Capítulo II.
O Nascer de um Novo Mundo
As folhas azuis tinham desaparecido e
após a tempestade uma nuvem de coloração semelhante pendia curiosa e
arredondada no céu. Ao que tudo indicava, estava preso do outro lado da colina
sem saber se aquele ambiente era a continuação da realidade ou um mundo
paralelo. De qualquer forma, independente da situação encontrada, precisava
voltar pra casa; talvez ainda conseguisse salvar o cavalo Colossos, ou ajudar
seu pai e o velho Ancian. Se o túnel não oferecia saída, teria de explorar as
paisagens do local. O primeiro passo seria escalar a montanha da cachoeira, e
do alto tentar enxergar alguma coisa que o permitisse inventar a solução que o
levasse ao caminho de volta.
Quando olhou para a montanha, já
sentindo o spray refrescante criado pela colisão da água com o solo, se
assustou. Não sabia como subir aquele intransponível paredão; e por mais que
tentasse olhar ao redor, a escalada era a única forma de escapar daquele vale.
Se estivesse com sua corda resistente, as chances de sucesso seriam maiores,
mas não tinha nada, apenas a força dos braços, a habilidade das mãos e a
inteligência da memória. Minutos de insistência não foram suficientes para
movê-lo do lugar; continuava lá embaixo. A frustração dos primeiros fracassos
foi se substituindo pelo desespero, algum íncubo interno o oprimia. Se estar
preso àquele novo mundo já era angustiante, estar preso nos pequenos limites do
vale, que oferecia apenas uma árvore sem folhas e uma cachoeira, era ainda
pior. Sem saber qual medida tomar, se lamentava estertorante; os lamentos aos
poucos se transformavam em gritos que em segundos já se prolongava num eco ressonante.
A mensagem "socorro, socorro; alguém me ajuda" reverberava dramática
ao redor daquele ambiente ensolarado, luminoso e vigiado pela misteriosa nuvem
azul.
Seus gritos foram interrompidos por um
sonoro barulho de passos que vinham do alto da montanha. Os passos eram tão
estridentes que o menino se sentiu confrangido e ameaçado, alguma coisa
monstruosa parecia se aproximar. Os ruídos causavam medo e insinuavam perigo.
Sem racionalizar o que poderia acontecer, decidiu voltar à caverna. No interior
da cavidade rochosa, os passos ficavam cada vez mais audíveis. De repente, um
pavoroso tremor de terras, que fez lascas de pedras caírem sobre Ravi, sugeria
que alguma coisa muito grande se lançara do alto da montanha para dentro do
vale. Acossado pelas paredes estreitas do túnel, teve vontade de espiar pelas
frestas do abrigo, mas o temor lhe incutia prudência. Segundos após o estrondo,
a luz que adentrava a caverna foi parcialmente ofuscada. Ravi percebeu que um
imenso olho negro o observava. Uma estranha criatura, agachada ao chão, se
esforçava para encontrá-lo, e as intenções da busca ainda eram misteriosas para
o menino. Finalmente, percebendo a presença de Ravi, a criatura, em tom
modorrento, falou: "O que faz aí? Foi você que estava pedindo ajuda?"
Ainda em pânico, respondeu: "Desculpe, mas estou perdido." A frase
foi dita com perceptíveis sinais de medo. "Não se assuste, vim para
ajudá-lo. Se quiser pode sair daí." O menino saiu da caverna, deparando-se
com uma imensa criatura negra, do tamanho da árvore azul. Ela parecia um panda,
só que sem as manchas brancas; seu pelo era todo escuro.
- Ouvi seus gritos, e vim em socorro. Como
chegastes até aqui? Está machucado? Tem fome?
- Estou bem, mas com muita fome.
Obrigado por vir em meu auxílio. Estou preso a este vale, e não consigo subir
este paredão.
- Eu te ajudo. Mas não disseste como
veio parar aqui.
- Vim deste túnel, mas por algum
motivo, a abertura foi obstruída. Preciso voltar pra casa e ajudar meu pai que
se perdeu no rio.
- Você é de onde?
- Sou da França, cheguei a China a
poucos dias?
- França? Não conheço. É alguma
floresta ou bosque distante?
- França é um país, que fica muito,
muito longe daqui - de repente percebeu que falava com uma criatura e que ela
dificilmente entenderia o que era um país. Provavelmente estava em outro mundo,
e qualquer detalhe sobre o seu local de origem seria incompreensível.
- Não sei o que é isso. Mas conheço
criaturas iguais a você. Posso te levar até elas.
- Homens? Existem homens neste lugar?
A imensa criatura não entendeu a
pergunta, mas meneou a cabeça como se concordasse com o menino.
Colocou Ravi na palma de suas mãos e o
conduziu, esticando os braços, ao alto da montanha. Logo depois, se apoiando à
borda do paredão, lançou seu corpo para cima.
Agradeceu a criatura e antes de se
localizar, olhou para os olhos de seu ajudante e lembrou do cavalo Colossos.
- Não perguntei seu nome. Como se
chama?
- Não tenho nome. Vivo sozinho e nunca
precisei de um.
- Então vou dar um nome a você. Se importaria?
Fez que não com os olhos.
- Você me lembra muito um animalzinho
que vi a pouco tempo; porém seus pelos e olhos são semelhantes ao do nobre
amigo que me acompanhava. Vou chamá-lo pelo nome dos dois. A partir de agora tu
serás o Panda Colossos.
- Panda Colossos? Gostei... gostei do
meu nome. E tu, como se chama?
- Me chamo Ravi, mas gostaria de ser
chamado de Mister. Este é um nome que os adultos do meu povo usam para se
referirem a alguém mais velho. Nunca fui chamado de Mister, pois ainda sou uma
criança; mas adoraria que você me chamasse assim.
- Tudo bem. Mas, como me deu dois
nomes, vou escolher outro para você. Assim ficaremos iguais. Te chamarei Ravras,
que, na língua das criaturas negras, significa pequenino. Portanto, eu, Panda
Colossos, vou guiá-lo, Mister Ravras, por estas cadeias de montanhas. Se queres
voltar pra casa, os pequeninos como tu talvez saibam como ajudá-lo.
Os dois com olhares que já denunciavam
afeto seguiram juntos. Panda Colossos colocou o menino sobre os ombros. A
passos largos e vagarosos seguiu em frente. Quando Ravi olhou para o horizonte
teve a certeza de estar em outro mundo.
Após os primeiros passos, Panda
Colossos se deu conta que havia esquecido de encher o tonel com água. Caminhara
até a cachoeira justamente para se abastecer com a límpida fonte. Ao dizer a
Ravi que precisava voltar para pegar água fresca, o menino percebeu que,
amarrado à cintura do animal falante, encontrava-se uma enorme garrafa de três
ou quatro metros de largura por uns cinco de comprimento. Colossos, deixando o
menino na montanha, retornou. Novamente sozinho, reparou na paisagem ao redor.
Uma vasta cadeia de montanhas, que se estendiam a perder de vista. As montanhas
tinham pouca vegetação, eram permeadas por terras de tons alaranjados e
gramíneas não muito verdes. O solo alaranjado de certa forma combinava com o
céu de tonalidade semelhante. A nuvem azul, continuava lá em cima, pairando
sobre ele. O contraste no alto da montanha era ainda mais belo, já que no vale
o céu ainda refletia cores convencionais, idêntico ao céu da França. Bem ao
longe, do seu lado esquerdo, a paisagem parecia se enegrecer, já ao lado
direito o matiz era esverdeado. As cores do dossel, cheio de chispas
multicoloridas nas junções do verde com o laranja e do laranja com o negro, lhe
davam uma sensação de alegria. O gáudio provocado pela avalanche de cores era
indescritível. A ânsia pela volta, naqueles instantes de contemplação, foi
apagada pela beleza da onírica experiência visual. Já não lembrava de seu pai,
e nem dos infortúnios recentes.
Quando Panda Colossos reapareceu com o
tonel cheio d´água, reparou na expressão maravilhada do menino. Não quis
interromper o momento da criança. Aguardou que os olhos sonhadores do pequenino
dessem o sinal para que os dois seguissem viajem. Ao notar a presença do amigo,
Ravi perguntou por que aquele céu era tão colorido.
- Cada lugar tem um céu característico.
Estamos nas terras alaranjadas. Alguns povos vivem aqui, mas geralmente eles se
escondem em túneis, suas cidades e moradas se localizam no subsolo; são
conhecidos como povo da areia. Ao norte o céu é avermelhado, lá vivem muitas
criaturas diferentes; dentre elas pequeninos iguais a você. No oeste, a
paisagem é negra; não conheço esta região, sei, no entanto, que lá existe um
imenso castelo - apontou seu dedo para o lado direito, indicando a parte verde
do horizonte, antes de continuar - lá fica minha casa, no meio da floresta.
Hoje passaremos a noite na árvore que faço de morada. Amanhã seguiremos para o
norte.
- Existem outros céus? Acho que o meu
caminho de volta deve estar em algum horizonte azul.
- Sim, o mundo das águas é azul. Lá
também nunca fui, sei que fica ao sul; mas não poderia guiá-lo até lá. Embora o
céu nos indique o caminho, muitas vezes nossa visão se ilude, e sem perceber
nos vemos perdidos.
- Meu pai sempre me disse para olhar
além das aparências, ver aquilo que nossos olhos insistem em depreciar.
Panda Colossos olhou inquisitivo para o
menino. Seus olhos negros estavam a pensar. Aquela criatura, de feições dóceis
e tamanho assustador, não aparentava inteligência, tampouco insinuava
sabedoria. Ravi de modo algum poderia esperar uma resposta articulada e de
difícil interpretação, mas ela veio:
- Não sei onde é sua casa, pequeno
Mister Ravras. Também não conheço tudo que existe. Talvez você tenha vindo de
longe, talvez você saiba o que eu nunca conseguiria entender. Se agora estamos
juntos é porque o acaso assim determinou. São os eventos fortuitos que nos
propulsiona ao futuro. Nossos sentidos são falhos e a realidade muda a cada
instante; se a realidade muda, nosso futuro também; dessa forma não existe
destino, não existe o certo e nem o errado, existe apenas o mundo e o que dele
podemos aprender. Concordo com seu pai, a aparência é produto do acaso, e este
está sempre a modificar; mas fugir da aparência, negando o que nos é dado, é
fugir do mundo. Estamos a todo momento aprendendo, e só aprendemos pela
aparência, porque apenas ela existe. Por trás da aparência não existe verdade.
- Mas tudo foi criado com algum
propósito. A água que carrega em seu tonel serve para beber. Suas pernas para
caminhar. Assim funciona com todas as coisas, tudo tem sua finalidade, provavelmente
você também carrega algum propósito, algum desígnio. E este propósito, este
desígnio deve estar escondido para além do que possa aparentar.
- Concordo, minhas pernas me permitem
superar distâncias, mas isso nada me diz; eu poderia usá-la para outras coisas,
eu posso cavar, derrubar árvores, saltar, tudo usando minhas pernas; a depender
da situação, a depender do acaso posso modificar as funções dela. Vivo sozinho,
e quase todos os povos têm medo de mim. Eles não gostam das criaturas negras; muitos
inventaram histórias que julgam verdadeiras para alimentar este temor. Dizem
que sou perigoso, malvado; mas não me sinto assim. Aliás, não acredito na
bondade ou maldade das coisas. Quando acreditamos em alguma narrativa que
separa o mundo entre coisas boas e ruins, estamos estreitando nossas
possibilidades, diminuindo a vida em falsificações. Meus pais e familiares
morreram, e como não conheço ninguém mais com minha aparência, tive que me
isolar. Quando me aproximo de algum povo ou criatura diferente, causo pavor.
Este medo gera violência, e para me defender dela me mantenho isolado. O acaso
me fez sozinho, e contra ele nada posso fazer. Se um dia entendessem que dentro
de mim não existe uma barbárie natural, talvez pudessem conviver com minha
presença.
- Confesso que tive muito medo de você,
me escondi na caverna por puro temor.
- Eu sei, já estou acostumado.
Provavelmente seu povo também o incentiva a temer criaturas negras, não é
verdade?
- De onde vim, ninguém nunca ouviu
falar de criaturas negras. Olhando pra você diria que é um Panda gigante, um
monstro. E dos monstros sempre tive medo, não sei por quê. Sempre ouvi
histórias de criaturas monstruosas malvadas, que destroem tudo e matam todos;
estas histórias devem ter me incutido medo quando me deparei com sua
aproximação. Ao mesmo tempo, quando vi seu rosto, tão inofensivo e fofo, minha
fobia se arrefeceu.
- Acha meu rosto fofo? - Panda Colossos
sorriu; sua boca imensa tinha muitos dentes afiados; mas Ravi já não sentia
nenhum temor pela aparência do amigo.
- Sim, você é meu amigo mais fofo.
Após quilômetros caminhando pela cadeia
de montanhas, chegaram a uma floresta de grandes árvores verdes. Panda
Colossos, antes de adentrar à floresta, pediu para o menino segurar firme no
seu corpo, daria um grande salto para aquela nova paisagem que se assentava bem
abaixo de onde estavam. Ravi seguiu as orientações, e durante a queda conseguiu
sentir a suave brisa acariciando seu rosto. O animal lhe dava segurança e
imenso prazer, estar com ele era encantador.
A vegetação era bastante semelhante a
que encontrara no caminho de Guangzhou à cidadezinha habitada pelo velho
Ancian, porém as árvores eram maiores e seus troncos mais curvilíneos.
Bambuzais de tamanho desproporcional ao habitualmente encontrado pelo menino e
de formato escapular se distribuíam pelos arredores. O solo era escuro, de um
marrom quase negro, e a medida que se deslocavam pelo ambiente, Panda Colossos
deixava pegadas bastante visíveis e fundas. A certa altura da caminhada,
percebeu pegadas semelhantes só que em sentido contrário; entendeu que seu
amigo voltava pelo mesmo caminho percorrido horas atrás, quando intencionava
buscar água fresca na cachoeira.
A casa do animal ficava no alto de uma
árvore e era feita de bambu, não tinha cômodos, apenas uma plataforma com um
caldeirão e muitas placas de madeira esculpidas por signos ininteligíveis aos
olhos do menino. Quando chegaram na casa, Ravi perguntou o que estava desenhado
nas peças, e se fora Colossos o autor de desenhos tão bonitos. O Panda
respondeu que as peças da direita, muito mais numerosas, eram obras de
antepassados; as da esquerda eram os seus escritos. Disse que aqueles símbolos
reproduziam a linguagem das criaturas negras; e muito que aprendera durante a
vida foi fruto das leituras e ensinamentos daqueles artefatos tão preciosos à
criatura. Ravi bastante curioso quis saber um pouco do conteúdo das mensagens.
- A história do meu povo está toda
retratada aqui, desde o florescimento da nossa cultura até o seu declínio.
Provavelmente sou a única criatura negra que ainda existe; o preconceito contra
minha espécie nos extinguiu. Do lado direito estou traduzindo os documentos.
Minha mãe ainda em vida me ensinou os líricos mágicos. Embora viva sozinho e em
completa solidão, quis traduzir estes relatos históricos para que, com minha
morte, outros povos consigam entender e aprender um pouco da nossa sabedoria.
Até onde saiba ninguém além de mim entende a língua das criaturas negras, por
isso tenho passado os últimos meses nesta labuta de tradução. Como conheço,
além da minha própria linguagem, apenas os líricos mágicos, não foi difícil
escolher em qual língua traduziria a nossa história. Se minha raça perecer, ao
menos a nossa memória permanecerá viva.
Um insight repentino
invadiu os raciocínios de Ravi. Como Panda Colossos poderia falar com ele, e
compreendê-lo se ambos não entendiam a linguagem do outro? Ravi falava francês,
e seu amigo parecia dominar seu idioma com perfeição. Aquilo era muito estranho
e dava um nó nos seus pensamentos.
- Você diz que entende apenas a
linguagem das criaturas negras e os líricos mágicos, no entanto fala comigo com
francês perfeito, e nem sotaque tu possuis, como é possível?
Panda Colossos ficou confuso, fez uma
expressão peculiar, jogando a língua para fora. O menino teve vontade de rir,
mas, segurando a gargalhada, ouviu o amigo.
- Francês perfeito? Nem sei o que é
isso. Nós estamos conversando em líricos mágicos; tu, como todos os outros
pequeninos, falas líricos mágicos; aliás a maioria das criaturas entendem esta
língua que é de fácil apreensão."
Ravi, jogando as mãos para o alto,
ficou sem entender. Caminhou até os escritos da direita e percebeu que os
símbolos talhados eram letras que compunham palavras e frases do francês.
Finalmente compreendeu o amigo e disse apaziguador.
- Desculpe Colossos, na verdade eu que
fiz confusão. Na minha terra os líricos mágicos são conhecidos como francês. É
o meu idioma, e me alegra pensar que não terei dificuldades na comunicação com
outras criaturas. - Pensativo, continuou após uma pausa - curioso vocês
falarem francês, curioso..."
O animal, pensando que o menino
delirava, resolveu desconsiderar a última conversa. Se dirigindo ao caldeirão
começou os preparativos do jantar. Faria uma sopa de bambu com gengibre. Ainda
não tinha fome, mas seu convidado estava faminto. O caldeirão era tão grande
que certamente poderia ser usado para cozinhar a comida de uma cidade inteira,
mas para o Panda, o conteúdo do seu recipiente mal dava para uma refeição.
Enquanto o animal cozinhava, Ravi lia os textos traduzidos para o francês.
Tinha dificuldade, pois as letras talhadas na madeira eram imensas,
proporcionais à criatura que o abrigava.
Quando o jantar estava pronto, Colossos
não sabia como servir o amigo; ele era muito pequeno e as vasilhas de sua casa
pareceriam piscinas olímpicas aos olhos do pequenino. Pensou um pouco e então
decidiu colher uma folha da árvore que sustentava a plataforma para utilizá-la
como um prato improvisado; parecia a melhor saída para o inconveniente. Dizendo
ao menino para se afastar, deixou uma gota de sopa cair sobre a folha. O
menino, que via tudo de longe, quase foi atingido pelos respingos daquilo que
para ele era uma enxurrada líquida de bambu com gengibre. Aproximou-se da
comida e, com as mãos, se serviu da saborosa gosma que escorria da gigantesca
folha presa ao chão.
Com a barriga cheia, os dois amigos
foram dormir. Durante a noite, a temperatura caiu bruscamente; Colossos, com
seus espessos pelos, já estava adaptado ao frio; Ravi, no entanto, encarangava;
o queixo batia em oscilações constantes. O Panda, ao perceber o incômodo da
criança, sugeriu que os dois dormissem juntos. Abraçado ao garoto, usou o calor
de seus pelos para aquecê-lo. Protegido pela criatura negra, sonhou em
suavidade. Ao acordar, parecia sentir a imagem da mãe; embora não lembrasse,
teve a certeza de a ter encontrado em sonhos.
Partiram com as primeiras nesgas de
luminosidade. Percorreram uma longa planície. A medida que andavam, as árvores
dispostas ao longo da floresta ficavam ainda maiores; os cogumelos coloridos,
imperceptíveis no início da floresta, já tinham o tamanho de um homem adulto. O
som da atmosfera era estridente, quase insuportável; mosquitos gigantes
passavam zunindo; formigas monstruosas laboravam carregando folhas; centopeias
e caramujos se alimentavam deixando um rastro gosmento pelo caminho. Ravi via
tudo com temor e admiração. A pujança de todas aquelas formas desvelava o poder
da natureza.
- A medida que adentramos a floresta,
tudo fica maior. Se não estivesse ao seu lado, não conseguiria percorrer
tamanha distância. Talvez fosse devorado por estes insetos.
- Não tenha medo. A natureza às vezes
tenta demonstrar aos novos visitantes sua grandiloquência; mas quando faz isso
é por pura soberba. Perto dessa vegetação mesmo eu, a aterrorizante criatura
negra, me sinto pequeno. Mas nem sempre é assim, tem dias que percorro estas
verdes planícies sem enxergar nada que ultrapasse os meus joelhos. A natureza,
por alguma razão, está se exibindo; deve ter sentido sua presença e sua pureza
de espírito.
- As coisas mudam de tamanho neste
lugar?
- Sim. Alguns povos dizem que esta
floresta é encantada; que existe um espírito que amolda o ambiente, modifica
suas formas; deixa tudo maior ou menor, reto ou distorcido, claro ou escuro.
Está escutando estas vozes? São cantos lamuriosos da natureza. Quando meus pais
morreram e os últimos da minha espécie me deixaram sozinho, mudei pra cá; esta
floresta é temida por todos; como ninguém se arrisca a enfrentá-la, sinto-me
seguro aqui. Tem dias que converso com o espírito da floresta, que eu prefiro
chamar de natureza. E ela como eu também se confrange em solidão. Já me
acostumei com ela, com suas dores lancinantes e seus gritos de tormenta.
- Mas por que ela sofre? E onde podemos
encontrá-la, as vozes parecem vir de todas as direções.
- Ela é a floresta, está em todos os
lugares; em cada árvore, folha, inseto; em cada partícula de ar que respiramos.
Alguns dizem que ela era uma lagarta que ao virar borboleta assumiu o controle
de tudo, fazendo de todos servos; prisioneiros de suas lamúrias. Não sei por
que ela sofre; mas nem sempre os cânticos são tristonhos; têm dias que ela está
alegre e suas elegias se convertem em belas odes capazes de transformar em
felicidade qualquer pensamento. Hoje as vozes estão sombrias, parece que algo a
incomoda, que alguma coisa se encontra fora do lugar.
- Se eu pudesse, ajudaria. Mas tenho
que voltar pra casa. Meu pai deve estar preocupado com meu sumiço.
- Você pode ajudá-la. Se não tiveres
medo, acho que ela se alegrará. A natureza é bastante sensível e seu
temperamento obedece ao espírito de quem a contempla.
As palavras de Colossos, sensibilizaram
o menino; sua desconfortável sensação se arrefeceu. Aos poucos tentava
transmitir carinho e compreensão aos lamentos que escutava. Não queria que a
natureza se entristecesse com sua presença. Mentalizou suas melhores
lembranças; e novamente a figura da mãe voltou a apaziguar seus ânimos.
Um pouco mais à frente, avistaram uma
grande árvore, a maior e mais bela de todas. Seu tronco tinha uma grossura
colossal. Era frondosa e suas folhas brilhantes, ela lembrava o sol; a luz que
emanava era tão forte que cegava os olhos. Várias cavidades pendiam por toda
sua superfície. Cada uma delas era um imenso casulo. Os gritos da natureza,
percebendo a aproximação dos dois visitantes, ficaram mais intenso; e se antes
as lamúrias viam de todas as direções, agora pareciam se concentrar no interior
da grande árvore. Era como se o vento chorasse plangentes canções. Os ruídos
despertavam as mais recônditas dores e os mais inefáveis sofrimentos. Estáticos
a contemplar tamanho fenômeno natural, viram os casulos se abrirem e de dentro
deles dezenas de borboletas encontravam a vida. A medida que os animais rompiam
as amarras dos casulos, os gritos de horror anunciavam alívio. O espetáculo era
grandioso; as borboletas, cada qual com asas das mais diversas cores, ganhavam
os ares numa experiência visual inimaginável. O espírito da floresta, já sem
força, aos poucos, se silenciava. Quando o último casulo foi rompido, uma
imensa paz suavizou os ruídos do ambiente. Ravi e Colossos se entreolharam sem
acreditar naquilo que os olhos viam; ambos estavam absortos pelo vórtice de
sensações que aliviavam seus pensamentos. As brilhantes folhas se apagaram e um
silvo de alegria foi ouvido.
- Então era isso, a natureza não estava
triste, apenas gritava em dores. Por isso seus gritos eram tão belos; anunciavam
a vida, o nascimento - disse o menino ainda absorvido pela atmosfera inebriante
do acontecimento.
- Durante todos esses anos na floresta,
nunca tinha presenciado este fenômeno tão lindo. Talvez a natureza não quisesse
que eu, sozinho, interrompesse sua mágica de vida. No entanto, ao seu lado, ela
me concedeu esta dádiva.
- Então, o espírito da floresta é na
verdade esta imensa árvore luminosa.
- Não se precipite, pequeno Ravras. Não
queira personificar num objeto aquilo que lhe proporcionou beleza. O espetáculo
que presenciamos nada nos diz sobre a existência material do espírito da
floresta.
Como se a natureza quisesse confirmar
as interpretações de Colossos, um cântico suave adornou a atmosfera. O espírito
estava feliz, e suas canções não saiam da imensa árvore, mas, como antes,
vinham de todas as direções.
- Tem razão. O espírito da floresta
talvez seja o todo; as árvores, o solo, os animais, o ar que respiramos. Talvez
ela esteja dentro de mim e de você.
Neste momento, uma das borboletas que
acabara de nascer pousou sobre os ombros de Colossos. Olhou para Ravi, abrindo
suas imensas asas de coloração alaranjada. O menino não teve medo. Algo parecia
sair dos contornos coloridos do belo inseto; e sem saber se aquele animal
falava ou se o som vinha de outra direção, ouviu, em voz feminina, um singelo
conselho. "Só você saberá o caminho". A borboleta tomou os ares e
novamente o garoto lembrou da mãe. Guardou as palavras consigo. Aparentemente
Colossos nada ouvira.
A floresta ficou para trás, e o céu
esverdeado adquiriu um novo tom, uma mistura do cobre com o amarelo. Andavam
numa superfície arenosa, semelhante a um deserto. Ravi percebeu que ao redor
nada havia, apenas quilômetros sem fim de areia. O Panda informou que seguiriam
para o norte, que após o deserto encontrariam terras férteis habitadas por
diversos povos.
O solo era quente, queimavam as patas
do animal, pouco habituadas ao calor. Para aliviar as queimaduras, intensificou
o ritmo. Usando as mãos, correu a toda velocidade como se fosse um quadrúpede.
Vencido o deserto, avistaram uma
casinha no alto de uma montanha.
- Meu nobre amigo, não posso mais
acompanhá-lo. Naquela casa vivem pequeninos como tu. Vá até eles e pergunte
como chegar onde deseja; talvez eles possam ajudá-lo.
- Por que não vem comigo? Não quero
ficar sozinho.
- Não posso, Mister Ravras. Eles têm
medo de mim. Suas lendas dizem que sou mal. Minha palavra e até mesmo a sua não
teriam qualquer força frente suas milenares crenças. Aliás não diga que estava
comigo; eles podem se assustar e não querer oferecer abrigo. Vou voltar para a
floresta. Quando precisares de minha ajuda venha até este local e assopre este
bambu. - Retirou um pauzinho diminuto da cintura. O objeto era tão pequeno, se
comparado ao corpanzil do animal, que Colossos teve dificuldades em manuseá-lo.
O bambu parecia uma flauta. - Quando soprar, virei em auxílio.
Ravi agradeceu ao amigo, se despediu
dizendo que voltaria, assim que reencontrasse o pai, para que Colossos lhe
ensinasse a sabedoria e a linguagem das criaturas negras. Colossos, colocando a
língua pra fora, na sua característica expressão cômica, acenou para o garoto.
Antes de tomar o caminho de volta, disse apontando para o céu.
- Está vendo aquela nuvem azul? Ela
sempre aponta para o norte. Se se sentires perdido, olhe para a nuvem, ela lhe
indicará o caminho.
Ravi se deu conta que havia esquecido
daquela nuvem. A companhia do amigo fora tão prazerosa e lhe deu tanta
segurança que não se lembrou de perguntar sobre ela.
-Nem lembrava da nuvem azul. Parece que
ela está em todos os lugares, e resguarda sempre a mesma forma.
- É apenas uma nuvem. Está no céu e o
seu mistério pode incutir falsas crenças.
- Quando a vi no céu pela primeira vez,
pensei que ela me indicaria o caminho de volta. Mas agora acho que terei que me
guiar por aquilo que está dentro de mim e não fora.
- Ela será como um mapa, nada mais que
isso. Não se iluda com seus mistérios. Meus antepassados acreditavam que ela
era uma divindade, mas eram apenas crenças; uma narrativa ilusória, falsa.
- Às vezes acho que você é muito duro
com a realidade que o rodeia.
- Tem razão, mas foi a vida que me
ensinou a ter prudência com aquilo que não está ao meu alcance.
***
Enquanto Ravi se aventurava no novo
mundo, Philippe e Ancian enfrentavam a tormenta da inundação. O velho topógrafo
havia se lançado às águas para tentar resgatar o amigo. Conhecia bem o rio e se
conseguisse chegar até Philippe saberia conduzi-lo até um leito seguro. Alguns
metros rio abaixo, Ancian, se esforçando muito para superar a correnteza,
encontrou o corpo do homem rinoceronte. Segurando-o pelos braços, ainda sobre o
efeito deletério das águas que insistia em afogá-lo, conseguiu salvar o amigo.
Com hercúlea perícia, nadou até a margem. Deitou Philippe sobre o solo e após
os primeiros socorros, viu seu amigo recobrar a consciência. Ainda atordoado,
perguntou sobre o filho. Em completa ingratidão, acusou Ancian de ter
abandonado Ravi; e mesmo antes de recobrar as forças saiu em sua procura. Não
poderiam encontrar o menino naquele dia, já que o garoto estava do outro lado
do rio e tentar atravessá-lo de novo seria suicídio. Ancian acalmou o pai
desorientado, dizendo que Ravi estava seguro ao lado do cavalo Colossos. No dia
seguinte, quando as águas do rio tivessem baixado, sairiam em sua busca.
Inconformado teve de voltar com o topógrafo à cidadezinha.
Na manhã seguinte, guiados por dois
cavalos cinzentos, voltaram à floresta; atravessaram o rio, novamente calmo e
raso, à procura do menino. Após horas percorrendo cada esguelha de superfície,
encontraram o cavalo negro deitado ao chão e já sem vida. Presumiram que
Colossos tinha caído do barranco.
- Meu Deus, como pude permitir que meu
filho se aventurasse nesta busca infortuna e perigosa. Onde ele estará? Ele é
apenas uma criança, talvez esteja machucado agonizando em dores - dizia
Philippe em desespero.
- Acalme-se, se o garoto não está aqui
é porque nada sofreu. Ele deve estar tentando voltar pra casa. Quem sabe não
esteja preocupado conosco, já que não sabe se nós nos safamos do rio.
- Tudo sua culpa, seu velho idiota. Por
que abandonou meu filho? - O missionário já não conseguia conter as lágrimas.
Para um homem tão frio e circunspecto, tão calejado pelas intempéries da vida;
a possível perda do filho parecia desvelar uma amplitude nova do seu ser.
Estava inconformado, fora de si.
Continuaram procurando o garoto. Ao
anoitecer estavam tão longe da cidadezinha que já não poderiam retornar. No meio
da floresta avistaram uma pequena charneca que se destacava. No meio do terreno
vazio havia uma casinha, e a fumaça que saia pela chaminé indicava que alguém
vivia naquela pequena construção. Batendo palmas, se anunciaram. Uma mulher de
porte delicado apareceu a porta, e em mandarim disse algo aos visitantes.
Philippe que não compreendia bem o idioma, deixou que o topógrafo conversasse
com ela. Após as explicações, permitiu que os dois entrassem; daria abrigo aos
missionários. Já no interior da mansarda, perceberam que a mulher estava
grávida, e que pelo tamanho da barriga o bebê não tardaria em nascer. Ela
estava sozinha, e durante alguns minutos, antes dos três repousarem, prosearam.
A mulher havia sido abandonada pelo
companheiro antes mesmo de se saber grávida. Desde então vivia sozinha,
trabalhando em sua pequena lavoura. As restrições físicas impostas pela
gravidez fizeram com que a mulher diminuísse aos poucos suas atividades e nos
últimos dias estava se alimentando apenas com o que havia estocado nos meses
anteriores. Ancian descobriu que a mulher se chamava Li, e sua origem era o
norte da China. Alguns anos antes havia mudado com o antigo companheiro para
aquelas terras incultas, e lá passaram a viver de subsistência, até que o homem
a abandonou e ela teve que se virar sozinha.
- Nunca pensou em se mudar para a
cidade? Lá teria mais recursos, ao menos encontraria pessoas para ajudá-la. -
Solfejava Ancian, num mandarim quase perfeito.
- Passei a vida me virando sozinha. Não
preciso que outros se intrometam nas formas que faço e rearranjo as coisas.
Além disso, se chegasse sozinha e grávida em qualquer aldeia, homens como tu
certamente me excluiriam da vida em conjunto. Além de carregar o peso de ser
mulher e de ter que conduzir minha existência, também tenho que dar conta da
minha própria natureza que projetou outra vida dentro de mim. - Li falou em
augúrios pesarosos.
Philippe, sem entender o que os dois
conversavam, acompanhava os sons ininteligíveis, observando a mulher com um
olhar que poderia ser tanto malicioso quanto cândido.
- Tem razão, às vezes a solidão é o
caminho mais seguro. Admiro sua força e coragem.
Li se levantou, parecendo aborrecida.
Disse que estava cansada e que precisava repousar. Os homens ficaram na sala; o
francês quis saber o que haviam conversado.
- Li contou um pouco sobre sua vida;
ela é uma grande mulher.
- Não sabe nada sobre meu filho, nenhum
rastro?
- Não, não viu seu filho; mas amanhã
vamos achá-lo.
- Não posso perder meu tempo descansando
nesta casa, enquanto Ravi está perdido, talvez passando frio e sentindo dores.
- Não conseguirá encontrá-lo no meio da
noite. Lá fora está um breu total, é melhor esperar o nascer do dia.
O homem rinoceronte resignado esperou.
Não conseguiu pregar os olhos, a inquietação o consumia. No meio da noite,
ouviu pequenos suspiro de dor; fingindo dormir percebeu que a mulher deixava a
mansarda rumo à escuridão da floresta. Sem se conter, a seguiu.
No sopé de uma grande árvore, Li se
preparava para dar à luz. Agachado atrás de uma moita de bambu, Philippe, como
um voyer, observava tudo. A medida que os gemidos da mulher ficavam mais
tormentosos e audíveis, o homem sentia uma estranha sensação de prazer; a
delicadeza indescritível do momento o conduzia perversamente ao gozo. Talvez
pudesse ajudar a mulher, talvez pudesse intervir naquele misterioso rompante da
natureza. Mas não quis interromper seu próprio deleite, ver Li naquela pujança
de vida, intumescia fervorosamente seus movimentos; ficou silente para não
perder o menor detalhe daquela sublimação.
Os minutos foram passando, as horas
foram passando. Para a mulher era como se o tempo não fizesse distinção, o
intervalo de segundos era tão denso quanto memórias de anos a fio. Para o homem
que espionava, o tempo era marcado por curvas que oscilavam entre o medo, o
prazer e o fastio. Quando os gritos tomaram contornos mais agonizantes,
Philippe quase se levantou da moita de bambu em auxílio; para ele era
impensável uma mulher parir sozinha. Mesmo virgem Maria, imaculada pela graça
divina, teve a ajuda de José; por que Li, então, escolhera carregar este fardo
tão pesado? Por que insistira em dar à luz sozinha? A criança talvez não
sobrevivesse às cruezas da natureza. A noite estava fria, e quando aquele pequeno
ser chegasse ao mundo precisaria de muitos recursos; água para se lavar,
mantas, cobertores, algo para proteger a cabeça; mas Li não tinha nada, era só
ela e a escuridão.
Pensou em chamar Ancian, talvez o
senegalês tivesse mais tino para intervir da forma certa naquele momento tão
delicado; porém, o medo de ser descoberto pela mulher o mantinha estático a
observar. O prazer, interrompido por momentos de preocupação, sempre retornava;
e, em êxtase de desentendimento, voltava a contemplar. Nestes instantes, Li, a
criança, o ímpeto em oferecer ajuda ou chamar Ancian desapareciam.
A mulher, tão absorvida nas contrações
do parto, não conseguia apreender nada ao redor. O chilrear da coruja, os uivos
do vento, o chiado de insetos e outros animaizinhos noturnos não lhe
perturbavam os sentidos. De cócoras, apoiada à árvore, parecia sentir todas as
dores do mundo; mas estas dores eram diferentes, inigualáveis; eram dores de
vida. Li tinha uma intuição profunda que seu filho chegaria ao mundo no momento
certo e que seu corpo saberia, por conta própria, auxiliá-lo na valorosa
tarefa. Deixava a energia fluir, apenas controlando o ritmo respiratório,
através de gritos e gemidos intensos. Sua seiva interna manava de suas
entranhas e ela conseguia sentir o moroso e sublime desabrochar da pétala.
Num instante, o vórtice de sangue e
matéria transbordou da mulher. A descarga de dor produziu lágrimas, brados,
raiva e exultação. Li estava exausta e tinha uma criança sobre os braços. O
calor de seu corpo a protegia. Em minutos seu peito forneceria alimento, e o
ciclo contínuo da vida se tornaria perfeito. Sozinha, apenas ela, a mulher,
conseguia entender o transformar da natureza. Seu bebê, sem perturbações, se
encontrava pleno. Era uma menina, e, tal como a mãe, teria de enfrentar o
mundo.
Philippe, ao presenciar o parto, sentiu
novamente a mesma sensação de impotência que havia vivenciado diante dos
milicianos que invadiram a aldeia congolesa. Morte e vida pareciam se integrar
num momento improvável de prazer e dor. Seus pensamentos foram reconduzidos à
capela em que a família Bongolê, diante da infâmia humana, se aviltara em
perversão e sangue. Não conteve as lágrimas, não conteve os ânimos, não conteve
o sofrimento.
Naquele instante, Li, depurada pelo
espírito do nascimento, voltou a perceber o ambiente. Suas atenções se
dirigiram para a moita de bambu, onde o homem rinoceronte, agachado, tentava se
esconder. A princípio julgou que os ruídos eram de algum animal, mas logo ouviu
os sons de pranto. Philippe notou que os olhos da chinesa já denunciavam sua
presença. Acabrunhado, voltou à mansarda a passos sonoros. A criança, até então
tranquila nos braços da mãe, começou a chorar; o choro anunciava seu primeiro
contato com as frustrações do novo mundo.
Ao lado de Ancian, que ainda dormia;
contou, em desatinos, todo o ocorrido. O velho senegalês acordou com os
lampejos da fala assustada; em minutos entendeu o que estava acontecendo.
- Vou levar panos quentes a Li, algumas
toalhas e, se encontrar, algum material que contenha sangramentos - disse
Ancian, ainda sem entender por que o amigo estava tão assustado.
Revirou as gavetas dos móveis da
anfitriã, e, achando o que procurava, adentrou a floresta escura. Philippe
ficou prostrado no interior da casa.
O dia já estava amanhecendo, quando no
meio do caminho, Ancian avistou a mulher retornando com a filha nos braços.
Antes mesmo do homem se pronunciar, Li, em tom autoritário e sereno, falou:
- O dia já está a nascer, peço que você
e seu colega intrometido saiam da minha casa e continuem a procurar o que
perderam. Agora preciso cuidar dessa criança e quero fazer isso sozinha.'
- Mas você deve estar debilitada. Está
sangrando, se não tomares cuidado pode se adoentar.
- Por favor, faça o que digo.
Ancian arrumou os cavalos, que
repousavam no centro da charneca. Esperou Philippe, que ainda espantado não
conseguiu fitar, nem por um segundo, a mulher.
Partiram rumo as montanhas de Danxian.
O local tinha várias cavernas e como não se distanciava muito do barranco que
acidentou mortalmente Colossos, o topógrafo presumiu que o menino poderia ter
encontrado algum abrigo por lá.
As montanhas eram suntuosas. Formadas
por espessas camadas de arenito avermelhado, produziam, se vistas de longe, uma
bela e colorida ilusão visual. Os próprios cavalos cinzentos, ao avistarem as
primeiras montanhas rubras, se agitaram. Não queriam seguir viagem, algo os
incutia pavor. Os homens prenderam os animais e continuaram a pé. No meio do
caminho, uma raposa apareceu causando um certo alvoroço temeroso nos dois. No
entanto, ela parecia dócil; e Ancian logo se convenceu que aquele exótico
animal chinês poderia ajudá-los. A raposa era enigmática, caminhava a frente
dos homens e de tempos em tempos meneava a cabeça para trás como se estivesse
se certificando se os dois a seguiam. Subiram e desceram diversas montanhas, já
estavam tão longe da cidadezinha, que Philippe já não acreditava que seu filho
poderia ter caminhado tamanha distância. O senegalês, porém, estava convicto;
através daquela raposa encontrariam não só Ravi, como também uma passagem à
árvore azul. Acreditava que o garoto lograra sucesso em sua busca e que a esta
altura esperava por eles.
- Ancian, onde estamos indo? Meu filho
não está aqui.
- Acalme-se, esta região resguarda
muitos mistérios. Alguma dessas cavernas possuem passagens que nos leva de
volta à floresta. Seu filho pode ter feito o caminho inverso. Tente confiar na
natureza, ela nos mostra o caminho.
A raposa parou diante de uma imensa
formação rochosa. Em seu interior, um caminho espelhado por estalagmites e
estalactites anunciava a proeminência dos anelos despertados nos dois
visitantes. Adentraram a caverna, enquanto o animal, refestelado na superfície
escarpada, esperava. A luz penetrava forte, viva, em todas as direções do
ambiente. Do outro lado, apenas o enigma a ocultar a anunciação.
- Sabe, velho amigo; estou confuso.
Desde que cheguei a China, o improvável, o indecifrável tema em me iludir.
Primeiro encontrei um velho oráculo que disse coisas estranhas ao meu filho, depois
esta miserável árvore azul surgiu para nos desviar do caminho correto, aí veio
o rio e sua inusitada inundação. Meu filho sumiu, conhecemos aquela mulher que
me despertou meu lado mais inacessível. Por fim, esta raposa enigmática que nos
conduziu a este lugar que não parece fazer parte de Deus - disse Philippe,
sombrio.
- Na China, nossas velhas certezas não
têm amparo. A muitos anos atrás, esta atmosfera dilacerou minhas amofinadas
crenças, aprendi a escutar não apenas o gáudio da verdade, mas também a súplica
de novas interpretações. O que aprendi no ocidente sempre foi muito estreito
para entender a vida, suas dores e tormentos. A nódoa daquilo que se apresenta
novo é muito mais importante do que as verdades aprendidas por falsificação.
Nossa visão é míope, e as muletas culturais que usamos, neste lugar, não valem
de nada.
- Acho que estamos a blasfemar. O
sumiço do meu filho, ou este absconso ar que respiro deve estar me perturbando.
- Ajoelhado ao chão, fechou os olhos; precisava sentir novamente a presença de
Deus.
***
Ravi viu seu amigo Colossos se perder
nas profundezas do deserto. Guardou a flauta junto à sua parca bagagem e se
encaminhou à casinha. A chaminé expelia bastante fumaça rosa, seus habitantes
deveriam estar cozinhando ou esquentando algo no fogo. Diante da construção, se
anunciou: "Tem alguém em casa; por favor, preciso de abrigo". Em
instantes três homenzinhos estranhos apareceram. Tinham o tamanho de Ravi, mas
seus corpos eram roliços e cada um apresentava uma cabeçorra de cores
distintas, amarela, vermelha e azul. O homenzinho de cabeça vermelha, segurando
um grande machado e com uma carranca de botar medo, foi o primeiro a se
aproximar, e com voz rouca falou:
- Quem é você? O que faz aqui? Por que
invadiu nossa propriedade? Vá embora, ou terá que enfrentar meu machado.
- Eu vim em paz. Estou perdido e
preciso de ajuda para retornar à minha casa.
O amarelo, um pouco mais distante,
caminhou até o vermelho, pegou o machado de suas mãos com gestos de advertência,
antes de entrar na conversa.
- Amiguinho, não se assuste; meu irmão
é muito nervoso e não gosta de visitantes - sua voz era suave e o tom
conciliador. - Mas como chegou até aqui? Tem algo a oferecer em troca do nosso
auxílio?
- Vim do deserto, mas preciso voltar
pra casa. Algum de vocês já ouviu falar da França, ou de alguma passagem para
outro mundo? Comigo carrego apenas água, um pouco de sopa de bambu e esta
flauta.
- França? Outro mundo? Tu és um pulha,
mentiroso. Quer nos roubar. Vá embora. - O vermelho, novamente encolerizado,
brandia em fúria.
O amarelo foi até Ravi, pegou a flauta
e começou a tocar uma singela canção, cheio de notas livres e inocentes.
Parecia alegre. O azul, que ainda esperava próximo a porta, com um gesto,
chamou os outros dois cabeçudos. Eles conversaram no interior da casa, mas o
menino não conseguiu ouvir o teor da conversa. Depois de alguns minutos,
escutou os berros do vermelho que insistia em expulsá-lo. Alguma coisa conteve
seus gritos. Com a calmaria o amarelo veio de novo em sua direção.
- Esta flauta é um artefato raro, feito
pelas criaturas negras. Meu irmão azul acredita que esta peculiar e assustadora
espécie de monstro já está extinta. Muito provavelmente você achou a flauta.
Talvez tenha encontrado as ruínas dessas criaturas. Ou eu estou enganado? Se
nos disser onde fica as ruínas e se lá existem muitos itens de valor, te
ajudaremos a voltar para a... como é mesmo o nome do lugar?"
- França!
- Isso! França! A bela França!
- Conhece a França?" - Perguntou
com os olhos cheios de expectativas.
- Sim, sim; já ouvimos falar.
- Então também sabem que existe um
outro mundo. Devem conhecer o caminho de volta, não é?
O amarelo olhou interrogativo, mas logo
recuperou o tino negociador.
- Claro, claro... podemos te ajudar.
Mas antes terá que nos dizer onde fica as ruínas das criaturas negras. Seria
uma troca justa.
Ravi, cabisbaixo, ficou mudo; não
poderia contar a verdade para os homenzinhos; havia prometido ao Panda Colossos
que manteria segredo. Por fim, após a insistência do amarelo para que se
decidisse, mentiu:
- Não conheço nenhuma ruína. Achei esta
flauta jogada no deserto. Desculpe, mas não posso ajudá-los.
- Acho que não entendeu. Informação é
um recurso escasso. Não pode pedir algo por caridade, deve oferecer alguma
coisa para ter seus anseios realizados. Queres voltar pra casa, e para tanto
deve pagar o preço justo. Eu e meus irmãos vamos te ajudar, mas você também
precisa fazer um esforço para que nossa troca seja equilibrada. Vejo no seu
semblante que está escondendo o que sabe. E se insistir nessa farsa, terá que
ir embora sem auxílio.
- Realmente não sei onde ficam as
ruínas das criaturas negras, nem saberia dizer se elas existem mesmo.
- Então, infelizmente terá que ir
embora.
O amarelo virou de costas, e,
lentamente, voltou para casa com a nítida sensação que durante a letárgica
caminhada seria interrompido por alguma palavra ou confissão do menino. Ravi,
no entanto, permaneceu silente e estático; atitude que desapontou o
homenzinho.
Sem saber pra onde ir, o menino ficou a
contemplar a nuvem azul. As horas foram passando. A noite, o vermelho abriu a
porta de casa e ao ver o menino, gritou impropérios, invectivas nada ordeiras.
Ravi se afastou.
Foi para o alto de uma montanha, e lá
começou a sentir um frio insuportável. Decidiu fazer uma fogueira para tentar
se aquecer. Sua flauta estava com os homenzinhos; na manhã seguinte iria
recuperá-la e partir rumo ao norte. Teve medo da solidão e do desamparo.
Antes do nascer do sol, o homenzinho
vermelho saiu com seu machado rumo à floresta; o amarelo subiu numa espécie de
tapete voador cheio de bugigangas e se encaminhou para a parte mais escura do
céu; o azul permaneceu em casa. Ravi do alto da montanha viu tudo.
Desceu até a casa dos cabeçudos para
pedir sua flauta de volta, e seguir seu caminho. Bateu à porta, esperando que o
azul lhe atendesse. Não houve resposta. Insistiu, mas de nada adiantou. Então,
de fora da casa, pediu, autoritário:
- Tenho que partir para o norte, mas
preciso da minha flauta, você poderia devolvê-la?
O azul apareceu à janela, seu olhar
denunciava medo. Ravi viu o homenzinho e retransmitiu o recado; agora sua fala
era um pouco mais doce e respeitosa. Após um grande silêncio, finalmente o azul
se pronunciou.
- A flauta não está aqui, o amarelo a
levou para vender no mercado dos Cogumelos.
- Mas a flauta é minha, ele não pode fazer
isso. E que mercado é esse?
- É o maior mercado da região. Fica do
outro lado das muralhas da cidade do Cogumelo.
- Não sei o que está falando, não
conheço nada neste mundo; quero minha flauta de volta.
O azul fechou a janela, deixando Ravi
resmungar sozinho do lado de fora. O menino manteve-se prostrado ao lado da
casa, esperando algum dos outros dois homenzinhos retornar.
Passadas algumas horas, o azul abriu a
porta e disse ao menino para entrar. Do lado de dentro o ambiente era bastante
exótico. Tudo na casa parecia ser orgânico. Os sofás, os armários, os
utensílios e prateleiras eram feitos de uma gosma gelatinosa que se assemelhava
a uma colônia de fungos. O cheiro era muito forte, e ficar lá dentro era
praticamente insuportável.
O menino, em incômodo olfativo
profundo, conversou com o homenzinho, que dos três parecia ser o mais bondoso.
Azul contou sobre sua origem, a casa, seus irmãos. Quis saber que outro mundo
era aquele que o garoto insistia em mencionar. Em pouco tempo de conversa, Ravi
percebeu que o azul tinha grande inteligência, e um raciocínio lógico capaz de
mesclar um número imenso de informações. Dentre os cabeçudos, era o mais
sensível, solitário e tristonho.
Os irmãos viviam naquela casa de
alvenaria a muitos anos. Foi um presente que receberam de guerreiros do norte.
Nunca souberam ao certo por que um povo tão diferente havia sido generoso com
eles. Diziam as más línguas que o pai dos cabeçudos havia enfeitiçado os
guerreiros, usando bálsamos dos mais diversos cheiros, para que eles se
tornassem escravos. Cabeçudo pai era um grande conhecedor dos fungos e das suas
propriedades mágicas, e no imaginário popular, teria habilidade, técnica e
astúcia para controlar qualquer criatura.
Quando jovem foi um curandeiro de
prestígio. Muitos acreditavam que ele falava com os deuses e que suas receitas
eram de ordem divina. Já no fim da vida seus filhos nasceram dos descalabros do
seu corpo depositados num vetusto tronco podre que ornamentava a sala. Os
cabeçudos eram cogumelos, geralmente nasciam de partes em decomposição de
outros cogumelos mais velhos. Todos eram assexuados, dessa forma a ideia de
família, com pai, mãe e filhos, de fácil acepção para Ravi e para a maioria das
criaturas do mundo da nuvem azul, para a sociedade do cogumelo carecia de
sentido. Sem diferenciação de gênero, os cogumelos estabeleceram outras
hierarquias. O tamanho da cabeça, por exemplo, refletia a idade e geralmente se
associava ao prestígio. Cogumelos com a cabeça muito grande eram legítimos
anciões. Já que a maioria dos cogumelos não vivia muito, ter o diâmetro da
cabeça duas vezes maior que o próprio corpo era sinal de uma vida auspiciosa e
isso ensejava respeito e admiração entre os mais jovens. Porém a forma mais
natural de hierarquização entre eles envolvia a coloração das cabeças. Cada
cogumelo nascia com cores específicas, e elas refletiam na personalidade. Entre
os cabeçudos, certas tonalidades de cabeça eram mais valorizadas que outras;
embora reconhecessem que o desenvolvimento da sociedade dependesse da
colaboração de todos. Quando alguma cor se tornava escassa, geralmente o povo
entrava em declínio. O violeta, e o roxo eram as cores de maior valor social,
pois associadas às habilidades públicas e religiosas. Na sociedade do cogumelo,
a maioria dos políticos, governadores e reis eram roxos; e entre os sacerdotes
o violeta era predominante. O marrom e o verde eram as tonalidades mais
numerosas e de menor prestígio. O pai cabeçudo era marrom, e durante a infância
nunca foi incentivado a conhecer os bálsamos ou qualquer outra propriedade com
teor curativo, tampouco lhe permitiram ingressar na escola sacerdotal,
instituição que formava cogumelos para a vida religiosa. No entanto aprendeu na
rua, no gueto a arte curandeirista. Com o tempo demonstrou-se um mágico, afeito
a todas as substâncias medicinais, e conhecedor nato dos mitos e crenças de
diversas culturas. Seu conhecimento e domínio da oratória gerou, entre seus
pares mais humildes, grande reputação; alguns o consideravam bruxo. Como
entendia diversos idiomas e tinha grande facilidade em relacionamentos sociais,
fez amizade com criaturas de várias espécies. Dentre seus amigos mais íntimos
estavam os guerreiros do norte. O intercâmbio afetivo entre o cogumelo e aquele
povo fez surgir o ardiloso boato de que ele, o pai cabeçudo, usando sua técnica
alquimista, os havia enfeitiçado. Ainda diziam que o feitiço tinha sido
imperfeito, uma vez que a casa oferendada aos filhos era tão incomum. De
alvenaria, passava muito longe de ser a habitação ideal a um cogumelo; já que
eles geralmente viviam em construções de madeira podre, feitos com restos de
árvores mortas; ou em casas de barro úmido, untadas por finas camadas de gosma
fúngica. Os três cabeçudos, no entanto, sempre viveram naquela casa; talvez a
única, habitada por cogumelos, com chaminé. Nutriam tênue lembrança do pai, e
sabiam mais sobre ele através das falácias espalhadas na cidade do que pelas
recordações. A morada, apesar de incomum por fora, no lado de dentro estava
perfeitamente adaptada ao feitio de seus moradores. Muita gosma, troncos
podres, líquens e fungos tornavam o ambiente interno agradável; e além de tudo
tinham a vantagem da chaminé. A superfície rochosa das paredes permitia o
cozimento de deliciosas iguarias. E se a maioria dos cogumelos cozinhavam em
caldeirões dispostos no quintão das casas; os irmãos cabeçudos podiam realizar
suas refeições junto ao aconchego caloroso do lar.
Ao contrário da maior parte das
criaturas, os cogumelos não se reproduziam através do vínculo afetivo e sexual.
Muitos só deixavam descendentes após a morte. Nestes casos os filhos cresciam
sobre o corpo do pai, e quando estavam preparados para criar autonomia, se
depreendiam do substrato do ascendente para, a partir de então, viver sozinhos;
sem a tutela direta da autoridade familiar. Para a sobrevivência da espécie,
muitos cogumelos passavam a vida preparando o terreno para que seus filhos, que
dificilmente conheceriam, pudessem sobreviver. Construíam casas ideais aos
pequenos cogumelos, abastecidas de condimentos e utensílios primordiais a
primeira infância. Como cresciam sem pais, o vínculo com os irmãos era bastante
forte, e a relação sempre se iniciava de forma horizontal; entre eles não
existia qualquer hierarquia de poder. Porém, com os primeiros contatos sociais,
com cogumelos mais velhos e adaptados à cultura; a relação horizontal aos
poucos se enfraquecia. Como a cor das cabeças determinava a personalidade, a
depender da coloração alguns cogumelos assumiam o controle da família de
irmãos, estabelecendo laços de autoridade e poder. Os roxos ou violetas geralmente
controlavam os demais, e a autoridade da vida privada quase sempre se estendia
à vida pública. Com o florescimento das sociedades de cogumelo, este pequeno
fator biológico se galvanizou, e entre eles o valor da igualdade não era
inteligível. A depender da coloração, a vida de alguns era mais cômoda e nobre
do que a de outros; porém o local de nascimento, a origem nada significava em
termos de estruturação social; o que os desigualavam não era o berço, mas o
fator biológico arbitrário de suas cabeças.
Entre os três irmãos cabeçudos,
todavia, existia certa consistência solidária. Primeiro que nenhum dos três
tinha a predisposição biológica e cultural do comando, nenhum era roxo ou
violeta; segundo, e talvez mais importante, porque cresceram afastados da
cidade e com contato menos intenso com outros de sua espécie. Quando nasceram,
seu pai ainda vivia; mas antes de adquirirem autonomia, de se depreenderem do
substrato que lhes davam vida, o alquimista morreu. Dessa forma a influência
paterna foi quase insignificante, e a igualdade entre os três, em termos de
poder e decisão, era quase genuína.
O pai cabeçudo, antes de morrer, como
já tinha deixado descendentes - os filhos cresciam em parte do corpo que se
soltara ainda em vida - decidiu viajar às terras vulcânicas, para que sua
matéria se consumisse com as chamas. Para o velho cogumelo era a passagem mais
digna para o mundo dos mortos, e ter o corpo queimado seria uma espécie de
transformação. Talvez tivesse este pensamento tão incomum devido ao seu intenso
contato com outras culturas. Mas entre os cogumelos, a atitude do velho
alquimista era um vilipêndio de alguém sucumbido à loucura.
A longa vida do pai cabeçudo foi cheia
de aventuras e aprendizados. Poucos viveram tantos anos quanto ele; no seu
tempo, tinha a maior e mais proeminente cabeça. Tanto é verdade que teve o raro
privilégio de ter filhos em vida, muito embora não tenha conseguido vê-los
crescer. Entre os membros do seu povo, ver o desenvolvimento dos filhos
dificilmente seria encarado como uma dádiva divina, mas para ele, insuflado
pelos mitos de outros homens e criaturas, olhar para os filhos no desabrochar
da gestação tinha um valor simbólico inestimável. Morreu e viveu de forma boa,
dentro daquilo que aprendeu a amar e acreditar; rompeu paradigmas e
preconceitos. Para alguém tão desprivilegiado pelo árbitro da natureza, que lhe
fez marrom, quase o condenando a uma vida de miséria e ostracismo, suas
andanças pelo mundo, suas amizades e prestígio entre os mais humildes foi uma
grande graça de Deus.
O cabeçudo azul conversou com Ravi com
consistência objetiva, revelando cada detalhe da cultura cogumelo com teor
lógico e matemático. Em pouco tempo o menino aprendeu muito sobre aquela
sociedade tão incomum. O azul, que se chamava Bleu, mostrou-se bastante
sensível, e extraordinariamente compreensível com o estrangeiro. Explicou como
funcionava a estruturação social da sua comunidade e como cada cor desempenhava
sua função.
Os cogumelos tinham diversas
tonalidades. Existiam os roxos, violetas, amarelos, verdes, marrons, vermelhos,
azuis, laranjas e brancos; além dos híbridos, que eram aqueles que possuíam
pares de cores alternadas. Para estes últimos, muito raros, o sanatório ou a
morte prematura era bastante comum, de forma que não recebiam assistência e não
tinham suas habilidades reconhecidas pelo estrato social. Por serem raros, a
cada geração apenas meia dúzia chegava à vida autônoma, fora dos substratos,
não participavam da vida pública e poucos se interessavam por eles. Alguns
viviam escondidos no âmbito privado, outros fugiam para ganhar a vida
solitários em regiões e paisagens diversas do mundo da nuvem azul. Os brancos
eram considerados deficientes. Não conseguiam aprender a linguagem e tinham
problemas na locomoção. Apesar de suas falhas cognitivas, eram protegidos
juridicamente e respeitados por todos. A estima nutrida por eles estava
associada ao mito de criação estudado e propagado pelos sacerdotes. Para os
cogumelos, sua espécie teria nascido de um gigantesco cogumelo branco que
abdicou da racionalidade para dar vida aos demais. Dessa forma, os brancos eram
associados à pureza; e o nobre espírito dessa cor era louvado como uma dádiva
divina.
A religião na sociedade do cogumelo
ditava todas as formas de organização. Na aurora da sociedade, acreditavam que
o universo era composto apenas pelo cogumelo branco gigante pairando sobre o
vazio absoluto. Do corpo dessa entidade divina foi criado o mundo e todas as
outras criaturas, da cabeça surgiram os cogumelos. No início, os primeiros
cabeçudos tinham sido dotados de um código moral imutável, e, de geração em
geração, essas leis eram retransmitidas. Com o advento da escrita, estas regras
foram sistematizadas num grande texto sagrado, que além do relato da criação e
do código moral, contava um pouco da história daquele povo. Desde então o texto
serviu de base para as interações sociais e a para a organização política. Nele
se estabelecia as funções de cada cor, tratando os híbridos como seres
imperfeitos, nascidos de forças diabólicas e associados ao mal. Nas escrituras
sagradas Deus era branco e gigantesco, cheio de luz, clareza e verdade. Sua
antítese era a primeira criação. Um minúsculo cogumelo multicolorido,
imperfeito e associado ao mal. Daí surgiu a fantasia de que os híbridos eram
criaturas pérfidas e loucas, motivados pela perversão e maldade.
Com o florescimento das ciências, as
escrituras sagradas começaram a ser questionadas, nas instituições de ensino
mais progressistas, todos os educadores e a maior parte dos alunos já não
acreditavam mais nos mitos criacionistas; e entre eles começavam a surgir teses
que refutavam a utilidade social da estratificação que exortava cada cor a
desempenhar um papel específico na sociedade. Os mais radicais chegavam a
defender os direitos civis, jurídicos e políticos dos híbridos; mais ainda eram
vozes minoritárias, com pouca ressonância no mundo da vida.
Os azuis eram maioria entre os
professores e cientistas. A cor se associava à racionalidade e à inteligência
lógica e matemática. Bleu era um exemplo claro dessa aptidão, comungava
inclusive com as ideias revolucionárias dos mais radicais pesquisadores; e
muito embora não tenha tido formação institucional e acadêmica - vivia com os
irmãos uma vida campesina - estava sempre conectado às teses sociais mais recentes.
O amarelo, sempre que ia à cidade negociar, trazia os livros e revistas de
ciência recém-publicados para o irmão. No campo, tinha a função de organizar a
rotina, o plantio, a colheita; descobrir os melhores locais de venda; a melhor
dieta para cada estação; além de projetar utensílios e materiais que ajudassem
nas demais tarefas diárias. O próprio tapete voador, usado como meio de
transporte, foi criado por ele. Misturou diversas essências a um pano de
densidade muito baixa. Depois de muito estudo e tentativas conseguiu criar o
tapete que aos olhos de estrangeiros pareceria mágico.
O amarelo, chamado Giallo, se
responsabilizava pelos negócios e finanças dos irmãos. Toda semana ia a cidade
trocar aquilo que produziam e achavam por outras mercadorias. Tinha imensa
habilidade linguística e era um negociador nato. Sabia os meandros da pechincha
e quase sempre levava vantagem em suas trocas. Também gostava de música, e,
entre os instrumentos, o que mais o inebriava era a flauta. Era conhecido como
um mestre da ilusão, falar mentiras ou propagar falácias fazia parte da sua
personalidade. Na sociedade do cogumelo, os amarelos eram, geralmente,
comerciantes; alguns advogados, apostadores ou artistas.
O vermelho, de nome Colère, realizava o
trabalho braçal. Plantava, preparava o solo, colhia. Estava sempre com seu
machado em mãos. Tinha o temperamento muito explosivo e raivoso. Amava os
irmãos incondicionalmente, no entanto, não conseguia expressar o sentimento com
facilidade. Tinha o espírito persecutório, e, para qualquer nódoa de ameaça,
fazia de tudo para proteger seus afetos e a casa. Era desconfiado, tinha medo
de tudo, muito embora disfarçasse o defeito com valentia e ímpeto
recalcitrante. Sua cor ocupava as patentes mais altas do exército e da polícia.
Alguns eram engenheiros ou artesãos. Muitas das modificações feitas na casa de
alvenaria foi obra de Colère.
Bleu contou tudo ao menino. Ravi logo
se afeiçoou à estranha criatura. Depois de algum tempo de prosa, Colère chegou
batendo a porta em ira descomunal.
- O que faz em minha casa? Já te
expulsei, mas pelo visto terás que sentir a fúria do meu machado para entender
o que lhe foi dito.
- Acalme-se irmão, o menino veio em
paz. Queria sua flauta de volta. Ele é gentil e inofensivo, podemos abrigá-lo esta
noite.
- Bleu, não seja ingênuo; ele está te
ludibriando para, na calada da noite, nos roubar.
Ravi, depois de tudo que soube sobre os
cogumelos, não teve mais medo do ímpeto de Colère. Falou docilmente que apenas
esperaria Giallo voltar com sua flauta para seguir viagem. Agradeceu a
companhia do cabeçudo azul, pediu desculpas ao vermelho; e disse que esperaria
no alto da montanha, local que passara a última noite. A atitude foi sensata já
que não mais aguentava o cheiro do interior da casa.
Ao ver Giallo chegar, desceu a montanha
e bateu a porta dos cabeçudos. Nesta altura o amarelo já estava à parte do
ocorrido. Abriu a porta, e deixou que o garoto entrasse. Em sorrisos, disse
chistoso:
- Meu amigo, vejo que ainda nos faz
companhia. Queria te lembrar que nosso acordo ainda está de pé. Se disseres
onde encontrou a flauta, te levaremos pra casa. Hoje mesmo conversei com um
ancião na cidade, um antigo afeto do meu pai. O Senhor Green, exímio viajante,
conhece muito bem as localidades mais longínquas. Disse que para chegar a
França, a bela França, precisa atravessar o deserto de gelo que fica a oeste
das perigosas terras da feiticeira Kundrum. O caminho até lá é absconso. Eu
diria que poucos ousariam entrar no território negro da feiticeira; no entanto,
o nobre Senhor Green conhece criaturas dispostas a auxiliá-lo. Se me deres a
informação correta, arranjarei os meios para que possa voltar pra casa em
segurança.
- Feiticeira? Um andarilho me falou
sobre uma feiticeira. Talvez eu precise cruzar com ela para concluir minha
jornada. Mas, Giallo, eu realmente não sei nada sobre as ruínas das criaturas
negras. Por favor, acredite em mim.
Desapontado, o amarelo ficou alguns
minutos sem reação; em pouco tempo, porém, desenvolveu novo raciocínio:
- Ok menino, suponhamos que esteja
dizendo a verdade. Posso pedir ao Senhor Green que lhe arranje escudeiros para
sua longa viajem até a França; no entanto ele me cobrará um preço. Eu e meus
irmãos não podemos pagá-lo. Se passares algum tempo com ele, ajudando-o em
alguns afazeres domésticos, talvez ele concorde em lhe fornecer o subsídio
necessário. Estou sendo muito generoso contigo, mas às vezes fico com coração
mole.
Na verdade, Giallo tinha uma pequena
dívida com Senhor Green, algumas promissórias não pagas que o velho ancião
ameaçava levar à justiça. Nem mesmo seus irmãos sabiam da dívida. Acreditava
que o menino poderia servir ao seu credor como escravo por algum tempo em troca
do perdão da sua inadimplência. O astuto amarelo mais uma vez tentava levar
vantagem, no entanto esqueceu de um pequeno detalhe, a flauta. Ele acabara de
entregar o instrumento ao velho, abatendo parte da dívida.
- Obrigado. Mas antes de ir, queria
minha flauta de volta.
Giallo ficou desconcertado, mas não se
abateu, concluindo a farsa:
- Ah... sim, a flauta! Eu emprestei ao
Senhor Green, ele é um grande apreciador da música e um instrumentista de
talento. Irá adorar saber que a flauta lhe pertencia. Mas de princípio não
comente nada sobre ela, se disser que o instrumento é seu, ele não permitirá
que parta, provavelmente tentará te ensinar por anos tudo que sabe de música.
Portanto, te aconselho que só reivindique a flauta quando já estiveres com tudo
pronto para a partida.
Ravi ficou um pouco confuso e
desconfiado, porém resolveu acreditar no discurso nada atilado do seu
interlocutor. Combinaram de ir à cidade pela manhã. Os três irmãos iriam juntos
para convencer o velho e cuidar de outros assuntos.
O menino, após nova noite fria, foi até
a casa de alvenaria esperar os irmãos. Os três apareceram em cima do tapete;
Colère aparentava estar descontente, não gostava de ir à cidade, já que não
podia levar seu machado. Ravi subiu no transporte e com grande prazer admirou a
paisagem.
Do alto tudo parecia mais belo. A
vegetação do lugar se assemelhava a uma estepe ou cerrado, as árvores eram
pequenas e permeadas por longos campos de gramíneas. O solo alaranjado
combinava com perfeição ao céu de coloração semelhante, e a nuvem azul dava um
contraste inebriante àquela atmosfera fantasiosa.
Quando chegaram às muralhas que
cercavam a cidade, pousaram. Não podiam trafegar com o artefato voador pelas
ruas do local, havia uma lei proibindo tal artimanha. Os muros eram de madeira
maciça e aparentavam bruta rigidez. Anunciaram a chegada antes dos portões se
abrirem. Ravi percebeu que dois guardiões vermelhos, com cabeças um pouco
menores que a dos irmãos, tomavam conta da entrada. Vestiam roupas pretas e
carregavam à cintura objetos que pareciam ser armas.
A medida que adentravam a cidade, o
cheiro forte ficava, ao olfato de Ravi, cada vez mais insuportável. Percebeu
que precisaria de alguma máscara para resistir ao odor. Muitos cogumelos
trafegavam pelas ruas cheias de lojas e ambulantes. A maioria dos vendedores
eram amarelos; dentre os consumidores, os roxos estavam mais bem vestidos.
Muito embora o garoto não soubesse avaliar a qualidade das vestimentas daquele
povo, conseguia notar diferenças a depender da coloração da cabeça. Muitos
marrons estavam deitados ao chão, eram, obviamente, mendigos. As casas e
construções eram feitas de uma gosma verde muito estranha, e por todos os lados
existiam pedaços gigantescos de árvores mortas. O amarelo informou ao garoto
que estavam no subúrbio da cidade, local onde o comércio era efervescente. Os
palácios e os prédios públicos, incluindo o parlamento, a universidade e a
catedral, ficavam mais ao centro; eram construções suntuosas, de encher os
olhos de qualquer visitante.
Alguns cogumelos olhavam para o menino
desconfiados. Malgrado fosse permitido e até comum a visita de estrangeiros;
aquele povo estava pouco afeito à espécie de criaturas humanas. Antes de chegar
à casa do Senhor Green, foram abordados por um policial de cabeça vermelha um
pouco maior do que a deles.
- Quem é essa criatura? O que ela faz
aqui com vocês? Por acaso tem documentos?
- É um amigo que veio prestar serviços.
Está de passagem e logo irá embora. Sua raça não confecciona documentos, mas
posso garantir que ele é ordeiro - disse Giallo com voz amena.
- Tudo bem, mas se ele passar a noite
na cidade terá que ir até a unidade policial para formalizar sua estadia.
- Sim, cumpriremos a ordem. - Colère
respondeu, se antecipando ao irmão.
O amarelo, após se livrarem do
policial, fingiu, mesmo com os resmungos insistentes do irmão vermelho, que a
ordem não tinha sido dada. Para ele aquela formalidade burocrática não tinha
importância. Acreditava que não seriam abordados por outro policial. Bleu não
se manifestou, e a contenda ficou por isso mesmo.
A paisagem exótica e aquele cheiro
estavam confundindo os pensamentos de Ravi. No meio de uma das movimentadas
ruas que percorriam, o menino, para espanto dos cabeçudos, perdeu a
consciência. O desmaio poderia ser um mero achaque ou um grande envenenamento.
FG
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