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Aventuras de Ravi - XXVI

Enquanto Jan procurava a garota, Kowalski e Wojtyla conversavam com Philippe. Contaram sobre os planos do governo de utilizarem Veronika como isca.

"Não sei o que está acontecendo. Não vislumbro realidade nestas hipóteses conspiratórias de vocês. Nunca ouvi algo tão esdrúxulo quanto esta lenga lenga que insistem em acreditar. Acham que o governo pretende infundir na mente daqueles jovens atletas alguma espécie de pavor ao cristianismo ou a qualquer crença metafísica; para tanto contratam um teólogo para iluminar a cabecinha dos garotos com a palavra de cristo. Não, não faz sentido! Vocês partem do pressuposto de que algum ato vexatório seria suficiente para reverter meus ensinamentos, e o mais bizarro; acreditam que esta suposta infâmia faria com que eles me associassem a Dabrowski, ou seja lá quem for este sujeito. Sinceramente, nem o pior dos romancistas inventaria enredo tão medíocre. Se é estranho receber apoio do partido na minha missão evangelizadora, mais estranho ainda é acreditar neste conto fantástico que fingem defender. A Polônia é um país misterioso, muita coisa suspeita tem acontecido, mas nada que se compare a esta impersistência narrativa de vocês. E Veronika? Mal a conheço. O que eles poderiam fazer? Simular um romance, um assassinato? Por favor, melhorem suas suposições." - Philippe aparentava enfado ao confessar seu aborrecimento.

"Garoto, você ainda é muito jovem para entender a disposição humana ao diabólico. Nem tudo pode ser resumido em termos simplórios. Pense em cristo. Seu sacrifício na cruz mudou vários séculos na história da humanidade. Eles não querem destruir nossa tendência ao sagrado, isso é impossível. Intentam lançar as sementes para uma nova visão cosmológica, não mais transcendental e vinculado aos valores e virtudes cristãs, mas alicerçados na imanência da matéria. Querem robôs pouco sensíveis à liberdade e ao livre-arbítrio." - Wojtyla discursava em tom etéreo. Sua voz era doce, suave; seu olhar imaculado, tranquilizante. - "Vou te dizer algo que tenho adiado a algum tempo. Esta experiência do governo não envolve apenas a emoção da linguagem. Eles não poderiam ser tão ingênuos em acreditar que o mero discurso em tão pouco tempo cooptaria almas, tampouco planejar a reversão dos seus ensinamentos com um simples fato ignóbil que transformasse sua imagem de mestre em capadócio. Não quero menosprezar sua vocação, mas tu também deves saber que o gáudio proporcionado pela palavra de cristo é fruto de uma depuração moral e estética que perpassa séculos. Acreditar na força restauradora das sombras em tão pouco tempo e a partir de estímulos tão simplórios é tolice. A mais ou menos dez anos, cientistas soviéticos trabalham no desenvolvimento da cápsula K. Esta droga foi liberada para testes. Como ainda não sabem a potencialidade e o alcance dessa substância decidiram repassá-la ao nosso país, para que os testes primeiro fossem feitos aqui. Malotes da cápsula K chegaram a alguns meses em Varsóvia, e Kowalski descobriu que eles já começaram a utilizá-la em seus alunos atletas. Veja meu caro amigo" - A voz do cardeal voltou a assumir contornos severos - "suas palestras são fantásticas, qualquer um poderia se apaixonar pelas palavras que diz, no entanto estes jovens não apenas te admiram pelo poder discursivo da sua linguagem, eles estão dopados. Seus ensinamentos estão sendo, aos poucos, incorporados por eles através de um mecanismo mental muito mais recrudescente do que qualquer outro que possa envolver a experiência humana. A sua fé, suas convicções e ideias quando ditas a eles passam a constituí-los. São verdades incorporadas pelo corpo como se nunca tivessem sido ensinadas, são verdades que integram a essência, a natureza desses meninos; verdades tão fortes quanto o instinto."

Philippe ficou absorto com a revelação, não sabia se acreditava naquilo ou se o cardeal inventava lorotas para juntar as peças de um quebra-cabeça imaginário. A mudança de tom na voz de Wojtyla lhe gerava suspeitas, não confiava naquele homem e ao mesmo tempo o adorava. 

Interessado no assunto, o missionário quis saber mais sobre a droga e sobre o suposto plano que o envolvia.

"Você me disse que a cápsula K é capaz de transformar um mero ensinamento em instinto. Tudo bem, mas muita coisa ainda não faz sentido. Por que então me escolheram para participar dessa experiência? Poderiam ter escolhido qualquer um. E não me venham com esta farsa de Dabrowski, quero a verdade, se é que ela existe."

"Rapaz, o que te contamos é parcialmente verdadeiro. Primeiro, precisavam de alguém que não só conhecesse os evangelhos, mas que essencialmente acreditasse neles. Segundo, um estrangeiro seria mais seguro; a maioria dos padres poloneses desconfiam do governo e poderiam comprometer a operação. Terceiro, um francês era a escolha mais óbvia, pois eles têm conexões bastante fortes com setores mercenários da Igreja de seu país. Quarto, um sacerdote jovem e menos experiente seria manipulado com mais eficiência. Quinto, como sabe, interferimos, sem que o governo desconfiasse, na sua escolha. Foi por isso que escolheram você, um jovem padre francês."

"E o incidente do bar? Aquele jogador de fato tentava descobrir se eu estava ou não instruído pelo governo? As coisas se sucederam da forma que falou."

"Sobre o bar, tudo que falei é verdadeiro."

"Por que inventou esta piada de Dabrowski?"

"Não foi piada, apenas uma mera suposição. Dabrowski é um herói nacional. Se puderem controlar os jovens atletas, tenho certeza que tentarão desfazer a imagem dele."  

"O que não entendo são os motivos de quererem incutir nestes meninos a fé cristã para depois obstruí-la ou rechaçá-la. Não faz sentido. Seria mais fácil exortá-los a essa nova cosmovisão, independente de cristo e afinada com os ideários do partido, de forma direta. Poderiam ter escolhido um marxista qualquer para ministrar palestras sobre a perfídia da Igreja e da sociedade capitalista, ou alguma coisa do tipo. Tenho certeza que existem pessoas que levam a sério, acreditam verdadeiramente e com fé nestas suposições políticas; dentro do partido mesmo deve existir pessoas assim. A minha irmã, Laura, é uma que professa esta descabida crença."

"Esta é parte mais difícil, Kowalki poderá te explicar melhor o funcionamento da cápsula K, ele teve acesso direto aos relatórios dos cientistas russos. Talvez as coisas fiquem mais claras pra você."

O velhinho pegou alguns papeis na maleta, e começou a falar:

"Está tudo escrito aqui. A cápsula K. não tem o poder de transformar toda a experiência linguística ou emocional em memória instintiva. Se assim fosse, seu poder de manipulação seria sem limites. Ela não age de maneira espontânea em todas as situações. Para que ocorra a transmutação mental através do ensinamento discursivo, é preciso uma relação de empatia entre os ouvintes e o falante; aquele que ensina também precisa estar emulado por emoções fortes que galvanizem seu discurso; e o mais importante, os efeitos dessa criação instintiva de conhecimento só perduram enquanto a droga estiver sendo devidamente ministrada."

"Na sua primeira palestra, os rapazes primeiro adquiriram certo respeito pelo que falava, para, só depois, passarem a incorporar seus ensinamentos em instinto" - explicou Wojtyla.

"O relatório também explica o único mecanismo capaz de gerar memória instintiva permanente, sem a necessidade de uso contínuo da medicação. Diz que o conhecimento adquirido pelos usuários da cápsula K. podem ser bloqueados por alguma experiência estética ou sensorial oposta ao apreendido" - prosseguiu Kowalski. - "Esta experiência precisa envolver necessariamente o autor direto das memórias."   

"Em tese, sem o uso da cápsula K. ninguém consegue a nível mental profundo incorporar nenhum ensinamento discursivo. Os meninos só serão instintivamente cristãos enquanto continuarem a ser submetidos aos efeitos da droga, sem ela o conhecimento evapora. Se eles quisessem produzir fé indiscriminada ao redor dos ideários políticos do partido, teriam de ministrar a droga permanentemente, e isso não é viável; tanto pelo custo de produção, quanto pela impossibilidade de fiscalizar o uso contínuo da cápsula num contingente grande de indivíduos. Porém, o bloqueio de ideias pode ser implementado de forma perpétua. É isto que envolve o experimento, querem saber se é possível afastar em definitivo a fé cristã entre os jogadores. Por isso estão te usando, e também por isso precisam criar alguma situação, a nível sensorial ou sensitivo, aos olhos desses garotos envolvendo você. Se forem bem sucedidos no experimento, tentarão algo semelhante com um espectro ainda maior de pessoas. Quem sabe planejem censurar outras ideias, bloquear saberes e verdades que jamais poderão ser novamente acessadas. Percebe o poder destrutivo dessa cápsula? Precisamos impedir o sucesso do experimento, mesmo que para isso precisemos manipular as informações. Se essa cápsula realmente funciona, os agentes do partido não podem, de forma algum, descobrir."

"Eu poderia não ter ministrado as palestras. Preservaríamos os garotos; agora, eles e nós corremos riscos."

"De nada adiantaria você se recusar. Se não desse as palestras, o experimento não seria testado, e certamente eles usariam outro padre ou teólogo. O importante é criar a sensação de que a cápsula foi testada e que seus resultados foram negativos. Assim eles irão arquivar o projeto e nós nos livraremos dessa praga demoníaca" - Wojtyla falava com laivos de cólera.   

FG
   

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