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Aventuras de Ravi - XXVII

"Aquela história de criar ídolos na seleção polonesa que desprezam o cristianismo também não era verdade?"

"De fato este não é o ponto principal do experimento. Caso comprovem a eficácia da droga, controlarão a religiosidade dos poloneses de forma mais substancial através da cápsula. No entanto, já tentaram implementar este tipo de educação marxista nos jogadores, porém as tentativas não renderam muitos frutos. Acho que leu algo a respeito num dos livros disponibilizados no seu quarto?

Philippe assentiu. Começava a se convencer da narrativa sugerida pelo cardeal, só não entendia como Veronika poderia se infiltrar na trama.

A esta altura, Jan já vasculhava todos os locais em que a moça poderia estar escondida. Carregava o diário tentando encontrar algo. O gigante era esperto, conseguia enxergar nas entrelinhas, descobrir o inacessível. No entanto, o paradeiro da garota era um mistério. Depois de alguns dias racionalizando todas as informações, não conseguiu encontrar qualquer pista. O fracasso dava azo à dúvida. As frases do caderninho pareciam de alguma adolescente; os dilemas assaz juvenis, as frases simplórias, a personificação do depositário das lembranças, os desenhos, tudo revelava o estilo de alguém com tenra idade; mas algo soava estranho. Jan, numa das dezenas de cafeterias que frequentava, absorvidos por conjecturas que envolviam a caça, teve um repentino pensamento. Sua expressão assumiu ares tétricos, como se todos os demônios tivessem lhe surpreendido em um ato de bondade. Precisava, o quanto antes, encontrar Philippe.

Naquele mesmo dia, minutos antes da derradeira palestra, Wojtyla e Kowalski aguardavam o francês para uma conversa.

Quando chegou ao auditório para sua última aula e viu que o cardeal o aguardava, ficou vigilante. O que ele fazia ali? Como conseguiu ter acesso ao prédio do governo sem causar suspeitas? Qual era seu plano? Iterpelou Wojtyla sobre o assunto, porém o homem se esquivou das perguntas, e antes que o mal estar se instalasse por completo, ofereceu chá ao francês. Aturdido, bebeu o líquido e aos poucos foi esquecendo onde estava; seus pensamentos se apagaram, e o peso sinérgico de seu corpo evaporou qualquer dúvida em arrepios. Quando percebeu pelo semblante do jovem a transformação, falou:

"Veronika está aqui. Esperava sua chegada para conversarmos juntos."

"Veronika? Conseguiram achá-la? Ela sabe de alguma coisa? Fez contato com o governo?" - disse o teólogo já sem dominar suas próprias percepções. Era como se tivesse esquecido que estava no auditório do ministério rodeado pelos olhares inimigos dos membros do partido.

"É isso que descobriremos em breve, ela aguarda na sala ao lado."

"Ainda não conversaram?"

"Kowalski a recebeu, pediu para que ela nos esperasse. Ainda não sabemos de nada, por isso tenha paciência; deixe eu conversar primeiro."

O velhinho voltou ao auditório trazendo a garota.

Veronika estava deslumbrante. Tinha o olhar perdido e o rosto enigmático. Assentou ao lado de Philippe sem dirigir o olhar para ele. Ainda segurando a xícara de chá, o francês num longo trago esvaziou o recipiente. Wojtyla iniciou a conversa indo direto ao ponto. Revelou a identidade do francês, e contou nos mínimos detalhes o plano do governo e os experimentos com a cápsula K. A garota ouviu tudo sem esboçar reação. Nada a surpreendeu, sequer se preocupou em interromper as palavras do cardeal. Wojtyla e Kowalski deixaram o recinto, dizendo que esperariam Jan para depois continuarem o diálogo. O jovem padre e a polonesa esperaram, lado a lado, sozinhos. Permaneceram um longo período em silêncio. A presença da garota causava desconforto, porém Philippe sentia uma inexplicável atração por ela. Arriscou, após minutos de apreciação, uma conversa:

"Não sei se Wojtyla te convenceu. Esta história é muito estranha. Confesso que não sei até que ponto isso é verdadeiro." - Sua fala continuava sem vida, morosa e sem alvedrio

"O partido é capaz de tudo. Nada me surpreende."

A frase da garota reverberou em seus sentidos com tanta força que a menor tentativa de se desviar dos ruídos era inconsistente. Os sons se repetiam sem limites dentro dele. "O partido é capaz de tudo. Nada me surpreende." "O partido é capaz de tudo. Nada me surpreende." "O partido é capaz de tudo. Nada me surpreende." Sentiu ânsia, a frase não lhe deixava em paz. A garota continuou:

"O que sente por mim? Te provoco alguma coisa?"

Não conseguiu responder, estava abatido em consumpção.

"Quando te vi pela primeira vez fiquei enojada, mas agora, ao saber de tudo, sinto simpatia por você. Acho curioso um padre desenvolver um desejo sorrateiro por mim. Eu sou bonita. Eu lhe provoco excitação. Eu sou bonita. Sou a mulher dos seus desejos."

"Eu sou bonita, eu sou bonita, eu sou bonita; sou a mulher dos seus desejos." A frase lhe consumia. Não dava para se desviar. Tudo aquilo era a sua verdade. Philippe estava aéreo, seu olhar sonolento. Dentro dele um forte calor direcionava seu ímpeto para o corpo da garota.

"Quero que leia este texto, mas quero que leia com paixão, como se estivesse recitando um poema aos meus ouvidos." - Veronika estendeu um papel para Philippe. O missionário, completamente perdido em alucinações, cumpriu o comando; leu cada frase como se as palavras estivessem iluminadas por flores em desejo.

Enquanto lia, os jovens atletas iam chegando ao auditório e tomando seus assentos. Ouviam Philippe, surpreendidos pela situação incomum e constrangedora.

FG

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