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Projeto. III

O prostíbulo do setor 43 era um depósito de escória humana. Dava pra sentir o cheiro ocre, verminoso a metros de distância. Putas de todas as idades e silhuetas pululavam o local; beberrões se amontoavam incumbidos de detonar os parcos rendimentos de dias não trabalhados; funcionários se confundiam com clientes; e o som de vozes, berros e gemidos compunham imensa escatologia.

Hernandes sentiu ligeiro mal estar dentro daquela Sodoma. Para um governo que pretendia exterminar a luxúria e a falta de valores, o setor 43, e, mais especificamente, o prostíbulo, deveria ser o fundo do esgoto humano, o aterro sanitário das cândidas almas que oravam pelas virtudes de um novo mundo. As mulheres usavam tinta branca na cara, cabelos das mais diversas cores, e vestimentas que acentuavam as curvas do corpo. O linguajar era sofrível, poucos eram capazes de terminar frases ou emitir pensamentos longos. Era um festival de caretas e sorrisos, donde o mais doce esgar se emitia aos arrotos. Nenhum homem era jovem, todos tinham quarenta ou mais e eram clientes, com exceção dos funcionários que serviam drinks. Desde a suposta revolução, práticas homossexuais eram proibidas. Surubas, bacanais, orgias, tudo bem; mas crime, quando dois marmanjos compartilhavam afeto.

O intruso escolheu uma mesa afastada, um cantinho pouco iluminado e restrito. Pediu para o rapaz dos drinks encaminhar Beto à mesa, caso ele aparecesse por lá. O cenário era tão onírico e de mal gosto e as pessoas tão alheias à realidade que ninguém se deu conta que Hernandes ostentava longa barba no rosto e vestia andrajos completamente esfarrapados. Dentro de tanta esquisitice, a estranheza do forasteiro destoava.

Beto apareceu com a mesma roupa do período matutino, foi até o irmão sem reconhecê-lo. O primeiro contato foi amistoso, ambos estranharam a aparência dispare um do outro. Após o reconhecimento, travaram longa conversa.

"Hoje acordei com tanta certeza que você estaria morto. E agora pareço viver um sonho."

"Não leu os jornais de hoje? Minha morte foi anunciada em toda parte."

"Jornais? Não existem jornais neste setor. Aqui é um antro de analfabetos. Devem ter anunciado sua morte nos telões que exibem imagens, mas acho que dormi o dia todo"

"Esperava me encontrar? Tinha esperança do meu regresso?"

"Minha esperança cessou hoje. Talvez enquanto dormia, tenha ouvido de algum megafone a tal notícia. Incorporei o fato antes de despertar. Isso explica minha inconsciente certeza."

"Quero te dar um abraço, mas pelo visto não aceitam mais afetos entre dois homens - Hernandes esboçava ligeiro bom humor. - Também não ousaria encostar num fantoche de cara pintada. Quando resolveu se disfarçar com visual tão ridículo?"

"Não pode se gabar. Pelo visto ficou estes seis anos longe de qualquer chuveiro." 

"Meu mal cheiro é um bálsamo perto dos odores dessa cidade."

A conversa foi ganhando corpo. Afastado a tanto tempo, Hernandes quis saber mais detalhes sobre os acontecimentos dos últimos anos.

"Pouco depois de ir embora, construíram os muros. Houve grande massacre. Uma guerra civil indescritível. O partido conservador assumiu o governo, com apoio da igreja e da população mais pobre. Queriam limpar a cidade, resgatar antigos valores. Com a crise, e a escassez de alimentos, os militares foram ocupando as ruas. Em pouco tempo dissolveram o congresso, emitiram novas leis e tentaram estimular a economia. Achavam que a facilidade de comunicação, especialmente a internet atrapalhavam seus planos. A conjuntura foi favorável. Você sabe, outros países, quase todos eles, experienciavam o mesmo fenômeno. Primeiro houve um desligamento da rede mundial de computadores. Foi o período mais violento. Não só os grupos revolucionários foram extintos, muitos intelectuais que até então não participavam de qualquer movimento político desapareceram. O governo passou a controlar tudo, todos os meios de comunicação, toda a tecnologia. Com o tempo os esforços para recuperar a produção de alimentos esmoreceu. O mundo todo passou por mudanças drásticas. Em alguns lugares as pessoas morriam de fome. Seja lá onde estava, você deve ter acompanhado alguma coisa. Seis anos que mudaram toda a história. Nem o maior profeta do apocalipse poderia prever este colapso ao avesso. Sem comida, a população foi ficando cada vez mais rebelde. teriam que matar todos para manter o controle. Mas uma invenção, aparentemente simplória, trouxe alento, embora tenha nos transformado em sub-espécie. As pastilhas começaram a ser distribuídas para os mais pobres. A Igreja teve papel preponderante nesta fase. Os mais abastados ainda conseguiam se alimentar da forma tradicional. Eu mesmo consegui ficar sem elas até pouco tempo. As elites e a cúpula do governo ainda não as usa. Sabem dos seus efeitos deletérios. Inventaram três tipos de pastilhas. As azuis, as vermelhas e as pretas. Elas dão o suporte alimentar necessário. O quite básico é distribuído gratuitamente para todos. Hoje já existem outras, mas todas elas agem em algum nível do sistema nervoso. Tem gente aqui que as consome a quase cinco anos. As pretas que substituem as proteínas são mais devastadoras. Elas combatem a depressão. O consumo exagerado viola a formação da linguagem. Dizem que após dois anos de uso, perdemos a capacidade de leitura e com o tempo a formação de pensamentos elaborados sucumbe. Aqui no setor 43 quase ninguém consegue ler, muitos já estão em estado avançado de dependência. Outro efeito colateral dessas substâncias é o vício. Quando começa a usar fica difícil se livrar delas. A nove meses comecei a consumi-las, e hoje já sou prisioneiro. Em pouco tempo serei como todos aqui; estúpido e idiota. Estamos regredindo a animais. O pior é que os próprios alimentos que chegam aos bairros nobres da cidade já estão contaminados por esta indústria alimentar insidiosa. O leite e a carne que é produzido nos campos agrícolas ao redor já estão impregnados de pastilhas; eles alimentam as vacas com rações feitas dessa porcaria. Os frutos, as hortaliças e até os drinks que servem por aí possuem ranços desse material vicioso. A água fornecida pelos reservatórios já é tratada com partículas modificadas, está tudo perdido. Se algum matuto, que vive distante e ainda sobrevive de forma natural, chegar a cidade daqui dez anos, encontrará uma orla de animais. É o fim da linha. O fim da espécie. Como o governo controla tudo, não sabemos ao certo o que se passa aqui dentro e lá fora. É notório a regressão cognitiva entre os muros da cidade, e do outro lado do muro não temos informação do que acontece. Parece que as outras cidades, os outros países desenvolveram sistemas semelhantes. As mudanças foram radicais nos trinta anos que antecederam esta famigerada revolução, você sabe disso; as mudanças climáticas, o fim das liberdades, o controle, os bloqueios e censuras; mas nada se compara as pastilhas. Deus nos deu livre-arbítrio, diria o religioso; e nós escolhemos o caminho de volta ao estado animalesco. Ainda existem universidades, produção de conhecimento, arte, música e toda esta parafernália humana. Alguns ainda saboreiam as potências máximas da cognição. Porém, isso não durará por muito tempo. É simples, entre inteligência acompanhada de inanição, e a estupidez e o corpo físico; todos acabam optando, enquanto preserva sabedoria, pela burrice. A Igreja que teve papel revolucionário primordial, e na época das pastilhas convenceu os fieis da dádiva oferecida por Cristo, hoje tem papel reduzido. No setor 43 e em outros bairros mais pobres não existe mais Igrejas. Aliás, elas se restringem a núcleos bem localizados, em universidades e escolas. O novo conhecimento será teologia. Padres, bispos e pastores poderão ostentar a pecha de eruditos."

FG     

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