulas? - Ravi assentiu com a cabeça - Então, este senhor é o Pierre chinês. - Philippe esboçou um sorriso pouco convincente aos olhos da criança.

- Lá na aldeia encontraremos sujeitos estranhos assim?

- Acho que não; a maioria dos aldeões são camponeses, trabalham quase o dia todo e não devem ter tempo para se prestar a estas fantasias oraculares.   

- Então aquele senhor era um oráculo, estava falando sobre o meu futuro?

- Falava sobre o futuro de qualquer menino, já que a passagem para a juventude e a vida adulta sempre é permeada por imensas aventuras.

- E a feiticeira?

- Bobagem, apenas bobagem.

No ônibus que os conduziriam até a aldeia, Ravi ficou pensando na mensagem do velho. Seria ele um sábio oráculo? Um profeta que o alertara sobre perigos vindouros? Que mundo era aquele? Seria o mesmo dos seus sonhos? E a feiticeira? Deveria, a partir de então, ser cauteloso, evitar perigos e seguir as orientações do pai.

Divagando sobre o caso, suas elucubrações só foram interrompidas quando, na metade do percurso, percebeu a incrível paisagem que o circundava. Estava numa poltrona recostado à janela, ao seu lado Philippe cochilava. A estrada acompanhava um imenso desfiladeiro e as atribulações da pista exortavam o motorista a seguir em vagarosa prudência. O ritmo lento possibilitava a total apreciação do ambiente; e nada poderia ser tão prazeroso para o menino. Quando o pai descreveu o que encontrariam no lugar, durante o voo de Paris à Guanghzou, não conseguiu esmiuçar nem a décima parte de toda aquela beleza; Ravi se inebriava, suas sensações, seu espírito e ânimo se engrandeciam a cada árvore e montanha que repentinamente se desvelavam no horizonte.

Abaixo do desfiladeiro existia uma gigantesca floresta de vegetação espessa e frondosa. Todas as árvores tinham folhas de um verde escuro muito vivo, comum para aquela época do ano. E, não obstante tudo o que era visto durante quilômetros a fio aparentasse recrudescente semelhança, para Ravi cada detalhe das montanhas e florestas era genuinamente original. A superfície extremamente acidentada produzia uma atmosfera de impotência e prostração. Diante do inexpugnável o menino se sentia bem; a hiperbólica paisagem se assentava com perfeição ao seu simbólico mundo, e naqueles calmantes momentos que permearam a viagem, chegou a acreditar que seus sonhos eram reais e que seu mundo imaginado era apenas a projeção daquele exótico ambiente. Porém, nada estava fora do lugar, e, por mais que forçasse a vista para enxergar distâncias ainda não alcançadas, todos aqueles contornos preservavam uma estância real; nada imaginado, tudo verdadeiro.

Quando já se aproximavam do destino, depois de enfrentar o desfiladeiro, trecho mais perigoso da viagem, uma árvore de folhas azuis, matizada por radiantes feixes de luz e ao pé de uma sublime e violenta cachoeira, apareceu no horizonte. A imagem era tão bela que o menino, em grande alvoroço, tentou acordar o pai que ainda dormia. Ao despertar com os gritos da criança de "olha, rápido, rápido, veja," fixou os olhos pra onde os dedos do filho apontavam e enxergou uma cadeia de montanhas. Perguntou por que tamanho estardalhaço. Ravi, ao notar que o pai não acordara a tempo de presenciar a imagem que dificilmente sairia de sua memória, se entristeceu em lamúrias. Aborrecido pelo despertar letárgico do homem rinoceronte, tentou, sem muito entusiasmo, descrever o que vira. Mas aquela árvore era inefável, e nem o poeta mais acalorado daria forma às luzes azuis que irradiavam daquele opúsculo da natureza.

Tudo tão azul, visualmente sonoro; tudo tão belo, onírico, pleno; tudo em afasia reconfortante, que se faz memória do para sempre. Entre outros dizeres estes e outros mais poderiam recompor uma pequena porção de tudo aquilo que o garoto Ravi sentia ao reconstruir a imagem da árvore azul através da lembrança que ainda era sensação, percepção do momento quase presente. A folhagem espessa, aparentemente macia que se dispunha singular dentro da imensa floresta de vegetação convencional, poderia ser o reflexo de seus olhos de tons azulados. Outros passageiros conseguiram captar tão proeminente visão? Ou aquele espetáculo foi percebido apenas por ele? Quando o ônibus parou numa pequena cidadezinha o menino não hesitou, foi logo perguntando ao motorista, antes de saltar do veículo:

- Onde fica aquela árvore de folhas azuis? Podemos chegar até ela?

- Árvore azul? O que está dizendo? Não existem árvores azuis - replicou o confuso motorista, em um sonoro sotaque de difícil compreensão.

- Passamos por ela, quilômetros atrás. O senhor deve saber já que percorre estes caminhos quase diariamente.

- Lamento rapaz, mas nunca vi nenhuma árvore azul por estas bandas, e olha que viajo nesta estrada a mais de vinte anos.

Se esforçando para entender as palavras do condutor, Ravi lançou um esgar tristonho. Percebendo o semblante do menino, tentou logo consertar o estrago feito pela resposta decepcionante.

- Sabe menino, já estou velho; minha visão não anda boa e ela é capaz apenas de diferenciar a estrada da vegetação. Com a idade perdemos um pouco a sensibilidade, e o que, aos olhos de um passageiro atento, seria de imediata apreensão, aos meus passa despercebido. Muitas vezes comentam comigo algo que viram pelo caminho e eu quase sempre não reconheço. Acho até que nasci apenas para manter a atenção àquilo que não se distancia muito do meu rosto; talvez por isso seja um bom motorista e não consiga me distrair com esta e outras paisagens tão impressionantes. Mas se queres achar a árvore azul pergunte ao velho Ancian, ele mora a poucos metros daqui, é topógrafo e conhece cada detalhe dessas florestas.

Repentinamente animado, Ravi sorriu ao motorista e agradeceu pela condução. Philippe, admirado pela sensibilidade do senhor de aparência tão simplória, acenou com dizeres cristão. "Que Deus abençoe sua jornada!" Por coincidência, pai e filho, antes de seguirem a cavalo o resto do percurso até a aldeia na manhã seguinte, dormiriam na casa de Ancian naquela noite. O topógrafo também era missionário e ajudaria Philippe em sua empreitada. Já do lado de fora do ônibus, disse ao menino que encontrariam Ancian, repousariam em sua casa antes de seguir viagem.

O topógrafo vivia num humilde casebre a poucos metros da capela. Era senegalês e conhecia Philippe. A muitos anos atrás fundaram juntos uma vila católica ao sul do Congo. Nesta época, Ancian já havia feito seus estudos topográficos da região chinesa, e logo depois de deixar a vila africana, um pouco antes do próprio Philippe, voltara aquele lugar de relevo acidentado não mais como topógrafo, mas como missionário.

Chegaram ao casebre e foram muito bem recebidos pelo senegalês. Um velho de pele muito escura e barba grossa que, um pouco grisalha, dava os primeiros sinais da idade. A construção de pedra abrigava três cômodos, uma sala, um quarto e um banheiro. O anfitrião, após os formalismos da chegada, ajudara os inquilinos com a bagagem, os convidando a assentar no confortável sofá feito à palha. Após as primeiras conversas, Ravi, já não contendo a ansiedade, perguntou ao dono da morada sobre a árvore azul e se era possível visitá-la. A princípio um pouco contrariado e surpreendido pela pergunta do jovem rapaz, Ancian quis saber em que ponto da estrada tinha visto a árvore. Ao ser informado que ela não se distanciava muito da cidadezinha, deu uma resposta pouco contundente, porém muito simbólica.

- Engraçado você ter visto esta árvore. Poucos conseguem vê-la. Confesso que a muitos anos atrás, quando era jovem e vinha a região pela primeira vez, avistei esta mesma árvore. Tal como você me inebriei com tamanha beleza. Aquela visão era tão bela que dificilmente poderia passar despercebida pelo mais desatento dos viajantes, mas aos poucos fui percebendo que eu era o único a reconhecê-la. Com todos os moradores que conversava nenhum dava qualquer sinal da existência da árvore. Quando iniciei meus trabalhos topográficos tinha certeza que a encontraria; porém, após algum tempo de insucesso na minha busca, esqueci dela; cheguei a pensar que estava sonhando. Fiz muitos mapas da região, ao passo que poderia jurar ter percorrido cada palmo dessa superfície; mas se tu falas que viu a mesma árvore que vi a tantos anos atrás é porque minha busca foi incompleta e certamente ela deve estar em algum lugar de difícil acesso. Se teu pai permitires, amanhã antes do sol raiar, podemos, com a ajuda dos meus infindáveis mapas, procurá-la.

Philippe em protesto, indagou:

- Mas amanhã iremos à aldeia, e ao que parece você já combinou com alguns citadinos de seguir viagem conosco para iniciarmos a construção do pequeno templo. Acho que esta aventura terá que ser adiada, coisas mais importantes precisam ser feitas.

- Caro amigo, procurar esta árvore não é um mero passatempo. Amanhã sairemos cedo e se até o final da tarde nada encontrarmos, poderemos adiar as buscas para outro momento. Um dia de atraso é perfeitamente aceitável. Acho, inclusive, que seu garoto ficaria assaz descontente se ao menos amanhã não tentarmos achá-la.

O homem rinoceronte, já não mais contendo sua exasperação de ânimo, falou não em tom professoral e suave, mas ríspido, quase furioso:

- Por favor, perder um dia para procurar algo que não existe é um grande sacrilégio. Ao invés de alimentar as fantasias do meu filho, deveria acalentar seu coração com a verdade.

Ravi olhou raivoso para pai. Até então nunca pensaria ouvir palavras tão severas e brutas daqueles lábios.

- Meu amigo, não são fantasias; eu também vi a árvore, não estava a mentir. Acha que poderia macular o nobre espírito do seu filho inventando e fomentando fantasias? Somos homens de Deus, e foi ele que colocou esta árvore no nosso caminho.    
 Philippe, ainda insatisfeito, se recompôs e, concordando com a ideia de procurarem a árvore, pediu desculpas ao filho. O homem rinoceronte novamente ruminava sob o olhar desencantado da criança.

***


Insatisfeito com o pai, e já nutrindo uma forte empatia pelo velho senegalês, Ravi foi para o quarto se deitar; precisava se recompor para a busca do dia seguinte. Os dois homens, enquanto o menino dormia, continuaram sobre o sofá de palha conversando. Bebiam saque e vinho, e a medida que o corpo de ambos esquentava, a mente se amoldava numa construção de linguagem mais pura e sem barreiras. Conversaram sobre os tristes incidentes de anos atrás no sul do Congo, quando os dois nada fizeram para impedir um monstruoso massacre, promovido com o apoio do governo central do país contra congoleses já convertidos ao catolicismo.

- Eu me lembro das chamas e dos gritos de horror. Quando tudo se incendiava e nós abrigávamos a família Bongolê no interior da capela, não tivemos a coragem de Deus para evitar nem uma nódoa de tragédia - dizia Ancian com lágrimas aos olhos.

- Tudo aquilo que aconteceu não estava ao nosso alcance, fomos surpreendidos pela milícia do governo e tivemos sorte em sobreviver. Eles destruíram tudo menos a capela, e eu nunca entendi por que eles preservaram a humilde morada de Deus; certamente não foi por medo de uma intervenção dos céus - Philippe suspirou em angústia, aos poucos retomava as lembranças pungentes daquele momento nada misericordioso. Pálido e com o olhar em trevas, continuou - Quando eles invadiram a capela e espancaram pai e mãe Bongolê na frente da filha, senti uma fúria impotente, e depois - não conseguiu continuar, se engasgava em ressentimentos.

Os dois, olhando para o vazio, pareciam vivenciar mentalmente toda a perfídia do passado. Naquela noite ignominiosa um comboio militar invadiu a vila católica fundada por eles. A mais de dois anos trabalhavam ao lado de trinta famílias camponesas, produzindo inhame, banana, mandioca e sorgo. Além do cultivo, disseminavam a cultura cristã não só na aldeia como nos arredores. Durante aquele tempo sofreram algumas intervenções e retaliações do governo instituído, principalmente o confisco de mercadorias, mas nada que pudesse ameaçar a existência da comunidade e nem limitar o alcance dos seus projetos cristãos; tampouco poderiam imaginar qualquer violência contra eles e os aldeões. No entanto, no final da primavera foram surpreendidos pela invasão de quinze homens fortemente armados. Eles destruíram todas as casas, mataram alguns camponeses que ofereceram resistência e prenderam os demais; diziam estar seguindo ordens do ministro de Estado. Quando entraram na capela e perceberam que uma família de pai, mãe e filha estava escondida, riram em laivos de revolta insinuando um castigo iminente. E de fato a punição veio de forma irascível. Dois deles espancaram o homem e a mulher e um terceiro sobre o altar de cristo violentou a menina na frente de todos. Philippe e Ancian nada fizeram, assistiram toda a barbárie sem reação. O miliciano que parecia liderar o grupo, quando viu seus comandados praticando os atos infames, atirou na menina antes de agredir o homem que a violentava. Com sangue nas mãos esbofeteou Ancian e ameaçou Philippe com o revólver. Pai e mãe Bongolê, ao presenciarem a execução da própria filha, já desesperados pela situação, tentaram, de todas as formas e com a toda a fúria de seus corpos, intervir; acabaram mortos pelos homens que os seguravam. Após a desforra aviltante, os missionários foram abandonados sozinhos na vila destruída.

Mais tarde Ancian, a pedido do governo senegalês, foi deportado para seu país de origem; Philippe continuou no Congo protegido pela embaixada francesa. Acompanhou o processo que julgou os excessos cometidos pelos militares no trágico incidente. Mesmo recebendo muitas ameaças, foi a testemunha principal do julgamento. O governo se eximiu de culpa, condenando os autores diretos do massacre. A punição, no entanto, acabou sendo bastante branda comparada aos crimes cometidos; e tanto Ancian quanto Philippe nunca mais se recuperaram do trauma. O senegalês voltou para a China, lugar que se sentia mais seguro e livre das plangentes sensações que atormentavam sua memória, já o pai de Ravi começou a lesionar teologia na escola de sua cidade natal, onde teve uma vida pacata ao lado de sua falecida esposa e longe das tormentas do passado. 

- Pensei que após o ocorrido tu irias perder a fé. Fiquei surpreso quando soube de sua vinda para cá depois de tão pouco tempo da tragédia - disse Philippe de volta ao presente.

- Naquele tempo pensei em largar a batina, estava revoltado com Deus. Todo o ocorrido foi demasiadamente pesado, e minha fé não era capaz de sustentar insidiosas lembranças. Abandonei Deus e a vida, entrei num estado de melancolia profunda e nada fiz naqueles meses que sucederam o massacre. Depois, já sem fé, decidi comunicar, ao cardeal de Dakar, minha decisão de abandonar a igreja; e quando fiz isso as lembranças do Congo voltaram a ficar insuportáveis, e eu sabia que ao longo do demorado processo de desligamento elas iriam perdurar violentamente. O cardeal Sagna, no entanto, me fez uma proposta; ao invés de largar a batina eu poderia me mudar pra cá, lugar que sempre nutri inestimável carinho. Aceitei a proposta, e desde então vivo aqui. De certa forma recuperei minha fé, porém não aceito mais os dogmas cristãos; não lesiono teologia, tampouco compartilho com os chineses a autoridade cega da mensagem de cristo. Ensino a eles a fomentar o que cada um tem de bom. Aliás, quando fores a capela perceberá que nada existe em homenagem ao Deus das escrituras, lá é apenas uma simples construção que incentiva os homens a entrar em contado com o deus que cada um reserva dentro de si.

- Neste tempo todo não ensinou nada a este povo? Nenhuma palavra de cristo, nenhuma mensagem cristã?

- Ensino e tento despertar o lado bom que existe em todos nós. Acho que este foi o intuito de cristo, sua verdadeira missão. Nunca pretendi subverter a cultura chinesa com qualquer moralismo apegado cegamente ao evangelho.

- Perdeste a fé, meu caro Ancian, perdeste a fé! - o tom da fala transmitia desesperança e resignação, e os olhos de Philippe, após escutar o velho amigo, estavam soltos, não visuais, perdidos, inertes, quase mortos.

- Não! Sou um homem de Deus, e como tal incuto conforto e compaixão naqueles que se enveredam num caminho de sombras. Os chineses não precisam da mitologia cristã para o exercício de virtudes. A partir de suas fábulas podemos não só ensinar o que é justo, bom e belo; como também aprender um pouco mais sobre nós mesmos e sobre o mundo. Esta cultura, este povo, assim como todas as outras culturas e todos os outros povos nos têm a oferece uma nova forma de enxergar a vida e de vivê-la de maneira boa.

- Vim a China para ajudar um velho amigo na tarefa evangelizadora; porém percebo que terei de fazer, começando do zero, tudo sozinho. E já não sei mais se posso chamá-lo de amigo. Tu te transformaste em outra pessoa, não é o jovem Ancian que nutria tanto afeto. Somos tão diferentes agora, pensamos a realidade e a fé de forma tão distintas que não é possível mais compartilhar com você a amizade.

- Não se engane, o que nos fez amigo não foi a crença cristã, o que nos fez amigo foi a troca sem amarras, sem censura de afeto. Lembra de quando nos conhecemos? Você debochava do meu sotaque e eu motejava de sua pele clara. Em nossa primeira caminhada juntos, sob um sol escaldante, brinquei com a vermelhidão repentina de sua face. Você, mesmo com dor e diante de um desconhecido que zombava do seu incômodo, me agradeceu pelos momentos divertidos de prosa e descontração. Ficamos amigos naquele mesmo dia, não pela vivência cristã que nos igualava, mas sim por aquilo que nos tornava diferentes. Nossa empatia foi galvanizada pelas nossas díspares experiências de vida.

Um pouco convencido pelas palavras do amigo, transmitiu um doce olhar e comentou:

- Você, com seu humor jocoso e sotaque atrevido, era o que faltava para a minha severidade aparvalhada de homem frio.

- E tu eras o frescor necessário à minha linguagem incandescente.

No período em que Philippe ficou sob a tutela da embaixada francesa no Congo, se sentiu impotente. Diante de tamanha tragédia e ciente da repercussão negativa do incidente sobre a cúpula do governo congolês, sabia que uma atmosfera de injustiça permearia o julgamento dos culpados. O que não sabia era que a própria França tinha interesse em encobrir o caso. As ligações econômicas do seu país com a nação africana não poderiam ser abaladas pelo contratempo que vitimou dezenas de famílias insignificantes à política cínica e não humanitária do Estado europeu. Eles precisavam, a todo custo, atenuar as consequências do massacre, e para tanto obrigaram os diplomatas e funcionários da região a orientar o missionário durante seu testemunho no processo. Era de interesse de ambos os governos a extinção de todas as comunidades voltadas à agricultura familiar e de subsistência. Planejavam intensificar o cultivo predatório da monocultura latifundiária, para que a chefia governamental do Congo se enriquecesse com a exportação de produtos primários, e para que o governo francês tivesse acesso a matérias primas de baixo custo. Uma transição de poder motivada pela barbárie dos eventos catastróficos poderia abalar as relações mercantis entre os dois países, e isto não era aceitável.

Findado o processo, Philippe retornou a França e foi, quase coercitivamente, alocado à uma cidadezinha próxima a Paris, recebendo o cargo de professor de teologia numa escola secundarista. Por lá viveu alheio às implicações macroeconômicas ligadas à tragédia. Sem saber, era vigiado de perto por agentes estatais que fiscalizavam o conteúdo de suas aulas, palestras e textos publicados. A culpa e o sentimento de injustiça o acompanharam por longa data, mas, ao contrário do amigo senegalês, manteve-se circunspecto em relação à Deus e à fé cristã. Sentia que algo maior estava reservado para àquelas singelas famílias de camponeses que transmitira a verdadeira linguagem da fé; e se sentia remorso pela inação diante da violência contra o povo que aprendera a amar, de alguma forma acalentava suas angústias a partir da espiritualidade em cristo. 

Impedido de continuar suas migrações pelo mundo, levando a mensagem cristã às mais diversas culturas, decidiu se desligar da Igreja. Um forte sentimento, que julgava ser divino, o incutia a um estilo de vida diferente. Para ele era da vontade de Deus que largasse a batina para constituir uma família.

Conheceu sua esposa no colégio. Ela era professora de literatura, e, tal como a maioria das pessoas de sua geração, não tinha fé, tampouco acreditava em Deus. A diferença espiritual que os separavam, de alguma forma incendiou a fogueira interna da paixão. Os dois se apaixonaram. Philippe, que ainda não conhecia a sensação do amor romântico, pensava que o sentimento era a mais etérea recompensa dos céus; sua mulher, já afeita aos prazeres da carne, acreditava que conseguiria demonstrar ao marido a dissonância entre Deus e a convulsão amorosa do corpo. Mesmo renitentes em suas originárias crenças, mantiveram um relacionamento estável, que seguiu o ritmo de uma canção barroca, sincronizada entre as trevas e a luz. 

Ravi nasceu em meio a muitas alegrias e projetos; ambos continuavam na escola, seguindo suas vidas comuns. Porém, as atribulações do cotidiano afastaram pai e mãe. Se separaram pouco depois da criança completar um ano. A mulher ficou com o filho. Durante este período Philippe andou angustiado, preso à sensação de fracasso; julgava que sua união com a antiga esposa deveria ser eterna. 

A mãe de Ravi faleceu sob circunstâncias misteriosas. Na ocasião o menino passava o fim de semana com o pai. A mulher foi encontrada morta no banheiro de sua casa; a perícia constatou morte súbita devido a um aneurisma cerebral que a mulher não conhecia ou ao menos não revelara a ninguém. 

Esta nova tragédia modificou a vida de pai e filho. A criança, de apenas dois anos, ainda era muito pequena para expressar conscientemente a perda; no entanto a separação repentina da mãe abalara por completo seu desenvolvimento e formas de se relacionar com o mundo. Ravi se aproximou, a cada nova etapa da infância, a um caminho de fantasias e sensibilidades. Seu pai, diante da necessidade de acolher o filho, não teve muito tempo para experienciar a tristeza; fez de tudo para mantê-lo afastado das crueldades da vida, sempre mostrando ao menino a beleza de todas as coisas. Dizia à criança que sua mãe estava no céu sempre a protegê-lo; e que, se ele quisesse conversar com ela, bastaria ouvir a voz que perpassava seu coração.  

Escondendo o seu passado de Ravi, viveu anos pacatos ao lado do filho e lecionando na escola. Meses antes da viagem para China e sem se relacionar com qualquer outra mulher, decidiu voltar a igreja. Sua boa relação com o arcebispo de Paris fez com que fosse readmitido na congregação católica. Alguns setores da instituição cristã, ligadas ao antigo governo francês, temiam sua volta ao celibato, pretendiam manter a antiga tragédia do Congo encoberta por diversos panos; decidiram enviá-lo a China para mantê-lo bem longe dos holofotes. Juntá-lo a Ancian, no isolamento desertor do continente asiático, não incomodava os membros da igreja; afinal, numa inócua vila chinesa, Philippe e o padre senegalês, mesmo juntos, seriam inofensivos.

Na conversa entre os dois missionários regadas a bom vinho e resguardada pelo sonho da criança que dormia no quarto sem nada ouvir, Philippe contou ao velho amigo, em verdadeira cumplicidade, parte do seu passado recente. Um pouco antes de dormir, dialogaram sobre a aventura que enfrentariam no dia seguinte. 

- Quando disse ao meu filho que também havia visto a árvore de folhagem azul, pensava estar fomentando sua imaginação, ou, no mínimo, protegendo-o das cruezas do mundo. Como tu mesmo disseste, ninguém nunca comentou sobre esta peculiar espécie de vegetação, ninguém nunca a viu; ninguém nunca admitiu sua existência. Não entendo suas intenções, tampouco posso acreditar que tiveste a mesma ilusão visual do meu menino.

- Quando seu filho descreveu a árvore, de folhas azuis espessas e ao lado de uma portentosa cachoeira, foi como se ele tivesse resgatado meu passado. Tive a mesma visão, e na época não julgava estar louco. Sei que pode parecer estranho, inacreditável; mas amanhã, quando partirmos em nossa busca, procurarei pela árvore com a mesma paixão da criança. Aliás, minha intuição diz que encontraremos esta árvore e que ela nos trará conforto e respostas que tanto eu quanto você procuramos.

- Supondo que a árvore exista e que nós a encontraremos, qual resposta ela poderá nos fornecer? O que faremos com uma mera experiência visual de algo que a princípio tu e meu filho supõem ser bela? No máximo faremos uma descoberta biológica, encontraremos uma espécie nova de vegetação; porém, como não somos botânicos ou biólogos, de nada servirá nossa empreitada.

- Acho que a fé cristã te fez cético. Somos adultos e como tais carecemos de inocência. Temos nossos traumas, réprobas lembranças; talvez um desazo da consciência que insiste em retirar de nós a pulsão criadora, o contado, o sentimento e o sentido que transcende a realidade. Nem tudo que existe se oferece, muitas vezes vivemos alheio ao que se dispõe do nosso lado. Seu filho, no entanto, ainda guarda dentro de si a pureza que o permite ver além das aparências. Ele nos conduzirá até a árvore, e diante dela recuperaremos a potência, o frêmito da vida, os auspícios da paz de espírito - olhou para Philippe que parecia confuso, não entendendo ao certo aquelas insinuações; a fisionomia do amigo modificou o tom e o teor da sua prosa - O que fizemos no Congo foi diabólico, subvertemos a cultura de dezenas de camponeses e em troca eles receberam a morte. Nós éramos os instrumentos necessários para limpar o terreno antes do massacre. Sem saber, fomos usados pela igreja, pela França e pelos políticos congoleses. Todos aqueles milicianos que promoveram o massacre estavam a mando do governo central, tenho certeza que sabe disso. No processo, no qual participou e ajudou na farsa, condenaram os homens que participaram diretamente das atrocidades, mas no fim associaram o grupo a uma organização terrorista que intentava eliminar comunidades cristãs. Este grupo nunca existiu, todos aqueles homens eram mercenários contratados pelo ministro de guerra. A verdade foi camuflada, e as relações do governo com o massacre ficou escondida. Massacres semelhantes foram feitos ao longo desses anos, e associaram todos eles a divergências religiosas entre grupos paramilitares e camponeses. Comunidades islâmicas fundadas nas últimas décadas também foram alvo dos achaques violentos dessa falsificação política, e não me assustaria nem um pouco pensar que uma suposta cúpula do islamismo instrumentaliza fieis para a promoção de interesses econômicos escusos. Hoje no Congo praticamente inexiste comunidades agrícolas voltadas para o cultivo não predatório da terra; a maior parte dos camponeses trabalha em grandes latifúndios, vivendo uma vida miserável e em condições subumanas. Ter consciência da minha participação neste jogo espúrio de relações econômicas, lacera qualquer condolência que por ventura julgava ter pela nossa corrompida instituição cristã.

- Não posso acreditar nesta sua revelação conspiratória. Sei que o governo participou do massacre e que, ao longo do processo, uma imensa atmosfera de injustiça impossibilitou a descoberta da verdade. Em vários momentos me senti angustiado por ter corroborado com tamanha farsa, mas pensar que tudo o que aconteceu tinha sido planejado desde o início, que nós e outros missionários fomos enviados para a África com o objetivo diabólico devidamente arquitetado pela igreja e pelos governos da França e do Congo, não passa de uma fantasia espetaculosa de suas interpolações traumáticas.      

- Estou apenas simplificando uma história bastante complexa. Não sei de fato de que forma a igreja me instrumentalizou, mas não posso permitir que algo semelhante se repita sob a tutela de meus olhos.

- E mesmo ciente das conspirações opressoras da igreja manteve-se padre. Tu és um grande cínico, meu amigo.

- Não larguei oficialmente a batina, mas não me considero padre; como disse não converto os chineses ao cristianismo. Quando tentei me desligar da igreja não consegui, e o fato de ter continuado padre foi uma imolação forçada pelos bispos senegaleses. A mim não foi concedido qualquer graça, não podia deixar a igreja depois de tudo o que aconteceu, eles precisavam me manter enclausurado no sacerdócio, para que minha atitude não despertasse suspeitas.

- Ancian, me parece que tu estas absorvido em desatinos. Eu me desliguei da igreja e não encontrei qualquer obstáculo. Por que acha que no meu caso houve um tratamento diferenciado?

- Na França as coisas acontecem de outra maneira. O governo te ofereceu um cargo na escola pública, e tenho certeza que, se insinuasse rejeição ao suposto mimo, seria forçado a aceitar o emprego. Sob a tutela estatal, não precisariam mantê-lo acorrentado ao sacerdócio; a posição pública garantiria uma vigilância ainda maior. Ou acha que durante todos estes anos ninguém seguiu seus rastros?

- De fato fui forçado, mesmo sem oferecer resistência, a aceitar o emprego na escola. E talvez estes detalhes tenham pré sugestionado seu intelecto a criar estes devaneios conspiratórios. O que não entendo é a relação dessas infames memórias com a árvore azul. Por acaso pretende encontrar uma resposta às lancinantes dúvidas que o enchem de culpa e desesperanças? Era isso que tentava insinuar?

- Gostaria apenas de voltar a ver algum laivo de pureza e inocência. E o seu filho parece saber o caminho das flores que tanto procuro.

Nesta altura da conversa, ambos estavam exaustos e alcoolizados. Foram dormir. Philippe adormeceu com a sensação de que seu amigo flertava com a insanidade; e, como bom cristão, deveria recondicionar o espírito do seu velho afeto à santidade de cristo.

***


Acordaram bem cedo, antes do nascer do sol. Ravi estava super agitado e seus movimentos denunciavam grande ansiedade. Ancian calmamente se preparava para jornada e Philippe, com o semblante em resmungos, não conseguia disfarçar o fastio, que poderia ser tanto pela ressaca da noite anterior, quanto pelo desânimo de se aventurar numa busca sem sentido. Enquanto pai e filho se arrumavam no quarto, o velho topógrafo preparava torradas com geleia de broto de bambu, comida tipicamente chinesa que ao longo dos anos aprendera a apreciar. Após a refeição, os três deixaram a mansarda em direção ao estábulo. Três cavalos, prontos para a cavalgada, despunham-se inertes, aguardando o primeiro comando. Um dos cavalos era negro, os outros dois cinzas. O cavalo negro chamava-se Colossos, os cinzas não tinham nome. Diante dos cavalos, Philippe desautorizou o menino de seguir viagem sozinho, achava-o muito jovem para controlar um animal tão grande. Ancian, sem querer abalar a autoridade paterna, comentou:

- Venha comigo, cavalgaremos com o Colossos. Ele é um cavalo dócil e muito sensível; é capaz de adivinhar o caminho certo, mesmo quando nos sentimos perdidos. Acho que se você mentalizar a figura da árvore azul que avistou ontem, Colossos saberá nos guiar até ela - Ravi olhou para o pai como se esperasse algum sinal de autorização. Ao consentir com a cabeça, ajudou o menino a subir no cavalo; Ancian já estava sobre o animal.

- E você papai, vai com qual cavalo, o mais claro ou o mais escuro?

Philippe, achou estranha a pergunta do filho, não conseguia discernir qual dos outros dois era mais escuro. Sem dizer palavra, montou sobre o que se encontrava mais perto do seu corpo.

- Como ele chama? - Ravi perguntou a Ancian.

- Estes outros dois não têm nome. Colossos foi batizado com o nome do pai. Quando eu era jovem, o pai Colossos me ajudou muito na feição desses mapas que carrego na bolsa. Juntos identificamos a maior parte da superfície dessas terras. Ele também era um lindo cavalo negro - acariciou a crina do animal, antes de prosseguir - a sensibilidade do nosso colega foi herança do pai, e como os dois eram tão semelhantes, tanto em aparência quanto em comportamento, decidi manter o nome.

- Ah... mas os outros dois deveriam ter nome, tudo deve ter nome. Por que não escolhemos um nome para o cavalo de papai? Já que seguiremos viajem juntos é importante batizá-lo.

Os dois adultos concordaram, sugerindo que a escolha caberia ao menino.

- Vamos chamá-lo de Mago. Mestre Mago.

Com as primeiras nesgas de sol, deixaram a cidadezinha em direção à floresta. Colossos liderava o pequeno comboio. Cavalgavam com lentidão, se orientando pela bússola do velho topógrafo. Tudo indicava que a árvore azul se encontrava a leste de onde estavam. A primeira hora de jornada foi divertida; Ancian contou diversas histórias da região, lendas e mitos que compunham a cultura local. Ravi atento às palavras do senegalês e ao mesmo tempo de olho na exuberante paisagem que percorriam, absorvia tudo com muita energia. As imensas moitas de bambu e as curiosas árvores dispostas ao seu maravilhado olhar o ajudavam a compor os cenários das narrativas poéticas que ouvia dos lábios do seu companheiro de viagem. Philippe seguia mais calado, fazendo, entre longos intervalos de tempo, pequenos comentários sem vigor ou entusiasmo. 

Ao sol a pino, pararam para descansar. Estavam na soleira do rio Verde. Deixaram os animais beberem água e pastarem um pouco, enquanto comiam algumas frutas e o guisado de arroz preparado exclusivamente para a viagem.

- Tenho a impressão que já nos distanciamos em demasia da cidade. Não encontramos nada, e pelo visto este rio não aparenta desembocar numa cachoeira mais pra frente. Talvez seja melhor voltarmos - disse o homem rinoceronte já tentando identificar os primeiros sinais de decepção nos olhos do seu velho amigo.

- De forma alguma. Conheço muito bem este rio. Quando chove ao norte seu volume aumenta muito. As águas cobrem metros de superfície que circundam seu leito perene. Muito dessa água segue por outros vãos e caminhos. Provavelmente a cachoeira vista pelo seu filho é oriunda das inundações ocasionadas pela chuva. Não encontraremos a árvore azul se seguirmos o rio; se fosse tão fácil assim, todos na região a conheceriam - apontou para a terra que parecia bastante úmida e continuou - olhe para o chão, está tudo encharcado; é bem provável que ontem o rio inundou.

Pegou seus mapas e após detalhada observação percebeu que precisavam cruzar o rio e seguir para o sul. Juntaram as coisas, montaram nos cavalos e seguiram viagem. O rio estava raso, sem correnteza; os cavalos o atravessaram com facilidade. Philippe, mesmo desconhecendo os fenômenos naturais e climáticos, achava impossível um rio tão raso após uma enchente no dia anterior. Apesar da dúvida e do descontentamento, nada comentou.

Um pouco mais a frente, encontraram um panda que, sem perceber a presença dos invasores, se alimentava, aparentando prazer, bambus acochambrados ao seu redor. Ravi ficou encantado com a delicadeza do animal. Aquele ursinho tão fofo parecia ser um sinal de que logo encontrariam a árvore azul. Ainda preso à contemplação da criatura, o menino ouviu as palavras em tom pesaroso do velho topógrafo.

- Temos que retornar. Olhem para o norte, as nuvens se enegreceram. Provavelmente chove, e em poucos minutos a enxurrada irá nos impedir de atravessar o rio. 

Olharam para as nuvens e perceberam os repentinos tons sombrios que matizavam seus contornos. A cada segundo elas ficavam mais plúmbeas, e o próprio panda, que instante atrás aparentava tranquilidade, se inquietou a procura de abrigo. Deram meia volta. Decepcionado, Ravi nem pôde protestar. 

De volta ao leito do rio, Colossos, que ainda seguia à frente de Mestre Mago, empacou. Por algum motivo recusava a transpor as águas. Philippe, açoitando a lombar do seu cavalo, ultrapassou os companheiros de viagem e iniciou a travessia. Ainda era cedo, porém o dia já aparentava sinais de escuridão; as nuvens negras filtravam a luminosidade e dava um aspecto tenebroso ao ambiente. O rio estava mais profundo. Na metade do percurso, Mestre Mago se desesperou, já não conseguia mais vencer a correnteza. Aos gritos, Philippe tentava incentivar o animal a seguir a travessia, mas aos poucos o rio enchia e a violência das águas se acentuava. Uma camada espessa de corredeira afogou o cavalo, inçando Philippe ao interior do rio. Num gesto repentino, Ancian saltou de Colossos e se jogou às águas, com a expectativa de salvar o amigo, que a esta altura já era transportado pela correnteza. Ravi, confrangido, observava o infortúnio do pai sem esboçar reação. Viu os adultos serem levados pelo rio, sem qualquer indício de que eles conseguiriam vencer a hostilidade inesperada da natureza.

Ainda petrificado com o incidente, o menino percebeu que Colossos se distanciava da margem do rio Verde. Sem comandar o animal, deixou que o mesmo o conduzisse a algum lugar seguro. O cavalo, aos poucos, galvanizava a energia dos seus passos; em minutos já galopava em grande velocidade. Ravi, segurando firme as rédeas, adejava sobre o animal. Já não pensava em nada, sua racionalidade estava amorfa.  

Percorrendo quilômetros a toda velocidade, Colossos exsudava em cansaço. Saltava sobre galhos e troncos distribuídos pelo caminho. O dia que ainda não era noite já não resguardava qualquer claridade, e as sombras da densa vegetação deixava a atmosfera lôbrega. Ao se aproximar de um amplo barranco, o cavalo de chofre arrefeceu. A parada brusca não impediu a queda, e juntos, o animal e o menino, rolaram morro abaixo. Com o corpo encravado em terra, Ravi, que por alguns segundos perdera por completo a consciência, mais pelo susto da queda do que pelos ferimentos, recuperou as forças e, ainda deitado ao chão, olhou ao redor, recompondo em memória o ocorrido. Ao seu lado, Colossos arfava; seus olhos denunciavam a iminência da morte. O garoto se levantou. Face a face com o animal, de alguma forma percebeu que o olhar do bichano apontava em súplica e pranto para uma pequena cavidade em rocha, desenhada bem próxima dos dois e que se assemelhava a uma caverna. Deixando o animal descansar, depois de alguns afagos de afeto e comiseração, se dirigiu a caverna. A passagem era estreita, porém seu corpo jovem e franzino não encontrou maiores dificuldades para transpor a pequena abertura. Em escuridão total, nenhum laivo de luminosidade penetrava o ambiente, Ravi engatinhou pela passagem convicto que encontraria algo do outro lado. Na medida que penetrava ao interior da cavidade rochosa, feixes de luz ficavam cada vez mais visíveis do outro lado. Após alguns metros de esforço, conseguiu vencer o túnel. Quando olhou para a paisagem que adornava o outro lado da passagem, seus sentidos turvaram em surpresa. O dia estava claro, suavizado pela luz do sol; e bem perto dos seus olhos a portentosa árvore de folhagem azul queimava o alvedrio de suas predileções. Ela, sonora, onírica, sublime, pendia a sua frente; a imagem era tão bela que o menino se sentiu obnubilado. Enfim, encontrara o objeto de desejo. Queria muito estar ao lado do pai e de Ancian para que os dois partilhassem com ele a emoção e o espanto daquele momento único de contemplação.

Como se a beleza vencesse a verdade, Ravi se recusava a fechar os olhos ou ao menos redirecionar a atenção para os outros campos oferecidos ao seu foco visual. Era a árvore azul, e nada nem ninguém enfraqueceria a força ociosa dos seus gestos. Não havia mais corpo, não havia mais sentido; apenas consubstanciação.

Por fim, interrompeu a contemplação e, meneando a cabeça, olhou ao redor. Estava exatamente no local que avistara no dia anterior; um belo vale iluminado pelas vozes do coração e ornado pela cachoeira de águas claras. Ainda absorvido pela imagem da árvore azul, começou a se lembrar dos incidentes da viagem. Seu pai e o velho senegalês tinham sido levados pelo rio, a esta hora poderiam estar em apuros. Mestre Mago se afogara, talvez já estivesse morto; e seu valente cavalo, o nobre Colossos, compadecia, do outro lado, em dores. Por enquanto nada poderia fazer para ajudar os três que se perderam no rio, porém ajudar o cavalo negro era algo que ainda estava ao seu alcance. Teve uma ideia, pegaria algumas folhas azuis da árvore e levaria à Colossos, provavelmente as lindas folhagens recuperariam a saúde do animal. Moveu o corpo, que voltara a ser seu, e com inesperada habilidade escalou o grosso tronco. Colheu uma dezena de folhas e, sem pestanejar ou olhar para trás, voltou a caverna. Engatinhou pelo interior escuro da passagem, mas ao contrário do que presumia não conseguiu encontrar a entrada, por algum motivo o túnel estava fechado. Sem entender o que acontecia, deu meia volta e retornou. Ao sair da caverna, novo susto. A paisagem era a mesma, mas os raios de sol, que cintilavam e davam cores ao ambiente, haviam desaparecido. A árvore estava lá, incrustada na mesma superfície de solo, mas carecia de folhagem, nenhuma folhinha azul se dispunha sobre os galhos; e as dezenas de folhas colhidas minutos atrás estavam secas, com coloração amarronzada.

O inebriado sonho se convertera em má sorte, e se as folhas azuis eram o amparo das desventuras das últimas horas; neste novo cenário, sem sol ou pureza, a liberdade da inexpugnável estética do instante anterior convertera-se em prisão. O céu, plúmbeo e sem vida, anunciava uma grande tempestade; relâmpagos ressoavam ao redor, produzindo sons de uma orquestra do pavor. A pulsação do seu corpo seguia o ritmo da elegia natural; tinha medo, muito medo.

Os primeiros respingos de chuva o exortaram ao interior da caverna, precisava se proteger da tempestade. Ouvindo as lamúrias do vento e da água que despencava do céu, rogou para que nenhum mal lhe acontecesse. Lembrou da mãe, ou da imagem que ao longo dos anos criara para poder se comunicar com ela; pediu para que o protegesse. Talvez ela estivesse perdida naquela exótica paisagem, esperando o momento exato para salvar o filho. Como se um dilúvio de memória incendiasse seu espanto, começou a sibilar uma doce canção que sua mãe costuma cantar quando ainda era um pequeno bebê. Em suavidade, cantou em lembranças: 

"Dorme meu filho querido
Se a noite não se acalmar
Estarei sempre ao seu lado
Aos afagos a te acalentar
Se tiveres medo
Serei seu esteio
Se de fome acordar
Meu corpo livrar-te-á do anseio
Se de tudo, ainda precisares de luz
Serão os brilhos dos meus olhos que irão te guiar”

Enquanto a natureza se renovava, dormiu um sonho tranquilo. Ao acordar, deixou a caverna; e, para o gáudio de seu espírito, o sol brotava no horizonte. A cachoeira oferecia água limpa em abundância e a árvore continuava sem folhagem; no entanto, a luz amenizava a crueza de seus galhos vazios, deixando-a bela. Mas uma vez tentou atravessar a caverna e novamente não obteve êxito. Precisava encontrar outro caminho de volta a aldeia. Estava bastante preocupado com o pai. No fundo sabia que o homem rinoceronte escaparia da desdita do rio, e quando percebesse o seu sumiço faria de tudo para encontrá-lo. Voltou à paisagem ensolarada e ao olhar para o céu, observou algo estranho; uma espécie de nuvem azul se destacava no dossel claro. A diferente atmosfera sugeria ao menino que ele se encontrava em outro mundo.    


FG 

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