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Projeto. VI

Claro que a mulher sabia muito sobre ele. Os escritos em alemão, toda a cena pitoresca, os olhares. Eles já haviam se encontrado antes, era óbvio. Provavelmente o seguia, investigava cada passo.

Com os dedos na maçaneta, Beto estava há segundos de aliviar a indecisão. Ela estaria do outro lado com todas as respostas. Iria oferecer ajuda. Aquele rosto era a antítese da perfídia. Porém, a aparência é amorfa, não nos diz nada sobre o bem ou sobre o mal. O bom, o belo e o justo não caminham de mãos dadas. A maior beleza preserva segredos intransponíveis, e seduz a astúcia ao ato mais cretino. Não, tudo isso era bobagem, deveria dar vazão ao impulso, esquecer os pensamentos, ignorar a memória, o vislumbre. Viver cada sequência temporal liberto da experiência, sem coragem ou covardia, sem elucubrações; apenas viver o orgânico, a matéria, o corpo físico; abrir a maçaneta e agir em função dos olhos, jamais do intelecto. Mas como enganar a própria fisiologia? As reflexões não apartam escolhas, nem evitam qualquer gota de suor. A consciência escraviza movimentos e sensações. Antes de abrir a porta já reprovava a atitude.

Quando a luz refletiu sobre o rosto, Beto pôde finalmente saciar as dúvidas. A mulher o esperava. Estava refestelada na poltrona em posição provocativa. Com um chapéu florido idêntico ao anterior sobre a cabeça e só. Nenhuma vestimenta, tudo naturalmente belo; os seios, as cochas, os pés, a vulva. O corpo a amostra e o silêncio a dimanar tons avermelhados.

Ao fechar a porta, a mulher sorriu. Iniciou uma conversa como se não houvessem barreiras ou inibição.

"Sinta-se à vontade, afinal está em casa. Dispa-se, ou cubra seu pudor se continuar envergonhado. - A voz era doce, o intercurso exato entre o banal e vulgar. - Li seu livreto. Escreves bem. Não disse que seria livre contra a sociedade organizada e vestida, que ficaria nu para mergulhar nas águas da imaginação? Vamos lá, imagine!"

Beto estava desconcertado, aquilo era tão bizarro, esquisito. A inconsciência ditava as regras.

"Não fui eu que escrevi, mas não entendo. O que quer?"

"Não tente compreender mistérios, não se prostitua, não se venda, não consuma nada!"

"Você conhece Hernandes? Colabora com ele? Por que está nua?"

"Hernandes é um puritano. Seus códigos estão bastante ultrapassados. Foi substituído é quer retroceder. Em linguagem política, diríamos que ele é um reacionário; sobrevive mesmo estando morto. Conte-me o que mais abomina em seu irmão. Se pudesse reajustá-lo, aperfeiçoar os atributos, em quais peças mexeria? Ou se preferir a linguagem poética, como seria este personagem, o espírito, as composições?"

"O que querem? Quem é você?"

A mulher acendeu um cigarro.

"Toma, fume; fará bem aos pulmões."

"Não! Não consumirei nada! - Beto tentava entrar no jogo"

"Ótimo. Agora já podemos conversar. - Colocou o chapéu sobre o ventre, e após largo trago continuou. - Hernandes trabalha pro governo. Na verdade não existe governo, ainda não sabemos ao certo quem controla tudo. Suspeitamos que um grande projeto está sendo desenvolvido na universidade, cientistas vinculados à Igreja e pessoas desaparecidas anos atrás colaboram com o experimento. Começaram com as pastilhas, mas algo bem maior em breve virá à tona. Queremos que você investigue Hernandes, se infiltre na organização."

"Meu irmão trabalhando pro governo? Acha mesmo que acreditaria nisso? Por que confiaria mais numa mulher misteriosa e nua do que no meu irmão?"

"Tire a roupa e me abrace. - O rosto da mulher estava austero, compenetrado." 

Beto sorriu. O corpo celestial, as curvas, o vigor da pele, a delicadeza dos ombros, os seios redondos do tamanho de maças, a cintura bem desenhada, as cochas, os tornozelos, as mãos e rosto apaixonante era um convite para esquecer tudo e confiar no desejo. Mas uma noite de prazer não compensava reminiscências não respondidas. Motejou da mulher com os olhos.

"Quero que você sinta o meu corpo, minha pele. Toque para perceber a textura. Eu sou meu melhor argumento - disse mantendo a seriedade. - Muitos que estão do lado de lá não podem ser abraçados, são artificiais, máquinas. Tente ver seu irmão nu e perceberá o que estou dizendo."

Aquela frase intumesceu os pensamentos de Beto. A mulher acabara de sugerir que Hernandes não era humano, ou apenas provocava inferências mentirosas. Quando o viu no prostíbulo, teve nítida sensação que aquele homem era mais real, mais humano do que qualquer outro, mais verdadeiro do que ele próprio. Que tipo de máquina teria um rosto macilento, envelhecido? A falta de empatia não era suspeita, o irmão sempre fora assim, perdido nas próprias convicções, seguro das próprias certeza; alguém que em nome do conhecimento, da objetividade desprezava outras esferas da vida.

"Encontrei com Hernandes hoje, ele é muito mais real do que qualquer outra coisa de carne e osso que vejo por aí."

"Você não sabe de nada. Não imagina o que está acontecendo. As máquinas são orgânicas, as máquinas são pessoas. Se tiver alguma chance perceberá que a textura da pele de Hernandes não é comum. Ele deve ostentar cicatrizes escamosas ao redor do abdômen e nas costas. Ainda não sabemos o que estão fazendo, o teor do experimento. Mas temos certeza que Hernandes faz parte do grupo, que ele é um androide."

"Ele me falou sobre um envelope. Que ali encontraria todas as respostas. Acho que você o roubou."

A mulher se vestiu, retirou o envelope da mochila e o entregou a Beto.

"Tome, leia e tire suas conclusões. Amanhã a noite te esperarei no setor 16, num prédio antigo. Você já esteve lá, não terá problema em encontrar o local."

"Prédio antigo? Não conheço."

"Acredite, irá encontrar."

"Não me diga que irá embora sem sequer dizer o nome, sem me explicar quem é e o que pretende? Já estou me acostumando a não entender nada. Não tem medo que eu revele à Hernandes este encontro? Como está tão segura que irei ajudá-la?"

"Não me preocupo com isso. A escolha é sua. Se decidir ficar do lado oposto, seremos inimigos."      

"Ao menos diga seu nome."

A mulher foi embora. Quando passou pela porta volveu o tronco e disse lentamente "Adália" antes de se perder na escuridão.


***

FG

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