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Projeto. I

Capítulo I


O sol se despedia quando Hernandes chegou a cidade. Três dias de caminhada ininterrupta, comendo apenas migalhas de pão e racionando água, deixou o rosto ainda mais encanecido. Tudo estava diferente, muros gigantescos e intransponíveis circundavam toda a periferia urbana, a vigilância era excessiva. Em cada portão de entrada - centenas espalhados naquela circular quilométrica de aço, cimento e brilho - ao menos dez soldados ficavam a postos, conferindo a documentação daqueles que entravam e saiam. Eram rigorosos e seguiam ao pé da letra todas as orientações normativas. Qualquer deslize impedia o regresso a cidade, e muitos eram proibidos de sair. Uma multa não paga, processos em andamento ou a mera recomendação administrativa suspendia parcialmente o direito de ir e vir. O acesso a informações era restrito, somente os marajás dos mais altos cargos políticos e seus funcionários de confiança tinham livre tráfego aos infindáveis códigos que protegiam o sistema operacional. Esse sistema cruzava milhares de dados, algoritmos e símbolos computacionais para armazenar cada história de vida, conhecimento ordinário, critérios e classificações diversas. Era uma espécie de arquivo mãe, que controlava a cidade, os estabelecimentos, lares, pessoas, palavras, os gestos, as discussões, os conflitos. Os pensamentos ainda gozavam de liberdade, e em algumas zonas - os bairros esquecidos - a vigília não era tão intensa. Apesar disso, tudo havia mudado, tudo estava diferente, sombrio.

Hernandes, depois de cinco anos escondido, sabia das transformações, mas, ao ver, com os próprios olhos, os concretos luminosos que alteravam completamente o aspecto da antiga cidade, sentiu uma mescla de ódio e angústia o atingir em cheio. Com o fim dos últimos raios de sol, a atmosfera noturna deixava aquele visual futurista ainda mais lôbrego. Todas aquelas luzes, combinadas com ruídos incessantes, davam aspecto de morbidez e loucura ao que naturalmente causaria espanto. 

Ele ainda estava escondido dentro de larga manilha abandonada. Esperava a hora certa pra caminhar em direção ao pórtico 43 e entrar, sem dificuldades, naquela gaiola soturna. Precisava encontrar Beto, anunciar todo o plano orquestrado, dar reinício à luta. 

Tinha documentos novos. Agora era Agenor, servente de pedreiro. Começaria na manhã seguinte uma obra na escola oficial do governo, instituição que abrigava as crianças mais aptas às atividades científicas, também os filhos dos generais, coronéis e políticos importantes.

Às oito horas e vinte e quatro minutos da noite, o sistema de cadastros pessoais iria mudar; os vigilantes, ao mapearem seu rosto, teriam as novas informações. Reclamariam do aspecto de Hernandes. A face macilenta, com pelos abundantes sobre o queixo, e os trapos que vestia poderiam lhe causar problemas; mas como tinha ocupação certa e endereço devidamente registrado, sofreria somente uma admoestação que o exortasse ao banho e à recomposição da aparência. 

De fato, recebeu grandes repreensões verbais e ligeiros enxovalhos físicos, mas conseguiu entrar. Na avenida principal pegou a condução ao bairro que supostamente vivia. Como as ruas eram controladas por câmeras, Hernandes seguiria exatamente a rota inventada no perfil de Agenor. Cauteloso, já havia providenciado tudo. Ciente que os deslizes jogariam por água abaixo todo o seu plano.

Agenor passara as férias no sítio do cunhado, ajudando-o na produção leiteira; voltara caminhando à cidade porque era homem de hábitos comuns e repudiava conforto. De aparência desleixada, tinha dificuldades com o trato pessoal, o convívio; porém era sujeito muito honesto, pagava com antecedência cada tributo. Amava a cidade e respeitava seus líderes. Seguia as recomendações do governo. Essa informação era importantíssima. Um cidadão asseado, de índole leniente e passiva não incutiria suspeitas. Todo o perfil de Agenor fora montado para que o plano pudesse ter margem de sucesso. Se Hernandes fosse identificado as esperanças sucumbiriam. Ele mesmo estava disposto a abdicar da vida para não abdicar de si próprio, de seus ideais, de seu destino.  

O cubículo que lhe arranjaram como residência era perfeito, ficava num dos piores bairros da cidade, o bairro esquecido, habitado por prostitutas e proxenetas; local negligenciado pela vigília. Tantos indivíduos prostrados, marginalizados, analfabetos e esquisitos, embora causassem transtornos aos vigilantes, para o governo eram inofensivos. Os presos, e haviam muitos, geralmente respondiam por crimes comuns; roubos, homicídio, estupro, agressão e crimes que naquele buraco soavam corriqueiros. A administração se preocupava mais com outros setores, os bairros de classe média passavam por maiores fiscalizações. Beto, seu irmão, morava a dois quarteirões, o inferninho que frequentava também não era distante.

Antes de passar em casa, tomar um banho e colocar roupas limpas, Hernandes decidiu ir ao prostíbulo. Encontraria o irmão por lá.

O bairro era lastimável; lixos se acumulavam pelas calçadas, e estranhas variedades de camundongos passeavam livremente pelas ruelas do local. Era menos iluminado do que o restante da cidade e a maior parte das câmeras depositadas ao longo das ruas não funcionavam. Percebeu que as mulheres, e os homens mais jovens se maquiavam muito, pareciam faces rebeldes de um cenário cyber-punk. Os indivíduos se comunicavam aos berros, alguns emitiam grunhidos incompreensíveis. Talvez a linguagem se remodelara, os trejeitos, a cultura, a forma de pensar, de apreender a realidade. Em um aspecto falhara ao estudar o novo mundo. Esqueceu de se imiscuir das alterações comportamentais e estruturais depois de implementada a política opressora do espúrio governo instituído. O que de fato aconteceu? E seu irmão, como estaria? Uma nódoa lancinante aos poucos ia fechando a glote, sensações nada auspiciosas turvavam os sentidos. Meio embaralhado, se arrastou ao encontro do irmão.


***

FG

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