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Aventuras de Ravi - XVI

Ravi viu seu amigo Colossos se perder nas profundezas do deserto. Guardou a flauta junto à sua parca bagagem e se encaminhou à casinha. A chaminé expelia bastante fumaça rosa, seus habitantes deveriam estar cozinhando ou esquentando algo no fogo. Diante da construção, se anunciou: "Tem alguém em casa; por favor, preciso de abrigo". Em instantes três homenzinhos estranhos apareceram. Tinha o tamanho de Ravi, mas seus corpos eram roliços e cada um apresentava uma cabeçorra de cores distintas, amarela, vermelha e azul. O homenzinho de cabeça vermelha, segurando um grande machado e com uma carranca de botar medo, foi o primeiro a se aproximar, e com voz rouca falou:

" Quem é você? O que faz aqui? Por que invadiu nossa propriedade? Vá embora, ou terá que enfrentar meu machado."

"Eu vim em paz. Estou perdido e preciso de ajuda para retornar à minha casa."

O amarelo, um pouco mais distante, caminhou até o vermelho, pegou o machado de suas mãos com gestos de advertência, antes de entrar na conversa.

"Amiguinho, não se assuste; meu irmão é muito nervoso e não gosta de visitantes" - sua voz era suave e o tom conciliador - " Mas como chegou até aqui? Tem algo a oferecer em troca do nosso auxílio?"

"Vim do deserto, mas preciso voltar pra casa. Algum de vocês já ouviu falar da França, ou de alguma passagem para outro mundo? Comigo carrego apenas água, um pouco de sopa de bambu e esta flauta."

"França? Outro mundo? Tu és um pulha, mentiroso. Quer nos roubar. Vá embora." - o vermelho, novamente encolerizado, brandia em fúria.

O amarelo foi até Ravi, pegou a flauta e começou a tocar uma singela canção, cheio de notas livres e inocentes. Parecia alegre. O azul, que ainda esperava próximo a porta, com um gesto, chamou os outros dois cabeçudos. Eles conversaram no interior da casa, mas o menino não conseguiu ouvir o teor da conversa. Depois de alguns minutos, escutou os berros do vermelho que insistia em expulsá-lo. Alguma coisa conteve seus gritos. Com a calmaria o amarelo veio de novo em sua direção.

"Esta flauta é um artefato raro, feito pelas criaturas negras. Meu irmão azul acredita que esta peculiar e assustadora espécie de monstro já está extinta. Muito provavelmente você achou a flauta. Talvez tenha encontrado as ruínas dessas criaturas. Ou eu estou enganado? Se nos disser onde fica as ruínas e se lá existem muitos itens de valor, te ajudaremos a voltar para a... como é mesmo o nome do lugar?"

"França!"

"Isso! França! A bela França!

"Conhece a França?" - perguntou com os olhos cheios de expectativas.

"Sim, sim; já ouvimos falar."

"Então também sabem que existe um outro mundo. Devem conhecer o caminho de volta, não é?"

O amarelo olhou interrogativo, mas logo recuperou o tino negociador.

"Claro, claro... podemos te ajudar. Mas antes terá que nos dizer onde fica as ruínas das criaturas negras. Seria uma troca justa."

Ravi, cabisbaixo, ficou mudo; não poderia contar a verdade para os homenzinhos; havia prometido ao Panda Colossos que manteria segredo. Por fim, após a insistência do amarelo para que se decidisse, mentiu:

"Não conheço nenhuma ruína. Achei esta flauta jogada no deserto. Desculpe mas não posso ajudá-los."

"Acho que não entendeu. Informação é um recurso escasso. Não pode pedir algo por caridade, deve oferecer alguma coisa para ter seus anseios realizados. Queres voltar pra casa, e para tanto deve pagar o preço justo. Eu e meus irmãos vamos te ajudar, mas você também precisa fazer um esforço para que nossa troca seja equilibrada. Vejo no seu semblante que está escondendo o que sabe. E se insistir nessa farsa, terá que ir embora sem auxílio."

"Realmente não sei onde ficam as ruínas das criaturas negras, nem saberia dizer se elas existem mesmo."

"Então, infelizmente terá que ir embora."

O amarelo virou de costas, e, lentamente, voltou para casa com a nítida sensação que durante a letárgica caminhada seria interrompido por alguma palavra ou confissão do menino. Ravi, no entanto, permaneceu silente e estático; atitude que desapontou o homenzinho. 

Sem saber pra onde ir, o menino ficou a contemplar a nuvem azul. As horas foram passando. A noite, o vermelho abriu a porta de casa e ao ver o menino, gritou impropérios, invectivas nada ordeiras. Ravi se afastou. 

Foi para o alto de uma montanha, e lá começou a sentir um frio insuportável. Decidiu fazer uma fogueira para tentar se aquecer. Sua flauta estava com os homenzinhos; na manhã seguinte iria recuperá-la e partir rumo ao norte. Teve medo da solidão e do desamparo.   

Antes do nascer do sol, o homenzinho vermelho saiu com seu machado rumo à floresta; o amarelo subiu numa espécie de tapete voador cheio de bugigangas e se encaminhou para a parte mais escura do céu; o azul permaneceu em casa. Ravi do alto da montanha viu tudo.

Desceu até a casa dos cabeçudos para pedir sua flauta de volta, e seguir seu caminho. Bateu à porta, esperando que o azul lhe atendesse. Não houve resposta. Insistiu, mas de nada adiantou. Então, de fora da casa, pediu, autoritário:

"Tenho que partir para o norte, mas preciso da minha flauta, você poderia devolvê-la?"

O azul apareceu à janela, seu olhar denunciava medo. Ravi viu o homenzinho e retransmitiu o recado; agora sua fala era um pouco mais doce e respeitosa. Após um grande silêncio, finalmente o azul se pronunciou.

"A flauta não está aqui, o amarelo a levou para vender no mercado dos Cogumelos."

"Mas a flauta é minha, ele não pode fazer isso. E que mercado é esse?"

"É o maior mercado da região. Fica do outro lado das muralhas da cidade do Cogumelo."

"Não sei o que está falando, não conheço nada neste mundo; quero minha flauta de volta."

O azul fechou a janela, deixando Ravi resmungar sozinho do lado de fora. O menino manteve-se prostrado ao lado da casa, esperando algum dos outros dois homenzinhos retornar. 

Passado algumas horas, o azul abriu a porta e disse ao menino para entrar. Do lado de dentro o ambiente era bastante exótico. Tudo na casa parecia ser orgânico. Os sofás, os armários, os utensílios e prateleiras eram feitos de uma gosma gelatinosa que se assemelhava a uma colônia de fungos. O cheiro era muito forte, e ficar lá dentro era praticamente insuportável. 

O menino, em incômodo olfativo profundo, conversou com o homenzinho, que dos três parecia ser o mais bondoso. Azul contou sobre sua origem, a casa, seus irmãos. Quis saber que outro mundo era aquele que o garoto insistia em mencionar. Em pouco tempo de conversa, Ravi percebeu que o azul tinha grande inteligência, e um raciocínio lógico capaz de mesclar um número imenso de informações. Dentre os cabeçudos, era o mais sensível, solitário e tristonho.


FG   

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