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Aventuras de Ravi - XXIV

Kowalski entrou no quarto, lhe entregou roupas limpas e pediu que o acompanhasse. Saíram de um prédio antigo  e entraram num automóvel.

"Estamos indo ao ministério das relações institucionais. Lá será interrogado. Eles irão te perguntar sobre o funcionamento da Igreja na França. Diga tudo que sabe, não esconda nenhuma informação. Depois irão te pedir apoio num experimento envolvendo a seleção polonesa de futebol. Sugiro que aceite o convite. Demonstre temor."

"Eu não entendo o que se passa. O cardeal Wojtyla disse que iria me explicar o que está acontecendo."

"A noite encontrará com ele. Agora apenas peço que siga meus conselhos."

Chegaram no ministério. Philippe foi bem recebido por meia dúzia de funcionários sorridentes. Cumprimentou amistoso cada um deles. Depois se reuniu sozinho com o ministro. Este parecia não muito interessado, porém, durante a sessão de perguntas, seguiu uma espécie de cartilha que carregava sobre os braços. O francês respondeu as perguntas, sem se esforçar para parecer convincente, tentou esboçar temor, não obteve sucesso. Estava desconfortável, mas não tinha medo. O ministro perguntou se ele poderia realizar uma série de palestras com jovens futebolistas de potencial, que em breve poderiam ingressar na seleção do país. Deveria ensinar os evangelhos, falar sobre fé e resumir a história da Igreja. Concordou e se colocou à disposição. O encontro não demorou muito. As palestras foram programadas para a semana seguinte. De volta ao prédio de origem, reencontrou, junto a Kowalski, o cardeal. Jan também estava presente.

"Tudo certo no ministério?" - perguntou Wojtyla.

"Sim, as palestras já foram agendadas."

"Ótimo! Agora rapaz irei contextualizar o que está acontecendo. O governo polonês pretende realizar um experimento com jovens jogadores. Já fizeram isso anos atrás, seguindo outra estratégia. Eles querem cooptar estes meninos para intensificar uma cultura laica no país. Num primeiro momento precisam que eles aprendam a palavra de Deus, são todos muito jovens, suas escolas não lhes transmitiram os valores cristão. Precisam de você nesta tarefa."

Confuso, Philippe interrompeu a fala de seu interlocutor:

"Mas por que eu? Poderiam pedir a qualquer outro cristão para ministrar as palestras."

"Eles precisam de um francês e de preferência jovem. Sua vinda a este país já estava pré-determinada. Já ouviu falar em Dabrowski?" - o missionário fez que não com a cabeça - "Foi um militar que, com a ajuda das tropas francesas de napoleão, ajudou a expulsar os prussianos do país. Ele é bastante conhecido e idolatrado por aqui; o antigo hino nacional mencionava esta história, mas infelizmente alguns anos atrás a cúpula do governo, com interferência direta de Stálin, mudou a canção. Hoje em dia, em qualquer evento oficial, executam outra música, mas afinada com a ideologia stalinista. Enfim, o importante é que saiba que Dabrowski ainda continua muito vivo no imaginário popular, sua ligação com a França gera simpatia do meu povo com o seu, compreende? É isso que eles querem mudar."

"Mas como?"

"Acalme-se, já chegarei no ponto. Todos os meninos selecionados à experiência conhecem Dabrowski, aliás todo polonês conhece Dabrowski. Por isso nutrem simpatia pela França. Por ser francês criará uma atmosfera de empatia entre vocês, e suas palavras serão absorvidas com maior vivacidade. Você ensinará o evangelho e eles acreditarão no que fala. Serão convertidos, entende? Depois, e essa é a parte mais complicada, irão fazer com que traia a confiança deles. A ideia é associá-lo a Dabrowski, aquele que trouxe a libertação, para por fim desmascará-lo. A decepção gerada nestes meninos farão com que eles odeiem Dabrowski, o cristianismo e a França. Muitos, no futuro, serão jogadores da seleção, e é importante que eles desprezem o passado burguês individualista da Polônia e odeiem a cultura cristã. Jogadores da seleção são ídolos e ídolos têm as ideias seguidas, compreende?"

Philippe ficou interrogativo. Eram muitas nuanças e pontos soltos naquela história. Ao contrário do dia anterior, o cardeal Wojtyla não transmitia confiança. Sua fala era intercortada e sua expressão severa.

"De que forma irão fazer para que eu traia a confiança dos meninos?"

"É isso que precisamos descobrir e impedir, por isso estamos te instruindo."

"Ontem falou coisas vagas, não entendi o que se passou no restaurante e não me explicou." 

"Quando descobrimos que o governo polonês tramava este plano e que teria ajuda de setores da Igreja na França, tentamos interferir. Conseguimos, graças a ajuda de alguns bispos parisienses, rearranjar a escolha. A princípio não seria o escolhido. No entanto, não pudemos confiar de imediato em você; o governo poderia ter nos dado um nó. Era importante nos certificar de que não sabia de nada. Quando conversou com Lato, aquele simpático jogador da seleção, tivemos certeza da sua lisura. Uma das regras mais fundamentais era a descrição; o governo não queria que você revelasse sua condição de padre para ninguém até que chegasse o momento oportuno. Se não quebrasse esta regra naquele momento, ainda suspeitaríamos. Desde que chegou aqui, Jan tem seguido seus passos. Tínhamos dúvidas, muitas dúvidas. Quando revelou o sacerdócio, Jan agiu rápido, te apagou simulando violência; o golpe foi suficiente para derrubá-lo, porém não te machucou; ele foi treinado para este tipo de circunstância. Os agentes do governo não desconfiaram de nada. Na verdade tudo foi uma imensa simulação. Lato estava agindo em nosso nome, é o único jogador que se posiciona contrário a este movimento do governo, obviamente mantêm suas concepções públicas longe dos holofotes. Ele usou seu domínio do francês pra descobrir se sabia de algo, como os outros fregueses não entenderam o teor da conversa de vocês, ele pôde dar prosseguimento à farsa. Chamou o garçom e inventou qualquer coisa pra te expulsarem do bar, foi neste momento que Jan agiu. Kowalski, que trabalha para o ministro de relações institucionais e nos apoia nesta causa, fez um relatório detalhado do incidente; não desconfiaram de nada e você continua como cobaia da experiência que pretendem aplicar."

"Mas por que setores da Igreja apoiariam o governo polonês nesta descabida prática anticristã?"

"Meu amigo, muito companheiros nossos, alguns de grande nome, trabalham do lado das sombras. Muitos que andam de batina não são fiéis a Deus."

"Também não consigo entender por quê me escolheram, ou deixaram que eu fosse escolhido. Sequer precisariam de um padre. Poderiam ter contratado um jovem francês qualquer que tivesse conhecimentos teológicos e soubesse as bases do evangelho e pronto, era só fingir se tratar de um homem da igreja. Seria muito mais fácil, e o controle quase absoluto. Não entendo a razão de correrem tantos riscos."

"Eles precisavam de alguém de dentro, que pregasse com verdadeira convicção, com fé. Também não imaginavam que poderiam correr riscos; acham que a escolha foi feita por aqueles que apoiam o experimento, não poderiam, e ainda não podem, imaginar que nós interferiríamos."

Philippe, ainda sem acreditar naquelas intrigas políticas, se resignou; sua única escolha era confiar no cardeal e seguir suas orientações. Wojtyla lhe soava dúbio, tão plácido no primeiro encontro, severo no segundo. Estava confuso.

FG

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