A mulher havia sido abandonada pelo companheiro antes mesmo de se saber grávida. Desde então vivia sozinha, trabalhando em sua pequena lavoura. As restrições físicas imposta pela gravidez fez com que a mulher diminuísse aos poucos suas atividades e nos últimos dias estava se alimentando apenas com o que havia estocado nos meses anteriores. Ancian descobriu que a mulher se chamava Li, e sua origem era o norte da China. Alguns anos antes havia mudado com o antigo companheiro para aquelas terras incultas, e lá passaram a viver de subsistência, até que o homem a abandonou e ela teve que se virar sozinha.
"Nunca pensou em se mudar para a cidade? Lá teria mais recursos, ao menos encontraria pessoas para ajudá-la." - Solfejava Ancian, num mandarim quase perfeito.
"Passei a vida me virando sozinha. Não preciso que outros se intrometam nas formas que faço e rearranjo as coisas. Além disso, se chegasse sozinha e grávida em qualquer aldeia, homens como tu certamente me excluiriam da vida em conjunto. Além de carregar o peso de ser mulher e de ter que conduzir minha existência, também tenho que dar conta da minha própria natureza que projetou outra vida dentro de mim." - Li falou em augúrios pesarosos.
Philippe, sem entender o que os dois conversavam, acompanhava os sons ininteligíveis, observando a mulher com um olhar que poderia ser tanto malicioso quanto cândido.
"Tem razão, às vezes a solidão é o caminho mais seguro. Admiro sua força e coragem."
Li se levantou, parecendo aborrecida. Disse que estava cansada e que precisava repousar. Os homens ficaram na sala; o francês quis saber o que haviam conversado.
"Li contou um pouco sobre sua vida; ela é uma grande mulher."
"Não sabe nada sobre meu filho, nenhum rastro?"
"Não, não viu seu filho; mas amanhã vamos achá-lo."
"Não posso perder meu tempo descansando nesta casa, enquanto Ravi está perdido, talvez passando frio e sentindo dores."
"Não conseguirá encontrá-lo no meio da noite. Lá fora está um breu total, é melhor esperar o nascer do dia."
O homem rinoceronte resignado esperou. Não conseguiu pregar os olhos, a inquietação o consumia. No meio da noite, ouviu pequenos suspiro de dor; fingindo dormir percebeu que a mulher deixava a mansarda rumo à escuridão da floresta. Sem se conter, a seguiu.
No sopé de uma grande árvore, Li se preparava para dar a luz. Agachado atrás de uma moita de bambu, Philippe, como um voyer, observava tudo. A medida que os gemidos da mulher ficavam mais tormentosos e audíveis, o homem sentia uma estranha sensação de prazer; a delicadeza indescritível do momento o conduzia perversamente ao gozo. Talvez pudesse ajudar a mulher, talvez pudesse intervir naquele misterioso rompante da natureza. Mas não quis interromper seu próprio deleite, ver Li naquela pujança de vida, intumescia fervorosamente seus movimentos; ficou silente para não perder o menor detalhe daquela sublimação.
Os minutos foram passando, as horas foram passando. Para a mulher era como se o tempo não fizesse distinção, o intervalo de segundos era tão denso quanto memórias de anos a fio. Para o homem que espionava, o tempo era marcado por curvas que oscilavam entre o medo, o prazer e o fastio. Quando os gritos tomaram contornos mais agonizantes, Philippe quase se levantou da moita de bambu em auxílio; para ele era impensável uma mulher parir sozinha. Mesmo virgem Maria, imaculada pela graça divina, teve a ajuda de José; por que Li, então, escolhera carregar este fardo tão pesado? Por que insistira em dar a luz sozinha? A criança talvez não sobrevivesse às cruezas da natureza. A noite estava fria, e quando aquele pequeno ser chegasse ao mundo precisaria de muitos recursos; água para se lavar, mantas, cobertores, algo para proteger a cabeça; mas Li não tinha nada, era só ela e a escuridão.
Pensou em chamar Ancian, talvez o senegalês tivesse mais tino para intervir da forma certa naquele momento tão delicado; porém, o medo de ser descoberto pela mulher o mantinha estático a observar. O prazer, interrompido por momentos de preocupação, sempre retornava; e, em êxtase de desentendimento, voltava a contemplar. Nestes instantes, Li, a criança, o ímpeto em oferecer ajuda ou chamar Ancian desapareciam.
A mulher, tão absorvida nas contrações do parto, não conseguia apreender nada ao redor. O chilrear da coruja, os uivos do vento, o chiado de insetos e outros animaizinhos noturnos não lhe perturbavam os sentidos. De cócoras, apoiada à árvore, parecia sentir todas as dores do mundo; mas estas dores eram diferentes, inigualáveis; eram dores de vida. Li tinha uma intuição profunda que seu filho chegaria ao mundo no momento certo e que seu corpo saberia, por conta própria, auxiliá-lo na valorosa tarefa. Deixava a energia fluir, apenas controlando o ritmo respiratório, através de gritos e gemidos intensos. Sua seiva interna manava de suas entranhas e ela conseguia sentir o moroso e sublime desabrochar da pétala.
Num instante, o vórtice de sangue e matéria transbordou da mulher. A descarga de dor produziu lágrimas, brados, raiva e exultação. Li estava exausta e tinha uma criança sobre os braços. O calor de seu corpo a protegia. Em minutos seu peito forneceria alimento, e o ciclo contínuo da vida se tornaria perfeito. Sozinha, apenas ela, a mulher, conseguia entender o transformar da natureza. Seu bebê, sem pertubações, se encontrava pleno. Era uma menina, e, tal como a mãe, teria de enfrentar o mundo.
FG
Os minutos foram passando, as horas foram passando. Para a mulher era como se o tempo não fizesse distinção, o intervalo de segundos era tão denso quanto memórias de anos a fio. Para o homem que espionava, o tempo era marcado por curvas que oscilavam entre o medo, o prazer e o fastio. Quando os gritos tomaram contornos mais agonizantes, Philippe quase se levantou da moita de bambu em auxílio; para ele era impensável uma mulher parir sozinha. Mesmo virgem Maria, imaculada pela graça divina, teve a ajuda de José; por que Li, então, escolhera carregar este fardo tão pesado? Por que insistira em dar a luz sozinha? A criança talvez não sobrevivesse às cruezas da natureza. A noite estava fria, e quando aquele pequeno ser chegasse ao mundo precisaria de muitos recursos; água para se lavar, mantas, cobertores, algo para proteger a cabeça; mas Li não tinha nada, era só ela e a escuridão.
Pensou em chamar Ancian, talvez o senegalês tivesse mais tino para intervir da forma certa naquele momento tão delicado; porém, o medo de ser descoberto pela mulher o mantinha estático a observar. O prazer, interrompido por momentos de preocupação, sempre retornava; e, em êxtase de desentendimento, voltava a contemplar. Nestes instantes, Li, a criança, o ímpeto em oferecer ajuda ou chamar Ancian desapareciam.
A mulher, tão absorvida nas contrações do parto, não conseguia apreender nada ao redor. O chilrear da coruja, os uivos do vento, o chiado de insetos e outros animaizinhos noturnos não lhe perturbavam os sentidos. De cócoras, apoiada à árvore, parecia sentir todas as dores do mundo; mas estas dores eram diferentes, inigualáveis; eram dores de vida. Li tinha uma intuição profunda que seu filho chegaria ao mundo no momento certo e que seu corpo saberia, por conta própria, auxiliá-lo na valorosa tarefa. Deixava a energia fluir, apenas controlando o ritmo respiratório, através de gritos e gemidos intensos. Sua seiva interna manava de suas entranhas e ela conseguia sentir o moroso e sublime desabrochar da pétala.
Num instante, o vórtice de sangue e matéria transbordou da mulher. A descarga de dor produziu lágrimas, brados, raiva e exultação. Li estava exausta e tinha uma criança sobre os braços. O calor de seu corpo a protegia. Em minutos seu peito forneceria alimento, e o ciclo contínuo da vida se tornaria perfeito. Sozinha, apenas ela, a mulher, conseguia entender o transformar da natureza. Seu bebê, sem pertubações, se encontrava pleno. Era uma menina, e, tal como a mãe, teria de enfrentar o mundo.
FG
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