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Aventuras de Ravi - XXV

Passou o resto da semana na companhia de Jan e Kowalski. Estudou para se sair bem nas palestras, foi bem alimentado e tratado com esmero. Depois de tudo, e daquele rebombar de informações, nem se lembrava mais de Veronika. Para ele, ela viveria se alimentando do sonho ocidental e, talvez, sendo vítima das consequências burlescas do seu fascínio pela "Pilka Nozna". 

No dia marcado para as palestras, Kowalski o levou para o centro de convenções, prédio mais espaçoso de Varsóvia onde, geralmente, aconteciam os maiores eventos políticos. Numa sala com capacidade para mil pessoas, Philippe aguardava a chegada dos jogadores. Aos poucos eles iam entrando; eram tantos e tão jovens - aparentavam ter a idade de Veronika - que o francês teve uma ligeira vontade de exílio, porém logo passou. Enfim, mesmo se tratando de uma farsa, colocaria em prática seu maior talento. 

Falava sem parcimônia, a cada nova história, a cada tópico sibilava com mais entusiasmo; seu ardor por teologia era tão intenso que o fazia exsudar. A maior parte da plateia ouvia tudo atentamente, muitos semblantes refletiam encantamento. O francês nascera para ensinar, tinha o dom e o fervor divino escorrendo por todos os poros. Os adultos que acompanhavam o sermão, funcionários de alta patente responsáveis por fiscalizar o teor de cada frase pronunciada, também se assombravam com tamanha depuração discursiva. Estavam todos presos pela força e altivez de suas palavras.

Findado o primeiro encontro, governistas e católicos ficaram contentes com o desempenho de Philippe; afinal a estratégia de ambos os lados, neste primeiro momento, era a mesma; converter os atletas à verdade de cristo. Enquanto os encontros se sucediam, Wojtyla e Kowalski tentavam descobrir os planos do ministério. Por ser funcionário do governo, o velhinho parecia estar mais próximo das pistas. Sempre que podia, vasculhava os documentos ministeriais em busca de alguma informação. Nesta sua atividade investigativa, a ficha do francês, contando detalhes de sua vida e da sua relação com familiares, foi um trunfo que mais tarde Wojtyla usaria como base de interpretações. Na véspera do último encontro entre o homem rinoceronte e os jovens poloneses, quando o cerco já se fechava, os dois, com a ajuda de Jan, debatiam.

"Aqui diz que Philippe nunca teve contato com nenhuma mulher, eles insistem neste ponto. Nenhuma namorada ou amizade feminina. Sua relação com a mãe era de respeito, porém, tanto na infância quanto na adolescência, era o pai que lhe ensejava estima. Seu apreço pelas virtudes cristãs é fruto dos ensinamentos paternos, e a deferência aos mais humildes observava a origem do progenitor." - analisava o cardeal, curioso.

"O que quer dizer?" - perguntou Kowalski

"Não sei, mas olha só o que diz aqui." - Apontou para o papel e leu em voz alta. - "As inclinações políticas de Laura, e seu apreço pelas observações críticas da realidade burguesa, sempre lhe causaram ânsia. O padre detesta o feminino, acha que as mulheres podem levá-lo a ruína." - Fez uma cara exclamativa ao ler o trecho final, e continuou. - "Está vendo, o partido acha que as mulheres podem desviar Philippe da retidão. É isso que irão fazer, utilizarão alguma mulher para conduzir nosso garoto ao enxovalho, à humilhação, à desonra na frente de seus alunos. E se conheço bem estes canalhas, estão planejando algo sanguinolento."

"Mas como farão isso?" - Kowalski parecia perdido com a frase retórica que não saberia responder.

Com o silêncio dos dois homens, Jan, que ouvia atentamente tudo, se manifestou com uma palavra solitária:

"Veronika!"   

O grandalhão era esperto o suficiente para saber, após tantos dias no encalço do francês, que aquela mulher despertava algo no jovem sacerdote. Conversaram sobre a possibilidade dos agentes do governo responsáveis pela tramoia também terem acesso a estes detalhes. Jan confirmou que outros homens, não tão cuidadosos quanto ele, também seguiram Philippe em seus primeiros dias na Polônia. Agora, tinham quase certeza que Veronika faria parte do plano.

"Jan, vá atrás dessa moça e traga ela até nós" - disse Wojtyla em tom imperativo.

"A esta altura, o governo já a cooptou. Seria inócua a busca." - resmungou o velhinho.

"Não custa tentarmos".

Jan saiu à procura. Já sabia onde ela morava e quais seus lugares favoritos. Tinha investigado o assunto, quando percebeu o interesse de Philippe pela rapariga. O grandalhão era muito forte, porém sua principal característica não era a robustez dos músculos, e sim a eficiência.

Veronika, desde que deixara a cidade dos pais para estudar na capital, morava num apartamento com duas primas. A moça não estava em casa, e o lugar se encontrava vazio. Jan aproveitou para invadir o ressinto em busca de alguma pista. Encontrou um diário, foi o suficiente. Ele estava escondido abaixo do assoalho e dificilmente alguém sem a visão de lince de Jan conseguiria achá-lo. Deixou a morada e foi a um café para, em tranquilidade, ler o conteúdo do caderninho; poderia achar algo precioso.

A última anotação era do dia anterior, e tinha uma importante revelação.

Tenho que me esconder, aqueles calhordas do governo quase me pegaram. Se ficar aqui serei capturada. Mas o que eles poderiam querer comigo? Malucos! Não te levarei comigo, meu querido diário. Não fique chateado, irei te esconder onde ninguém conseguirá achar, dessa forma ficará mais seguro, pois caso eu seja capturada e você estiver comigo, eles irão descobrir tudo sobre nós.

Continuou a ler e foi descobrindo alguns detalhes interessantes. Nas últimas semanas a menina relatara a sensação de estar sendo seguida. Achava que Philippe estava a mando do governo polonês para investigá-la. A expressão do francês, segundo as próprias palavras registradas no diário, causavam-lhe ânsia de vômito. A repulsa da garota era tão grande que Jan ficou apreensivo. Ela desprezava o partido, mas odiava ainda mais o jovem sacerdote. Aparentemente, Veronika não sabia a verdadeira identidade de Philippe. No instante que ficou a pensar no café, não saberia dizer se aquilo seria bom ou ruim.

Voltou ao encontro de Wojtyla e Kowalski. Entregou o caderninho aos dois e ficou a observar a conversa.

"A garota sumiu. Isso explica tudo" - disse o velhinho. A poucos minutos atrás, Kowalski soube que a última palestra seria adiada. - "Eles querem ganhar tempo. Precisamos saber se irão tentar achar a garota ou se planejam um plano B."

"Eles estão atrás da garota. São muito incompetentes para pensarem em outra estratégia. Temos que achá-la primeiro e tentar convencê-la a ficar do nosso lado." - Olhou para Jan e ordenou - "Vá em frente, faça seu trabalho."

FG   

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