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Aventuras de Ravi - XI

Após quilômetros caminhando pela cadeia de montanhas, chegaram a uma floresta de grandes árvores verdes. Panda Colossos, antes de adentrar à floresta, pediu para o menino segurar firme no seu corpo, daria um grande salto para aquela nova paisagem que se assentava bem abaixo de onde estavam. Ravi seguiu as orientações, e durante a queda conseguiu sentir a suave brisa acariciando seu rosto. O animal lhe dava segurança e imenso prazer, estar com ele era encantador.

A vegetação era bastante semelhante a que encontrara no caminho de Guangzhou à cidadezinha habitada pelo velho Ancian, porém as árvores eram maiores e seus troncos mais curvilíneos. Bambuzais de tamanho desproporcional ao habitualmente encontrado pelo menino e de formato escapular se distribuíam pelos arredores. O solo era escuro, de um marrom quase negro, e a medida que se deslocavam pelo ambiente, Panda Colossos deixava pegadas bastante visíveis e fundas. A certa altura da caminhada, percebeu pegadas semelhantes só que em sentido contrário; entendeu que seu amigo voltava pelo mesmo caminho percorrido horas atrás, quando intencionava buscar água fresca na cachoeira.

A casa do animal ficava no alto de uma árvore e era feita de bambu, não tinha cômodos, apenas uma plataforma com um caldeirão e muitas placas de madeira esculpidas por signos ininteligíveis aos olhos do menino. Quando chegaram na casa, Ravi perguntou o que estava desenhado nas peças, e se fora Colossos o autor de desenhos tão bonitos. O Panda respondeu que as peças da direita, muito mais numerosas, eram obras de antepassados; as da esquerda eram os seus escritos. Disse que aqueles símbolos reproduziam a linguagem das criaturas negras; e muito que aprendera durante a vida foi fruto das leituras e ensinamentos daqueles artefatos tão preciosos à criatura. Ravi bastante curioso quis saber um pouco do conteúdo das mensagens.

"A história do meu povo está toda retratada aqui, desde o florescimento da nossa cultura até o seu declínio. Provavelmente sou a única criatura negra que ainda existe; o preconceito contra minha espécie nos extinguiu. Do lado direito estou traduzindo os documentos. Minha mãe ainda em vida me ensinou os líricos mágicos. Embora viva sozinho e em completa solidão, quis traduzir estes relatos históricos para que, com minha morte, outros povos consigam entender e aprender um pouco da nossa sabedoria. Até onde saiba ninguém além de mim entende a língua das criaturas negras, por isso tenho passado os últimos meses nesta labuta de tradução. Como conheço, além da minha própria linguagem, apenas os líricos mágicos, não foi difícil escolher em qual língua traduziria a nossa história. Se minha raça perecer, ao menos a nossa memória permanecerá viva."

Um insight repentino invadiu os raciocínios de Ravi. Como Panda Colossos poderia falar com ele, e compreendê-lo se ambos não entendiam a linguagem do outro? Ravi falava francês, e seu amigo parecia dominar seu idioma com perfeição. Aquilo era muito estranho e dava um nó nos seus pensamentos.

"Você diz que entende apenas a linguagem das criaturas negras e os líricos mágicos, no entanto fala comigo com francês perfeito, e nem sotaque tu possuis, como é possível?"

Panda Colossos ficou confuso, fez uma expressão peculiar, jogando a língua para fora. O menino teve vontade de rir, mas, segurando a gargalhada, ouviu o amigo.

"Francês perfeito? Nem sei o que é isso. Nós estamos conversando em líricos mágicos; tu, como todos os outros pequeninos, falas líricos mágicos; aliás a maioria das criaturas entendem esta língua que é de fácil apreensão."

Ravi, jogando as mãos para o alto, ficou sem entender. Caminhou até os escritos da direita e percebeu que os símbolos talhados eram letras que compunham palavras e frases do francês. Finalmente compreendeu o amigo e disse apaziguador.

"Desculpe Colossos, na verdade eu que fiz confusão. Na minha terra os líricos mágicos são conhecidos como francês. É o meu idioma, e me alegra pensar que não terei dificuldades na comunicação com outras criaturas." - Pensativo, continuou após uma pausa. -  "Curioso vocês falarem francês, curioso..."

O animal, pensando que o menino delirava, resolveu desconsiderar a última conversa. Se dirigindo ao caldeirão começou os preparativos do jantar. Faria uma sopa de bambu com gengibre. Ainda não tinha fome, mas seu convidado estava faminto. O caldeirão era tão grande que certamente poderia ser usado para cozinhar a comida de uma cidade inteira, mas para o Panda, o conteúdo do seu recipiente mal dava para uma refeição. Enquanto o animal cozinhava, Ravi lia os textos traduzidos para o francês. Tinha dificuldade, pois as letras talhadas na madeira eram imensas, proporcionais à criatura que o abrigava.

Quando o jantar estava pronto, Colossos não sabia como servir o amigo; ele era muito pequeno e as vasilhas de sua casa pareceriam piscinas olímpicas aos olhos do pequenino. Pensou um pouco e então decidiu colher uma folha da árvore que sustentava a plataforma para utilizá-la como um prato improvisado; parecia a melhor saída para o inconveniente. Dizendo ao menino para se afastar, deixou uma gota de sopa cair sobre a folha. O menino, que via tudo de longe, quase foi atingido pelos respingos daquilo que para ele era uma enxurrada líquida de bambu com gengibre. Aproximou-se da comida e, com as mãos, se serviu da saborosa gosma que escorria da gigantesca folha presa ao chão. 

FG  

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