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Mostrando postagens de 2017

Parágrafo - 1

Agora, depois de limpar os lenções e retirar cada mancha de sangue, me dedico à recomposição. Não do que foi feito, planejado, colhido, não daquilo que sinto - remorso, regojizo - tampouco do que os olhos, feridos, observam ou criam. (A palavra sem ornamento é caldo, sem pedaço, é mero rascunho, somente lixo, é linguagem podre, morta, ocre) Então como contar um testemunho? Como recriar o espetáculo do assassínio? Com imagens? Burburinhos? Com palavras e ornamentos? Delírios? Como dizer o que não sinto ou revelar o que nunca será feito? Linguagem? Palavra morta? Sensação não vivida? Medo? Medo! Contar o medo... recontar o medo, recriar o medo, banalizar o medo. Qual utilidade deste sentimento? Qual utilidade me faria em medo? Medo de quê? Da palavra? Da morte? Da palavra morta? Medo da linguagem, medo do vazio... Tudo bem, mais fácil assumir o que não fiz do que ser julgado louco. Quem acreditaria em mim? Meu pai? Não, ele é assaz moralista, cretino demais para enxergar por debaixo da

Duas Palavras

Sempre sonhei em escrever. Mais do que uma frase, ou sentença. Queria escrever um parágrafo, uma ideia; talvez uma página, um capricho. Duas palavras, após um testemunho. Quem sabe um conto, uma novela, um livro.  Sempre sonhei com papéis. Mais do que isso, com a tinta. Queria folhear algo meu; não aquilo que apenas eu manuseio. Queria também outras mãos perto das minhas, bisbilhotando palavras daquilo que sonhei. Quem sabe uma frase, um parágrafo, uma ideia. Se fosse um livro, de poucas páginas, mas um livro; quantas mãos seriam aquelas? Quantos pensamentos? Quantos gritos? E os sussurros?  Sempre sonhei poesia. Mas poesia sem palavra. Poesia de silêncio. Poesia que se diz sem som, que se compreende sem voz alguma. Poesia que vem de dentro e não vai embora. Não qualquer uma, daquelas que nascem resplendorosas. Outro tipo de poesia. Um tipo de poesia que não se conhece. Um tipo de poesia não escrita. Um tipo de poesia densa, dura, impenetrável. Um tipo de poesia muito cheia

Aventuras de Ravi - XXX

Bleu escreveu a petição. Seu texto era fluído e convincente, porém não sabia como provar a indispensabilidade de Ravi junto aos cogumelos. Sem aquele tópico a peça seria arquivada. Ainda tentando solucionar o problema, reencontrou Colère e pediu para que o mesmo retirasse o garoto do hospital. O vermelho, com a ajuda de dois policiais que o acompanhava, escoltou o corpo do menino para fora da cidade. Com a presença oficial da guarda, os médicos e enfermeiros nada puderam fazer para impedir a retirada do comatoso. Os policiais estavam mais preocupados em se livrarem do problema, a presença de estrangeiros sempre lhes causavam transtornos, do que com a saúde do rapaz.  Sozinho com Ravi, Colère, com auxílio do tapete voador, se dirigiu à aldeia do Povo do Maracujá. Para Bleu, aqueles homens tão semelhantes ao menino, poderiam salvá-lo. Enquanto isso, o azul aguardou o retorno de Giallo. Quando o amarelo retornou, os dois trataram de escrever o tópico faltante da petição. "Já

Aventuras de Ravi - XXIX

O amarelo retornou ao hospital com a expectativa de ver Ravi recuperado. Quando soube da piora do garoto ficou aflito, e junto a Bleu foi ter com o médico teoricamente responsável pelo repentino coma do menino. Conversaram por vários minutos. Hollande não quis se responsabilizar por nada, disse que seguira o procedimento padrão e que não tinha culpa pela a delicadeza do estranho. Giallo já não tão calmo como de costume; estava apreensivo, deveria entregar o garoto em boas condições ao Senhor Green, o contrato já estava assinado e aquele imprevisto poderia lhe gerar problemas; ameaçou o doutor. Disse que se nas próximas horas não houvessem melhoras processaria o médico, o hospital e toda a equipe. Hollande não deu importância as ameaças; Ravi era humano e nenhum legislação dos cogumelos previa punição para negligência hospitalar contra membros de outra espécie. Afirmou ter feito o possível, ainda sugeriu que eles, os irmãos, eram os verdadeiros culpados pelo estado do menino, já qu

Aventuras de Ravi - XXVIII

Os três cabeçudos, assustados com o desmaio do menino, tentaram socorrê-lo. Os outros transeuntes, ao observarem a situação, acionaram socorro. Em minutos uma comitiva de salvamento, envolvendo dois enfermeiros verdes e um médico laranja, chegaram ao local; colocaram Ravi sobre a maca e o encaminharam ao hospital mais próximo. Como não conheciam a anatomia do visitante, o deixaram, ainda desacordado, na sala de espera. Presumiram que talvez o ar da cidade tivesse produzido alguma reação alérgica ou uma possível embolia. Ravi respirava e suas funções vitais não apresentavam comprometimento. O médico que lhe prestou os primeiros socorros, o doutor Hollande, quis saber quem era o paciente. Conversou com os irmãos para averiguar a origem do menino. Bleu, com ares de timidez, disse ser Ravi humano, sendo assim, para ele, os profissionais do hospital deveriam ter bastante zelo; a melhor solução seria tirar o menino da cidade, e caso não se recuperasse, procurar assistência em outro povoado

Aventuras de Ravi - XXVII

"Aquela história de criar ídolos na seleção polonesa que desprezam o cristianismo também não era verdade?" "De fato este não é o ponto principal do experimento. Caso comprovem a eficácia da droga, controlarão a religiosidade dos poloneses de forma mais substancial através da cápsula. No entanto, já tentaram implementar este tipo de educação marxista nos jogadores, porém as tentativas não renderam muitos frutos. Acho que leu algo a respeito num dos livros disponibilizados no seu quarto? Philippe assentiu. Começava a se convencer da narrativa sugerida pelo cardeal, só não entendia como Veronika poderia se infiltrar na trama. A esta altura, Jan já vasculhava todos os locais em que a moça poderia estar escondida. Carregava o diário tentando encontrar algo. O gigante era esperto, conseguia enxergar nas entrelinhas, descobrir o inacessível. No entanto, o paradeiro da garota era um mistério. Depois de alguns dias racionalizando todas as informações, não conseguiu e

Aventuras de Ravi - XXVI

Enquanto Jan procurava a garota, Kowalski e Wojtyla conversavam com Philippe. Contaram sobre os planos do governo de utilizarem Veronika como isca. "Não sei o que está acontecendo. Não vislumbro realidade nestas hipóteses conspiratórias de vocês. Nunca ouvi algo tão esdrúxulo quanto esta lenga lenga que insistem em acreditar. Acham que o governo pretende infundir na mente daqueles jovens atletas alguma espécie de pavor ao cristianismo ou a qualquer crença metafísica; para tanto contratam um teólogo para iluminar a cabecinha dos garotos com a palavra de cristo. Não, não faz sentido! Vocês partem do pressuposto de que algum ato vexatório seria suficiente para reverter meus ensinamentos, e o mais bizarro; acreditam que esta suposta infâmia faria com que eles me associassem a Dabrowski, ou seja lá quem for este sujeito. Sinceramente, nem o pior dos romancistas inventaria enredo tão medíocre. Se é estranho receber apoio do partido na minha missão evangelizadora, mais estranho aind

Aventuras de Ravi - XXV

Passou o resto da semana na companhia de Jan e Kowalski. Estudou para se sair bem nas palestras, foi bem alimentado e tratado com esmero. Depois de tudo, e daquele rebombar de informações, nem se lembrava mais de Veronika. Para ele, ela viveria se alimentando do sonho ocidental e, talvez, sendo vítima das consequências burlescas do seu fascínio pela "Pilka Nozna".  No dia marcado para as palestras, Kowalski o levou para o centro de convenções, prédio mais espaçoso de Varsóvia onde, geralmente, aconteciam os maiores eventos políticos. Numa sala com capacidade para mil pessoas, Philippe aguardava a chegada dos jogadores. Aos poucos eles iam entrando; eram tantos e tão jovens - aparentavam ter a idade de Veronika - que o francês teve uma ligeira vontade de exílio, porém logo passou. Enfim, mesmo se tratando de uma farsa, colocaria em prática seu maior talento.  Falava sem parcimônia, a cada nova história, a cada tópico sibilava com mais entusiasmo; seu ardor por teologi

Aventuras de Ravi - XXIV

Kowalski entrou no quarto, lhe entregou roupas limpas e pediu que o acompanhasse. Saíram de um prédio antigo  e entraram num automóvel. "Estamos indo ao ministério das relações institucionais. Lá será interrogado. Eles irão te perguntar sobre o funcionamento da Igreja na França. Diga tudo que sabe, não esconda nenhuma informação. Depois irão te pedir apoio num experimento envolvendo a seleção polonesa de futebol. Sugiro que aceite o convite. Demonstre temor." "Eu não entendo o que se passa. O cardeal Wojtyla disse que iria me explicar o que está acontecendo." "A noite encontrará com ele. Agora apenas peço que siga meus conselhos." Chegaram no ministério. Philippe foi bem recebido por meia dúzia de funcionários sorridentes. Cumprimentou amistoso cada um deles. Depois se reuniu sozinho com o ministro. Este parecia não muito interessado, porém, durante a sessão de perguntas, seguiu uma espécie de cartilha que carregava sobre os braços. O fran

Aventuras de Ravi - XXIII

No transcorrer do jogo, o homem rinoceronte procurava. A cada expressão atenta e apaixonada, a expectativa do encontro crescia. Já no segundo tempo, quando a equipe da casa empatava com a Holanda em um a um, Philippe avistou ao longe Veronika e seus amigos. Absorvido pela busca, não assistia aos lances; presumia o que estava acontecendo pela leitura e reações da plateia. Naquela altura da disputa, o silêncio era mordaz; a garota observava apreensiva o desenrolar da partida; tudo indicava que o triunfo ou a decepção abateria aquela fumaça de torcedores em instantes. Sem se aproximar muito, viu o repentino singrar eufórico da comemoração; em instantes o silêncio se transformou em balbúrdia. Veronika, em êxtase com o gol, beijou um dos jovens que a acompanhava. Philippe sentiu que aquele beijo era seu, que seus lábios se embebeciam pelo delicado respirar da torcedora. Pensou em se aproximar, desistiu; seria ousado demais, para um padre, dar vazão aos seus sentimentos rodeado por face

Aventuras de Ravi - XXII

Sua experiência na Polônia foi rápida e assustadora. Encontrou um país, mesmo depois de muitos anos, ainda destruído pela guerra. O partido comunista que controlava a região e obedecia as ordens diretas do Kremlin, oferecia enorme resistência aos cultos religiosos, porém a população era bastante temente a Deus e a cultura cristã ainda estava bem sedimentada no território. Lá conheceu Veronika, uma adolescente cheia de ideias radicais. A partir dela tentou colocar em prática toda a teoria da conversão. Ela era contra as ideias marxistas e odiava toda aquela baboseira de igualdade. Vivia num país miserável, enquanto seus pares ocidentais se divertiam em Woodstock. Queria a igualdade dos capitalistas, cheio de amor, drogas e rock'roll. Queria aquela alienação poética de jovens que se divertiam com a liberdade. Na Polônia, tudo que gostava era proibido; seus livros, discos e até seus filmes preferidos não eram encontrados de forma oficial. Se conheceram por acaso. Philippe, na

Aventuras de Ravi - XXI

Philippe nasceu na França, numa noite de nevasca. Era o primeiro filho de um casal que se conhecera na guerra. Seu pai era brasileiro e tinha descendência italiana, sua mãe uma típica francesa. Durante a invasão das tropas aliadas ao norte da França, seu pai Francisco, integrante de uma das unidades militares que ofereciam suporte ao exército americano, foi atingido por estilhaços de bombas lançadas pelos alemães. Ferido foi levado à Le Havre, onde conheceu Adelie, sua futura esposa. Com o fim da guerra, casou-se e permaneceu na França ao lado da mulher. Mudaram-se para Giverny, cidadezinha bela e pacata nos arredores de Paris. Era mecânico, por isso, graças à sua habilidade diante de um motor, conseguiu ter uma vida digna no difícil período do pós guerra. Teve três filhos com a mulher, dois meninos e uma menina. Ela, enfermeira de formação, após o casamento viveu exclusivamente para educar os filhos. Católico praticante, Francisco sempre incentivou Philippe nos estudos da fé cris

Aventuras de Ravi - XX

Philippe e Ancian continuavam a caminhada no interior da caverna. O ar que respiravam era incomum, e após alguns minutos já não conseguiam manter os pensamentos constantes. Ao redor da passagem principal, várias subdivisões e caminhos alternativos se desenhavam. A confusão mental produzida pela atmosfera separou os visitantes; sem perceber tomaram rumos distintos. O francês seguiu pela direita, enquanto o topógrafo se enveredou pela subjacência oposta. Quando se deu conta que estava sozinho, Philippe tentou gritar pelo amigo, mas seu chamado não obteve resposta. Estava perdido e não sabia como voltar. A luz já não era tão forte e o caminho se estreitava. Desorientado parou para descansar. Ao interromper os movimentos, sentiu um cansaço inexplicável. Suas pernas pesavam o corpo e a exaustão causava dor. Queimando por dentro, se consumiu em delírios. Algo parecia se depreender da cabeça, como se uma orquestra fragorosa selasse seus ouvidos. Sentiu um mal estar obtuso, parecia qu

A Nuvem Azul - II

Capítulo II. O Nascer de um Novo Mundo As folhas azuis tinham desaparecido e após a tempestade uma nuvem de coloração semelhante pendia curiosa e arredondada no céu. Ao que tudo indicava, estava preso do outro lado da colina sem saber se aquele ambiente era a continuação da realidade ou um mundo paralelo. De qualquer forma, independente da situação encontrada, precisava voltar pra casa; talvez ainda conseguisse salvar o cavalo Colossos, ou ajudar seu pai e o velho Ancian. Se o túnel não oferecia saída, teria de explorar as paisagens do local. O primeiro passo seria escalar a montanha da cachoeira, e do alto tentar enxergar alguma coisa que o permitisse inventar a solução que o levasse ao caminho de volta. Quando olhou para a montanha, já sentindo o spray refrescante criado pela colisão da água com o solo, se assustou. Não sabia como subir aquele intransponível paredão; e por mais que tentasse olhar ao redor, a escalada era a única forma de escapar daquele vale. Se estivesse