Saiu do prostíbulo aos tropeções. A poucos metros do local, imensa tela exibia a face jovem de Hernandes. Uma voz, ao redor da imagem, dizia: "Terrorista morto! Vitória!" Beto percebeu que a fotografia destoava bastante da aparência atual do irmão. Ninguém, a não ser ele, conseguiria dizer que eram a mesma pessoa. Aquela cena aguçou sua curiosidade. O que encontraria no envelope? Precisava entender. Era óbvio que Hernandes não retornara sem propósito, ele tinha um plano. Desde cedo os sonhos revolucionários, a paixão pela política, a irracionalidade inconformista eram adágios que seguiam seus passos. Anos atrás fracassara, por sorte não morreu; agora estava de volta, mas o mundo era outro, e o fracasso seria ainda mais retumbante. As pessoas não eram mais as mesmas, e ninguém entenderia palavras tão fora de moda como igualdade, liberdade, justiça. E Hernandes, será que preservava os antigos ideais? Aquele encontro ligeiro não fora conclusivo. Toda aquela conversa sobre os limitas da linguagem, despertou pensamentos estranhos. Quem controlava a cidade? Uma elite política de conservadores e generais? Ninguém poderia dizer. Existiam eleições, representantes eleitos, mas nos últimos anos o processo era artificioso. Não havia liberdade de escolha, autonomia; todos se submetiam à vigilância, porém a atmosfera incutia dúvidas e ressalvas sobre a aparente simplicidade. Quem operava os computadores, como introduziam dados, o que de fato acontecia? As transmissões oficiais exibidas em cada bairro, o sistema de segurança, o fornecimento de energia, de água, pastilhas, a coleta de lixo, a cobrança de impostos, a alocação de serviços funcionavam com problemas, imperfeições; e tudo isso era organizado pela grande máquina; mas como funcionava? E se a inteligência esmorecia, como iriam preservar toda a organização? Perguntas que afligiam, atormentavam. O cérebro humano era misterioso, sempre redirecionando pensamentos a partir da experiência. Quando escrevia o romance, Beto intentava preservar o que aos poucos se apagava. Diminuiria os efeitos das pastilhas, procurando palavras para compor uma história verossímil. Todo a atenção, o empenho se direcionavam ao objetivo. O fardo da experiência sempre mudariam os rumos dos pensamentos. Se antes de encontrar Hernandes intentava conseguir dinheiro, mudar de vida, voltar a ministrar aulas, conhecer uma viúva que pudesse sustentá-lo, lhe oferecer boa comida, uma casa no campo, mais tempo de sanidade mental; agora queria compreender as absconsas arestas que envolviam a cidade. E se Hernandes e seus possíveis companheiros soubessem de tudo, e se realmente existisse um plano transgressor? Em meio a estes pensamentos andou a passos largos em direção ao edifício Z-73.
Na entrada do edifício, uma mulher jovem com longos cabelos negros e exótico chapéu florido estava parada fumando. Beto não acreditou naquela imagem, há anos ninguém aparecia com cigarros, tempos atrás foram proibidos. Aquele visual extravagante era estranhamente familiar, por alguma razão pensava conhecer a garota. Ao passar por ela, uma onda de fumaça o envolveu, ficou, por alguns segundos, em estado letárgico, seus pensamentos se embaralharam. Fitou os olhos da mulher, eram verdes claros, reluzentes; pôde observar cada detalhe do rosto. A boca carnuda, a pele vigorosa, o nariz bem desenhado, e sobrancelhas arqueadas instigavam perfeição. Ambos se olharam fixamente, ela parecia ler sentimentos. Teve vontade de segurá-la, perguntar o nome, entender o mistério, mas antes de tomar a iniciativa, a mulher se afastou.
Procurou o quarto. Aquele edifício estava em ruínas, o cheiro reproduzia odores insuportáveis, dúzias de ratos se alimentavam de pastilhas esquecidas ao chão. Abriu a porta 28. O cômodo estava vazio, nenhum móvel ou objeto. Analisou cada detalhe, o assoalho, as paredes, as janelas; não havia nada. Ficou confuso. Onde estaria o envelope? Será que alguém esteve lá antes? Hernandes estaria mentindo? Instantaneamente lembrou da mulher, talvez ela tivesse entrado lá, roubado os pertences, se imiscuído dos planos. Correu em direção a entrada, poderia alcançá-la. Antes de deixar o edifício se deparou com centenas de ratos, eles obstruíam a passagem, se amontoavam um sobre o outro. Aos ponta pés foi se livrando e afugentando os animais. Percebeu que embaixo das criaturas estava o chapéu florido, cheio de rasgos e furos. Levantou uma das abas e encontrou um bilhetinho com palavras em alemão: "Triff mich in deiner Wohnung". Tinha que voltar pra casa, aquela mulher esperava por ele.
Saiu correndo. No caminho pensou em voltar ao prostíbulo e relatar o ocorrido ao irmão. Desistiu da ideia e continuou. Sequioso e com temor, seguiu os desejos da alma. Naquela esquadrinhadura de sentimentos, o mais correto seria prosperar sobre os lírios que afugentavam a covardia e o embaraço. O temor não era por perceber que algo não planejado acontecia, na verdade simbolizava o medo do desencontro. Queria ver a mulher, fitar seus olhos novamente. Durante a corrida, a pulsão da linguagem desviava-se a aleias mais profundas. De novo a experiência redirecionava suas expectativas e processos mentais.
Diante do apartamento, hesitou. Uma luz púrpura desgarrava-se da soleira da porta. E se aquela mulher trabalhasse pro governo? Ela poderia ser amiga de Hernandes, ou uma espécie de comparsa. Não, isso não fazia sentido; se realmente ela fizesse parte dos planos, por que ele não falaria nada a respeito? E se ela o matasse? Provavelmente já estava com o envelope; mas qual a razão daquele encontro? Voltou a pensar com frieza. Entrar ou não? Ficou encabulado, em dúvidas. De nada adiantaria fugir, poderia ter outros a sua espera. Ir ao encontro do irmão, também não parecia ideia razoável. Não tinha saída, entraria no quarto. E se a mulher não estivesse lá? E se fosse Hernandes, ou a cúpula do governo? E se fossem máquinas? Um feixe de recordações o abateu, era como se cada uma delas fosse a mesma; era como se o passado, o presente e o futuro representassem ilusões de memória, um acidente que despia a existência em palavra.
FG
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