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Parágrafo - 1

Agora, depois de limpar os lenções e retirar cada mancha de sangue, me dedico à recomposição. Não do que foi feito, planejado, colhido, não daquilo que sinto - remorso, regojizo - tampouco do que os olhos, feridos, observam ou criam. (A palavra sem ornamento é caldo, sem pedaço, é mero rascunho, somente lixo, é linguagem podre, morta, ocre) Então como contar um testemunho? Como recriar o espetáculo do assassínio? Com imagens? Burburinhos? Com palavras e ornamentos? Delírios? Como dizer o que não sinto ou revelar o que nunca será feito? Linguagem? Palavra morta? Sensação não vivida? Medo? Medo! Contar o medo... recontar o medo, recriar o medo, banalizar o medo. Qual utilidade deste sentimento? Qual utilidade me faria em medo? Medo de quê? Da palavra? Da morte? Da palavra morta? Medo da linguagem, medo do vazio... Tudo bem, mais fácil assumir o que não fiz do que ser julgado louco. Quem acreditaria em mim? Meu pai? Não, ele é assaz moralista, cretino demais para enxergar por debaixo da sua pele suja. Minha mãe? Não quero piedade, subjetivismo amoroso, materno; ao lado dela me lançariam ao abismo. Aos mortos? Meu filho e minha mulher já não podem mais acreditar, já não podem mais nada. Meus irmãos? Claro, ao menos um deles acreditaria em mim. Rose é carta fora do baralho, ela é muito intelectual, pragmática, ficaria ao lado da suposta verdade. Diana é muito tola, ingênua - burrinha mesmo - não passaria credibilidade. Francisco é um puto desgraçado, com ele posso contar. Mas será que ele acreditaria em mim ou apenas convenceria os outros a acreditar? Filho da puta em excesso, não posso confiar nele. Meus amigos? Acho que não tenho amigos. Talvez Pedro. Certamente ele gosta de mim, me admira. Pedro poderia me ajudar, mas não sei se ele estaria disposto; provavelmente não confia naquilo que digo. Com tantos indícios, tantas provas, não se arriscaria; afinal Pedro não passa de um covarde. (Sorte a minha não ter amigos). Tudo bem, vou confessar tudo. Eu matei, sou louco, me prendam, me matem. Eu matei! Sou o assassino! De qualquer forma me julgariam louco, mas ao menos seria louco só uma vez; seria louco por ter matado, e não louco por ter matado e negado o crime; ou pior, louco por ter matado, negado o crime e ainda inventado uma estória descabida para acusar um desconhecido. Louco três vezes... Não! Posso ser taxado louco, vulgar, assassino, ignóbil, asqueroso; mas ser tudo isso e ainda ter a categoria louco triplicada, isso não posso admitir. Ou provo a verdade, ou assumo o crime

FG

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