O cabeçudo azul conversou com Ravi com consistência objetiva, revelando cada detalhe da cultura cogumelo com teor lógico e matemático. Em pouco tempo o menino aprendeu muito sobre aquela sociedade tão incomum. O azul, que se chamava Bleu, mostrou-se bastante sensível, e extraordinariamente compreensível com o estrangeiro. Explicou como funcionava a estruturação social da sua comunidade e como cada cor desempenhava sua função.
Os cogumelos tinham diversas tonalidades. Existiam os roxos, violetas, amarelos, verdes, marrons, vermelhos, azuis, laranjas e brancos; além dos híbridos, que eram aqueles que possuíam pares de cores alternadas. Para estes últimos, muito raros, o sanatório ou a morte prematura era bastante comum, de forma que não recebiam assistência e não tinham suas habilidades reconhecidas pelo estrato social. Por serem raros, a cada geração apenas meia dúzia chegava à vida autônoma, fora dos substratos, não participavam da vida pública e poucos se interessavam por eles. Alguns viviam escondidos no âmbito privado, outros fugiam para ganhar a vida solitários em regiões e paisagens diversas do mundo da nuvem azul. Os brancos eram considerados deficientes. Não conseguiam aprender a linguagem e tinham problemas na locomoção. Apesar de suas falhas cognitivas, eram protegidos juridicamente e respeitados por todos. A estima nutrida por eles estava associada ao mito de criação estudado e propagado pelos sacerdotes. Para os cogumelos, sua espécie teria nascido de um gigantesco cogumelo branco que abdicou da racionalidade para dar vida aos demais. Dessa forma, os brancos eram associados à pureza; e o nobre espírito dessa cor era louvado como uma dádiva divina.
A religião na sociedade do cogumelo ditava todas as formas de organização. Na aurora da sociedade, acreditavam que o universo era composto apenas pelo cogumelo branco gigante pairando sobre o vazio absoluto. Do corpo dessa entidade divina foi criado o mundo e todas as outras criaturas, da cabeça surgiram os cogumelos. No início, os primeiros cabeçudos tinham sido dotados de um código moral imutável, e, de geração em geração, essas leis eram retransmitidas. Com o advento da escrita, estas regras foram sistematizadas num grande texto sagrado, que além do relato da criação e do código moral, contava um pouco da história daquele povo. Desde então o texto serviu de base para as interações sociais e a para a organização política. Nele se estabelecia as funções de cada cor, tratando os híbridos como seres imperfeitos, nascidos de forças diabólicas e associados ao mal. Nas escrituras sagradas Deus era branco e gigantesco, cheio de luz, clareza e verdade. Sua antítese era a primeira criação. Um minúsculo cogumelo multicolorido, imperfeito e associado ao mal. Daí surgiu a fantasia de que os híbridos eram criaturas pérfidas e loucas, motivados pela perversão e maldade.
Com o florescimento das ciências, as escrituras sagradas começaram a ser questionadas, nas instituições de ensino mais progressistas, todos os educadores e a maior parte dos alunos já não acreditavam mais nos mitos criacionistas; e entre eles começavam a surgir teses que refutavam a utilidade social da estratificação que exortava cada cor a desempenhar um papel específico na sociedade. Os mais radicais chegavam a defender os direitos civis, jurídicos e políticos dos híbridos; mais ainda eram vozes minoritárias, com pouca ressonância no mundo da vida.
Os azuis eram maioria entre os professores e cientistas. A cor se associava à racionalidade e à inteligência lógica e matemática. Bleu era um exemplo claro dessa aptidão, comungava inclusive com as ideias revolucionárias dos mais radicais pesquisadores; e muito embora não tenha tido formação institucional e acadêmica - vivia com os irmãos uma vida campesina - estava sempre conectados às teses sociais mais recentes. O amarelo, sempre que ia à cidade negociar, trazia os livros e revistas de ciência recém publicados para o irmão. No campo, tinha a função de organizar a rotina, o plantio, a colheita; descobrir os melhores locais de venda; a melhor dieta para cada estação; além de projetar utensílios e materiais que ajudassem nas demais tarefas diárias. O próprio tapete voador, usado como meio de transporte, foi criado por ele. Misturou diversas essências a um pano de densidade muito baixa. Depois de muito estudo e tentativas conseguiu criar o tapete que aos olhos de estrangeiros pareceria mágico.
O amarelo, chamado Giallo, se responsabilizava pelos negócios e finanças dos irmãos. Toda semana ia a cidade trocar aquilo que produziam e achavam por outras mercadorias. Tinha imensa habilidade linguística e era um negociador nato. Sabia os meandros da pechincha e quase sempre levava vantagem em suas trocas. Também gostava de música, e, entre os instrumentos, o que mais o inebriava era a flauta. Era conhecido como um mestre da ilusão, falar mentiras ou propagar falácias fazia parte da sua personalidade. Na sociedade do cogumelo, os amarelos eram, geralmente, comerciantes; alguns advogados, apostadores ou artistas.
O vermelho, de nome Colère, realizava o trabalho braçal. Plantava, preparava o solo, colhia. Estava sempre com seu machado em mãos. Tinha o temperamento muito explosivo e raivoso. Amava os irmãos incondicionalmente, no entanto, não conseguia expressar o sentimento com facilidade. Tinha o espírito persecutório, e, para qualquer nódoa de ameaça, fazia de tudo para proteger seus afetos e a casa. Era desconfiado, tinha medo de tudo, muito embora disfarçasse o defeito com valentia e ímpeto recalcitrante. Sua cor ocupava as patentes mais altas do exército e da polícia. Alguns eram engenheiros ou artesãos. Muitas das modificações feitas na casa de alvenaria foi obra de Colère.
Bleu contou tudo ao menino. Ravi logo se afeiçoou à estranha criatura. Depois de algum tempo de prosa, Colère chegou batendo a porta em ira descomunal.
"O que faz em minha casa? Já te expulsei, mas pelo visto terás que sentir a fúria do meu machado para entender o que lhe foi dito."
"Acalme-se irmão, o menino veio em paz. Queria sua flauta de volta. Ele é gentil e inofensivo, podemos abrigá-lo esta noite."
"Bleu, não seja ingênuo; ele está te ludibriando para, na calada da noite, nos roubar."
Ravi, depois de tudo que soube sobre os cogumelos, não teve mais medo do ímpeto de Colère. Falou docilmente que apenas esperaria Giallo voltar com sua flauta para seguir viagem. Agradeceu a companhia do cabeçudo azul, pediu desculpas ao vermelho; e disse que esperaria no alto da montanha, local que passara a última noite. A atitude foi prudente e sábia já que não mais aguentava o cheiro do interior da casa.
FG
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