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Aventuras de Ravi - XX

Philippe e Ancian continuavam a caminhada no interior da caverna. O ar que respiravam era incomum, e após alguns minutos já não conseguiam manter os pensamentos constantes. Ao redor da passagem principal, várias subdivisões e caminhos alternativos se desenhavam. A confusão mental produzida pela atmosfera separou os visitantes; sem perceber tomaram rumos distintos. O francês seguiu pela direita, enquanto o topógrafo se enveredou pela subjacência oposta.

Quando se deu conta que estava sozinho, Philippe tentou gritar pelo amigo, mas seu chamado não obteve resposta. Estava perdido e não sabia como voltar. A luz já não era tão forte e o caminho se estreitava. Desorientado parou para descansar. Ao interromper os movimentos, sentiu um cansaço inexplicável. Suas pernas pesavam o corpo e a exaustão causava dor. Queimando por dentro, se consumiu em delírios.

Algo parecia se depreender da cabeça, como se uma orquestra fragorosa selasse seus ouvidos. Sentiu um mal estar obtuso, parecia que algum animal queria romper seu âmago. Um morcego passou zunindo por ele. A desorientação do intelecto o fez acreditar que aquele bichano havia saído pelo orifício da orelha. Outros morcegos passaram por ele, causando a sensação de que seu corpo os expulsava do interior. Uma dúzia de seres voadores tentavam sugá-lo, e o espanto oriundo das impressões alucinógenas prostravam suas reações. A languidez do comportamento o transformou em presa fácil. Não ofereceu resistência aos ataques e em poucos instantes caiu sobre o chão sem consciência.

Enquanto dormia, após perder os sentidos, teve um devaneio. Via seu corpo estendido no solo e rodeado por uma horda de bestas sugadores. Era como se seu espírito, ao abandonar a matéria, estivesse plainando sobre a superfície afeito à depravação que o maculava . Em certo momento, os morcegos diabólicos, em cinesia sincrônica, levantaram seu corpo, reconduzindo-o ao espírito consciente. O reencontro o despertou, suas pupilas se dilataram e um grito de horror afugentou os animais. 

Empertigou-se e com passos firmes transpôs a caverna. Do outro lado, a raposa o esperava. Ela parecia saber tudo o que acontecera minutos antes. Seu olhar o denunciava, incutindo-lhe vergonha.

Estava novamente na floresta, mas sem Ancian não poderia encontrar o caminho de volta. Confiar na raposa não era uma opção. Escolheu uma direção aleatória e continuou a caminhada. A princípio não foi seguido e aquilo lhe proporcionou um pouquinho de paz. Tudo ao redor parecia semelhante, e se estivesse andando em círculos não conseguiria perceber. Com um canivete que levava à cintura começou a marcar as árvores, talvez dessa forma pudesse se orientar melhor. Agora o cansaço era real e não fruto daquela atmosfera delirante. Tinha sede, e sua garrafa d'água estava vazia, muito embora pudesse jurar que preservara bastante líquido antes do último gole. 

Um marejar singelo despertou seus sentidos, estava próximo de algum rio ou córrego. O som guiou seus passos. Encontrou uma pequena corrente de água e pôde se refrescar. Enquanto bebia, a raposa reapareceu. "Vá embora. Por que insiste em me seguir? Não quero sua companhia." Dizia o francês irritado. Pegou um galho e atirou no animal, mas o objeto não o atingiu. Manteve-se estático, observando. Sem saber o que fazer, Philippe se aproximou da raposa; tentou agredi-la com socos e pontapés. O contato dos corpos não foi suficiente para modificar o ânimo dos dois. O homem continuava irritado, enfurecido e em desalento; o animal, calmo e sereno. Como a comunicação entre eles não se estabelecia, e o comportamento era tão díspar, se afastaram. Philippe correu, com a expectativa de não ser seguido. A explosão dos seus movimentos foi recompensada pela solidão. Novamente encontrava-se sozinho.

Quando a lua já anunciava sua presença, e a luminosidade arrefecia, avistou uma vila de camponeses; sentiu-se salvo. O terreno da região estava encharcado, e muitos brotos de arroz distribuídos em fileiras organizadas e bem nutridas pela água abundante. Ouvia-se o som da andorinha que, como ao final de todas as tardes, se despedia com cantos lancinantes.

Philippe se anunciou e foi recebido por uma família numerosa de camponeses. Tentou falar em mandarim, mas seu diminuto vocabulário dificultou a troca de informações. Os chineses a julgar pelo semblante do francês, perceberam que ele estava perdido, e, mesmo sem se entenderem, ofereceram abrigo e uma refeição. Passou a noite encabulado pela estranheza dos últimos acontecimentos. Tinha que achar filho, e, quanto mais o tempo passava, a tarefa ficava mais árdua. Seus fios de esperança se dissolviam. Durante a noite conversou com Deus e pediu a ele respostas.

"Não sei o que o senhor espera de mim. Este fardo pesa bastante. Ravi é apenas uma criança, não deveria estar sozinho, enfrentando uma paisagem tão ameaçadora. Por favor senhor, me mostre o caminho, me ilumine com luz. Todas as provações, que tenho passado ao longo da vida, sempre fortaleceram meu espírito, aumentaram minha fé, me transformaram em algo melhor. Mas agora sinto-me em desalento, enfraquecido. A languidez dos meus pensamentos me conduzem à escuridão. Perdi a honra no Congo, perdi minha mulher Véronique na França, não posso perder meu filho aqui na China. Se salvares Ravi, entregarei a minha vida ao senhor."

Neste instante um incompreensível ruído foi ouvido na escuridão. Philippe teve certeza de que o som era um bramido da raposa e que aquele animal continuava a segui-lo.

"Que animal é este? Foi o senhor que o colocou no meu caminho? É uma criatura celestial, ou diabólica? Qual seu propósito? Diga-me senhor, por favor me dê uma resposta."

Os sons contínuos vindos da escuridão o emulava à loucura. O francês decidiu adentrar o campo inundado, encontrar o animal e matá-lo. Já ao redor das mudas submersas de arroz, pensou. "E se Deus estivesse emitindo uma mensagem? E se a raposa fosse apenas uma proteção? Talvez Deus o tivesse abandonado, talvez estivesse sozinho. Talvez o mal tentasse o abater, fazê-lo um sequaz, um súcubo da nova era. Talvez estivesse louco, e tudo fosse um sonho". Alguma coisa no seu passado, reprimido pelas barreiras da memória, tentava se anunciar.

FG    

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