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Projeto. IV

"Parece que estas pastilhas foram desenvolvidas para solucionar a escassez de alimentos. Mas são produtos que interferem na cognição, atrapalham a formação da linguagem; é perfeito para impedir o processamento crítico de informações. Consciente ou não, o governo encontrou uma ótima forma de cercear o pensamento. Aparentemente a solução para domesticar a rebeldia, apaziguar os ânimos fugiu do controle, e a longo prazo afetará a todos."

"Aonde quer chegar?"

"Estou apenas refletindo. Olha bem Beto, a linguagem serve para interpretarmos a realidade, é uma ferramenta que conecta o sujeito ao mundo externo. Imagine um homem com a missão de cavar um buraco. Se ele possui apenas as mãos seu trabalho será árduo, e dificilmente conseguirá revolver grande quantidade de terra. Irá se limitar à feitura de buracos pouco profundos. As dimensões possíveis seriam rasas. Ele se limitaria ao praticável, com o tempo sequer conceberia a ideia do grande buraco. Suponha que este mesmo indivíduo agora possui além das mãos, picaretas, enxadas, pás. Poderá com menor esforço e menos tempo fazer buracos maiores. Se estas ferramentas forem aperfeiçoadas, se ele tiver acesso a explosivos e máquinas complexas os seus limites se expandem. A linguagem funciona da mesma forma. São ferramentas, podem facilitar a compreensão do mundo externo e a compreensão de si. Ela determina as dimensões do universo."

"Sim. Sem linguagem não há pensamento. E sem pensamento apenas reproduzimos o que está posto. Mas tem um grande problema nesta intuição. Usamos a linguagem para nomear as coisas, objetos, sensações, sentimentos, dores e alegrias. Antes da linguagem o universo se faz presente, ele existe; mesmo as sensações mais íntimas e pessoais são sensações que ultrapassam a linguagem. Uma criança ao nascer chora. Este ato comunica, serve como linguagem. Mas ela não aprendeu o significado deste ato, é algo instintivo. Com o tempo ela aprende palavras, e a partir do que sente consegue transmitir aos demais. Se esta criança desenvolvesse palavras próprias, palavras que apenas ela conhecesse, ela conseguiria transformar suas sensações em linguagem? Seria uma linguagem singular? O que eu estou tentando compreender é algo nebuloso - Beto parecia intranquilo, começava a se agitar e sentia um cálido escarmento crescer dentro de si. - Se eu criasse uma palavra para dor de dente, suponhamos que fosse 'AA'; ao sentir dor de dente a usaria para compreender e memorizar este processo. Eu poderia associar uma nova sensação semelhante a anterior de 'AA' para continuar a refletir sobre a mesma sensação e quem sabe compreendê-la melhor a partir de novos símbolos, novas palavras?"

"Não consigo entender o que tenta descobrir, mas estou satisfeitíssimo com o desenvolvimento de seus processos mentais - Hernandes esboçou contentamento, a conversa com o irmão lhe tranquilizava."

"Vou tentar me explicar melhor. O choro de um recém nascido é um ato universal, um ato de linguagem que existe antes da capacidade humana de se comunicar através de sons associados a palavras. Se os bebês não chorassem, e de repente um deles resolvesse chorar este ato não seria um ato comunicativo, não seria linguagem. O que transforma sons, signos, gestos em linguagem é o seu uso comunicativo. A linguagem não é uma forma de compreendermos o mundo; compreendemos o mundo através de outros processos mentais. A linguagem é uma forma de comunicarmos aos outros nossa forma singular de enxergar a realidade. É uma ferramenta, concordo. Mas o fato de possuir apenas as mãos para cavar buracos, impede que eu faça buracos maiores, mas não atrapalha meu vislumbre. Se meu vocabulário é reduzido, terei dificuldade em transmitir aos outros o que sinto, mas continuarei sentindo."

"Tudo bem, você pode estar certo. Porém de que vale os sentimentos, de que vale o intelecto se não conseguirmos, através da linguagem, uma emancipação? De que valeria a experiência se não pudéssemos compartilhá-la? Toda a reflexão, toda a ciência, filosofia, arte caminhou porque aprimoramos a linguagem, desenvolvemos palavras novas, cruzamos informações."

Beto se enturvava. Aquela conversa despertava sensações que não poderia transmitir. Naquele lapso temporal teve ligeira epifania. Talvez o empobrecimento da linguagem convencional não gerasse uma sub-espécie de animais; talvez, escamoteado pela suposta ruína, algo novo se anunciasse; a superação do homem, a superação das formas que conhecemos de interação. Em seu íntimo começou a suspeitar de fantasmas, fantasmas produzidos por máquinas, fantasmas de uma nova era.

Incomodado pelo silêncio, Hernandes insistiu:

"Diga, o que te assombra? Sua expressão está péssima."

"Você fala alemão? Se eu te fizesse uma pergunta no idioma e você não pudesse responder eu poderia te chamar de estúpido?"

"Se o alemão fosse a única língua conhecida, certamente sim."

"Não parou pra pensar que estamos vivenciando uma era de mudanças comunicativas. Que as formas de interação são novas, que a linguagem está sendo redirecionada."

"Por acaso sabe de algum plano governamental neste sentido?

"Não! Esquece o governo. São apenas pensamentos que me angustiam."

Novo silêncio se instalou. Beto se fechava dentro de solilóquios cavernosos. A imagem de imensos computadores o atormentava. Hernandes, ao contrário, estava contente. Queria reencontrar o irmão para averiguar seu estado, se ainda mantinha a antiga sobriedade com as palavras. Percebeu que Beto respirava o gáudio da sofisticação. Despreocupado, retomou o assunto.

"Vejo que resguarda a sanidade."

"Não por muito tempo. Este mundo irá me consumir. Afinal, por que retornou? Onde esteve? Como conseguiu entrar? E por que diz que anunciam sua morte?"

As perguntas fizeram Hernandes lembrar que não poderia conversar sobre isso com Beto, ao menos não naquele ambiente. Já era hora de se despedir. Autoritário, respondeu incisivo:

"Calma, são muitas perguntas. Não beba, não consuma nada. No meu quarto tem um envelope vermelho. Nele encontrará todas estas respostas, também tem dinheiro e instruções sobre o que fazer. Vou ficar aqui, preciso encontrar outro sujeito. Vá até o edifício Z-73, quarto 28; pegue o envelope e obedeça."

"Como assim? Mal conversamos. E se quer mesmo saber irmão, eu ainda tenho sanidade, mas não sou diferente de ninguém que está aqui."

"Me chame de Agenor. Quando ler os papéis entenderá. Vamos nos rever em breve. Tenho saudade de ti, porém precisamos ter cautela."

"Não vai me dizer nada sobre o que aconteceu? Não quer saber sobre minha vida? Continua o mesmo. Se fosse você, experimentava as pastilhas vermelhas, elas aumentam a empatia - deu um largo sorriso."

"Se tudo der certo vamos ter muito tempo para conversar. Queria saber se alguém te seguiu nos últimos dias?"

Beto ficou confuso, aquela pergunta o desconcertou. Não se lembrava, mas tinha um pressentimento estranho. Meneou a cabeça sem muita convicção.

"Fique atento e vá agora. Lembre-se, não consuma nada - de novo Hernandes mostrou-se ríspido."

Atoleimado, Beto deixou o prostíbulo. Hernandes fingiu beber o drink que estava sobre a mesa. Ficou pensando no irmão, nos últimos anos, no passado. Beto parecia conservar a antiga eloquência de linguista. Morava naquele bairro esquecido e já se adaptara aos novos hábitos. Tinha que salvá-lo, mas seus propósitos eram muito maiores. De certa forma se arriscava ao tentar protegê-lo, mas depois de tantas perdas, covardias; depois de tudo, precisava correr este risco. 

Beto fora claro, suas palavras eram cristalinas; ainda se comunicava como antes, cheio de senso crítico, deboche, estúrdias. Isso lhe alegrou. Ele estava certo, poderia contar com o irmão, protegê-lo. No meio de tantos descalabros, ainda teria forças para lutar, mudar o jogo. 

Emborcou o copo e deixou o líquido escorrer sobre a face hirsuta.

***

FG

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