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Aventuras de Ravi - XV

Philippe, ao presenciar o parto, sentiu novamente a mesma sensação de impotência que havia vivenciado diante dos milicianos que invadiram a aldeia congolesa. Morte e vida pareciam se integrar num momento improvável de prazer e dor. Seus pensamentos foram reconduzidos à capela em que a família Bongolê, diante da infâmia humana, se aviltara em perversão e sangue. Não conteve as lágrimas, não conteve os ânimos, não conteve o sofrimento.

Naquele instante, Li, depurada pelo espírito do nascimento, voltou a perceber o ambiente. Suas atenções se voltaram para a moita de bambu, onde o homem rinoceronte, agachado, tentava se esconder. A princípio julgou que os ruídos eram de algum animal, mas logo ouviu os sons de pranto. Philippe notou que os olhos da chinesa já denunciavam sua presença. Acabrunhado, voltou à mansarda a passos sonoros. A criança, até então tranquila nos braços da mãe, começou chorar; o choro anunciava seu primeiro contato com as frustrações do novo mundo.

Ao lado de Ancian, que ainda dormia; começou, em desatinos a falar. O velho senegalês acordou com os lampejos da fala assustada; em minutos entendeu o que estava acontecendo.

"Vou levar panos quentes a Li, algumas toalhas e, se encontrar, algum material que contenha sangramentos" - disse Ancian, ainda sem entender por que o amigo estava tão assustado.

Revirou as gavetas dos móveis da anfitriã, e, achando o que procurava, adentrou a floresta escura. Philippe ficou prostrado no interior da casa.

O dia já estava amanhecendo, quando no meio do caminho, Ancian avistou a mulher retornando com a filha nos braços. Antes mesmo do homem se pronunciar, Li, em tom autoritário e sereno, falou:

"O dia já está a nascer, peço que você e seu colega intrometido saiam da minha casa e continuem a procurar o que perderam. agora preciso cuidar dessa criança e quero fazer isso sozinha.'

"Mas você deve estar debilitada. Está sangrando, se não tomares cuidado pode se adoentar."

"Por favor, faça o que digo."

Ancian arrumou os cavalos, que repousavam no centro da charneca. Esperou Philippe, que ainda espantado não conseguiu fitar, nem por um segundo, a mulher.

Partiram rumo as montanhas de Danxian. O local tinha várias cavernas e como não se distanciava muito do barranco que acidentou mortalmente Colossos, o topógrafo presumiu que o menino poderia ter encontrado algum abrigo por lá.

As montanhas eram suntuosas. Formadas por espessas camadas de arenito avermelhado, produziam, se vistas de longe, uma bela e colorida ilusão visual. Os próprios cavalos cinzentos, ao avistarem as primeiras montanhas rubras, se agitaram. Não queriam seguir viagem, algo os incutia pavor. Os homens prenderam os animais e continuaram a pé. No meio do caminho, uma raposa apareceu causando um certo alvoroço temeroso nos dois. No entanto, ela parecia dócil; e Ancian logo se convenceu que aquele exótico animal chinês poderia ajudá-los. A raposa era enigmática, caminhava a frente dos homens e de tempos em tempos meneava a cabeça para trás como se estivesse se certificando se os homens a seguiam. Subiram e desceram diversas montanhas, já estavam tão longe da cidadezinha, que Philippe já não acreditava que seu filho poderia ter caminhado tamanha distância. O senegalês, porém, estava convicto; através daquela raposa encontrariam não só Ravi, como também uma passagem à árvore azul. Acreditava que o garoto lograra sucesso em sua busca e que a esta altura esperava por eles.

"Ancian, onde estamos indo? Meu filho não está aqui."

"Acalme-se, esta região resguarda muitos mistérios. Alguma dessas cavernas possuem passagens que nos leva de volta à floresta. Seu filho pode ter feito o caminho inverso. Tente confiar na natureza, ela nos mostra o caminho."

A raposa parou diante de uma imensa formação rochosa. Em seu interior, um caminho espelhado por estalagmites e estalactites anunciava a proeminência dos anelos despertados nos dois visitantes. Adentraram a caverna, enquanto o animal, refestelado na superfície escarpada, esperava. A luz penetrava forte, viva, em todas as direções do ambiente. Do outro lado, apenas o enigma a ocultar a anunciação.

"Sabe, velho amigo; estou confuso. Desde que cheguei a China, o improvável, o indecifrável tema em me iludir. Primeiro encontrei um velho oráculo que disse coisas estranhas ao meu filho, depois esta miserável árvore azul surgiu para nos desviar do caminho correto, aí veio o rio e sua inusitada inundação. Meu filho sumiu, conhecemos aquela mulher que me despertou meu lado mais inacessível. Por fim esta raposa enigmática que nos conduziu a este lugar que não parece fazer parte de Deus - disse Philippe, sombrio.

"Na China, nossas velhas certezas não têm amparo. A muitos anos atrás, esta atmosfera dilacerou minhas amofinadas crenças, aprendi a escutar não apenas o gáudio da verdade, mas também a súplica de novas interpretações. O que aprendi no ocidente sempre foi muito estreito para entender a vida, suas dores e tormentos. A nódoa daquilo que se apresenta novo é muito mais importante do que as verdades aprendidas por falsificação. Nossa visão é míope, e as muletas culturais que usamos, neste lugar, não valem de nada."

"Acho que estamos a blasfemar. O sumiço do meu filho, ou este absconso ar que respiro deve estar me perturbando" - ajoelhado ao chão, fechou os olhos; precisava sentir novamente a presença de Deus.        

***


FG

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