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Aventuras de Ravi - XXIII

No transcorrer do jogo, o homem rinoceronte procurava. A cada expressão atenta e apaixonada, a expectativa do encontro crescia. Já no segundo tempo, quando a equipe da casa empatava com a Holanda em um a um, Philippe avistou ao longe Veronika e seus amigos. Absorvido pela busca, não assistia aos lances; presumia o que estava acontecendo pela leitura e reações da plateia. Naquela altura da disputa, o silêncio era mordaz; a garota observava apreensiva o desenrolar da partida; tudo indicava que o triunfo ou a decepção abateria aquela fumaça de torcedores em instantes.

Sem se aproximar muito, viu o repentino singrar eufórico da comemoração; em instantes o silêncio se transformou em balbúrdia. Veronika, em êxtase com o gol, beijou um dos jovens que a acompanhava. Philippe sentiu que aquele beijo era seu, que seus lábios se embebeciam pelo delicado respirar da torcedora. Pensou em se aproximar, desistiu; seria ousado demais, para um padre, dar vazão aos seus sentimentos rodeado por faces inimigas. Guardou a sensação para si e aguardou o término da partida para decidir o que fazer.

Após a vitória apertada da equipe polonesa, o estádio foi se esvaziando. Nativos em festa, seguiam entusiasmados para outro lugar. Junto a multidão, Veronika se dirigiu a saída; o francês a seguiu. O amontoado de pessoas dificultou sua caçada, em pouco tempo perdeu a garota de vista. Entrou num bar e pediu uma taça de vinho. Não costumava beber na rua, mas o momento exigia um ligeiro desvio. O ambiente do bar era clássico, harmônico e aconchegante. Destoava da maioria dos estabelecimentos do país. Suas mesas e cadeiras eram de madeira acobreada com detalhes em marfim; tinha duas áreas com luminosidade distinta, uma mais clara e outra escura; e os fregueses eram muito bem servidos; muitos vinhos importados estavam disponíveis nos cardápios e o menu de refeições lembravam os melhores restaurantes de Paris. 

Sozinho, em uma mesinha de fundos na área mais sombreada do local, o padre refletia. Estava na Polônia como missionário, mas, fora alguns encontros com bispos locais, nada havia feito para a Igreja; nenhum comunista ateu convertido, nenhum culto, pregação ou trabalho realizado. Ao invés disso, apenas uma fixação por uma adolescente fanática por futebol. Talvez fosse melhor retornar ou pedir a transferência para outro lugar que realmente precisasse do seu labor. Se ficasse ali, o duelo ainda insosso entre a carne e o espírito, poderia ter um vencedor indesejado. 

Na metade do Bordeaux, viu meia dúzia de homens se sentarem na mesa ao lado. Um deles era bastante festejado e bajulado pelos demais. Todos vestiam uniformes poloneses, e, após se esforçar para entender o que conversavam, percebeu se tratar dos jogadores da seleção. Um dos homens, calvo apesar de aparentar juventude, falava algo desinteressante sobre o campeonato mundial.

Barulhentos, gargalhavam sem pudor. A certa altura um deles se dirigiu ao missionário dizendo: "Jak mój cel?" Sem entender a pergunta, fez uma expressão que denunciava dúvida, por fim falou em sua língua: "Sou francês, desculpe!" O jogador se alegrou.

"Adoro a França, ano passado fizemos um jogo em seu país; ganhamos por três a dois numa virada épica nos últimos minutos" - disse em bom francês, enquanto seus colegas troçavam barulhos incompreensíveis. - "Você acompanha futebol?" - antes da resposta, deixou sua mesa e puxou uma das cadeiras ao lado de Philippe.     

"Não me interesso; nunca tinha entrado num estádio antes, mas hoje foi minha primeira experiência. Assisti ao jogo. Foi incrível ver os poloneses se inebriaram com a performance de vocês. Sou padre e nunca tive muito tempo para me entreter com competições esportivas."

"Padre? Tão jovem e padre? Na Polônia os padres são velhos" - deu uma sonora gargalhada, olhando para os compatriotas de forma estranha.

A conversa que se iniciara amistosa, foi interrompida. O jogador acendeu um cigarro e com um gesto chamou o garçom. Cochichou algo em seu ouvido. Em minutos o ambiente do lugar se suspendeu em paranoia, incutindo suspeita; todos passaram a olhar inquisitivamente para o estrangeiro. O clima opressivo deixou Philippe inquieto. Sem se despedir, levantou-se e se encaminhou à saída. Antes de ultrapassar a porta, teve o braço agarrado por um homem alto e forte vestindo preto. Olhou assustado para o gigante. Sem conseguir balbuciar qualquer frase, foi apagado por uma repentina pancada na cabeça.

Acordou numa sala escura, do seu lado esquerdo havia um homem velho de terno, refestelado em uma grande poltrona; do lado direito, sobre um pequeno banco de madeira, um bispo com trajes vermelhos e mais afastado, em pé, o homenzarrão que o apagara. Estava preso numa bergère simples, seus braços e pernas firmemente amarrados. Não sabia o que se passava, tudo aquilo era assaz insólito. Quando acordou, ainda aéreo, o bispo fitou seus olhos e explicou:

"Meu amigo não precisa se assustar. Está amarrado para garantirmos sua segurança. Sabemos porque foi enviado à Polônia, na verdade nossas conexões com setores da Igreja fez com que fosse cedido a nós. Nos garantiram que seria enviado sem saber de nada, e antes que pudéssemos revelar nosso plano, esperamos para termos certeza de que veio sem informações. Talvez já me conheça, sou o cardeal Wojtyla, estou aqui como amigo e terei a nobre função de garantir que entenda nosso verdadeiro propósito. Este ao seu lado é o companheiro Kowalski, ele cuidará de perto da sua estadia. Jan, o homem que lhe fez o convite para este encontro", - apontou para o gigante que mais parecia um armário - "lhe dará suporte e segurança." - A voz do cardeal era doce e sua face plácida. Mesmo vivendo momentos enigmáticos, aos poucos, como se estivesse sendo paulatinamente sedado, Philippe se tranquilizava. - "Queria que soubesse que estamos aqui em nome de Deus e em busca de unidade espiritual. Deve saber que a Igreja está dividida e que a parte mais ortodoxa do governo soviético pressiona a Polônia para que ela esmoreça o alcance da fé no meu país. Lutamos em duas frentes, de um lado queremos unir as vertentes conservadoras, a liberal e a humanitária da Igreja, por outro interromper o movimento anti-religioso que se tem propagado através da política." - Enquanto falava, desamarrava as mãos e pernas do francês sem que ele notasse. "Precisamos de você nesta segunda frente de batalha. Aos poucos te explicarei melhor. Agora quero que descanse. Atrás daquela porta tem um quarto com tudo que precisa, uma cama, cobertores, e alguns livros. Durma um pouco e em breve continuaremos a conversar."

Philippe obedeceu o comando quase hipnótico. Dormiu. Após horas em descanso, folheou os livros dispostos em uma pequena estante. Muitos falavam sobre fé e marxismo. Um deles lhe chamou a atenção. "A religião da classe trabalhadora, reflexões sobre a transcendência não metafísica" era o título do exemplar. A primeira parte lhe pareceu bastante convencional. Criticava a instituição católica e o papel da religião na sedimentação de uma superestrutura burguesa, nada que já não tivesse ouvido falar. No entanto, a parte final parecia bem exótica. Ensinava estratégias inacreditáveis para operacionalizar mecanismos psicológicos de combate à religiosidade. No capítulo dezoito, Wawrzyniec Mlody, autor da obra, descrevia o futebol e o seu potencial para dissolver a fé metafísica, caso bem manejado. Sugeria a mudança do hino nacional, a educação política de jogadores, o controle dos programas esportivos no rádio e na televisão, entre outras práticas de difícil entendimento, que ia da tática, da estrutura de jogadas e treinamentos até o visual dos jogadores. O texto não transmitia senso de realidade, porém estava tudo disposto com minúcias e matizes garbosos. Aos olhos de Philippe, nada daquilo fazia sentido, parecia uma correlação esdrúxula, irracional, boba. Talvez o governo estivesse colocando em prática aquelas asneiras, talvez estivesse convencido da potencialidade da experiência. Pensava sobre o assunto sem acreditar muito nas próprias interpolações.

FG 

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