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Projeto. II

Beto acordara cedo pela manhã. Estava com o semblante péssimo, olheiras salientes, uma ligeira calvície disfarçada pelo cabelo grande, além da barba desgrenhada que parecia ter vida própria. 

A ressaca e a enxaqueca fremiam com intensidade. Procurou as pastilhas, aliviou o incômodo. A quase um ano morando naquele muquifo, desempregado, ocioso; somente uma grande transformação o colocaria nos eixos. Ou fugia da gaiola urbana e iria viver no campo, longe daqueles odores tonitruantes; ou se recompunha para voltar à vida confortável de agrados e hipocrisias.

Ainda sonolento, catatônico; olhou no espelho e resolveu recompor o visual. Se barbeou, deixou o cabelo bem curto e, após longo banho quente - luxo que se permitia em ocasiões especialíssimas -, pegou o quite de maquiagens e se pintou. Ficou idêntico aos jovens urbanos. Vestiu seu uniforme mais modernoso e deixou o apartamento.

Foi para o setor 16, bairro de belos jardins e cheio de velhas solteironas. Rejuvelhecido dez anos, urgia por dinheiro. Alguma patusca lhe remuneraria por serviços sexuais. Depois que a crise se instalou e ele perdeu seu emprego na universidade, passou anos a fio fazendo de tudo para sobreviver. Ao se mudar para o setor 43, antro de meretrizes, tartufos e pelintras, começou a se prostituir. Apesar da calvície, ainda tinha um rosto angelical; os olhos azuis e a simetria dos traços facilitavam os encontros libidinosos.

Ficara três meses inativo. Neste período tentou terminar seu romance. O livro se chamaria "Memórias de um Guerrilheiro Morto", contaria a história do irmão. Graças ao álcool e as pastilhas, duas substâncias que bloqueavam sua verve artística, desistiu. Também não conseguiria vender o livro. A prosa de conteúdo revolucionário colocaria uma orla de investigadores no seu encalço. Sem um tostão no bolso, o melhor seria esquecer o intelecto e deixar o corpo encarregado do sustento.

Até gostava das senhoras. Para ele quanto mais velha melhor, o serviço era menos cansativo e estressante. As anciãs sempre pagavam em dobro.

A praça mais vistosa do setor 16, era o vale verde; uma imensa área de orquídeas amarelas distribuídas ao redor de árvores frondosas. O itinerário, sempre o mesmo. Esperava que alguma senhora aparecesse e fizesse sinais. Depois a acompanhava, geralmente em silêncio, para local apropriado. 

Após horas a esperar, uma senhorita de longos cabelos negros e olhos verdes, reconfortavelmente instalada a poucos metros, acenou. Usava vestido marrom e chapéu florido. Visual bastante incomum. Apesar de muito magra, era bela; a pessoa mais inesperada que Beto imaginou. Nunca tinha feito qualquer programa com mulheres jovens; a mais nova talvez tivesse cinquenta.

Ficou desconfiado, mas a curiosidade e ânsia de traçar carne fresca o seduziu.

Chegaram num edifício modesto, já desgastado pelo tempo. Destoava do estilo e sofisticação das moradias do setor 16, mas comparado ao local que vivia, o imóvel era luxuoso. Entraram no apartamento. De frente pra porta, um homem de meia idade, com longos bigodes grisalhos, trajando vetusto terno fora de moda - a vestimenta criava atmosfera anacrônica ao redor do sujeito - esperava a chegada dos dois.

A princípio Beto suspeitou que participaria de exótica experiência, uma suruba, putaria das brabas, chegou a sentir o pejo sobre os ombros, mas o rosto circunspecto do senhor logo mudou a estranha expectativa. Segurando um computador portátil, mostrou a Beto um arquivo de notícias. Na página lia-se:

"Morre, aos 35 anos, Hernandes Balbi Velasco, antigo terrorista procurado por diversos crimes. Há aproximadamente seis anos, Hernandes foi processado e julgado pela morte de 165 pessoas. Líder de um grupo paramilitar, encontrava-se desaparecido. O corpo foi achado por pescadores no condado de Inguá, a mais de 600 milhas da capital. As razões da morte ainda não foram esclarecidas. Suspeita-se que o terrorista tentava cruzar a fronteira, mas foi surpreendido pelas más condições climáticas. A autópsia preliminar indica traços de afogamento."

Essa era a nota oficial do governo. Depois dela uma série de ensaios sobre o assunto ilustravam a edição eletrônica do jornal. Muitos articulistas associavam o incidente ao derradeiro fim do fantasma contra-revolucionário que ainda poderia assombrar o desfecho gloriosos do novo regime.   

Beto, diante da notícia ficou absorto. Não sabia o paradeiro do irmão. Depois de tantos anos, natural que estivesse morto. Mas antes era mera suposição, agora, ao alvedrio dos olhos, lia, com certa dor e sofrimento, o que a alma nunca quis aceitar. Contrastando sua lividez, o homem de bigodes, parecia vermelho fúria. Aos berros, perguntou ao rapaz:

"Isso é verdade? Seu irmão realmente está morto?"

Não conseguiu responder.

A mulher magra, com força desproporcional à estrutura do corpo, o algemou. Ele não ofereceu resistência, ainda processava aquele lamurioso comunicado.

"Então rapaz, quero que você conte tudo sobre seu irmão. Me chamo Tito, a bela jovem ao seu lado é Adália. Desculpe as algemas, não somos violentos e não lhe faremos qualquer mal. Estou há alguns anos tentando localizar Hernandes. Nas últimas semanas Adália estava te seguindo. Eu lutei junto com seu irmão e esperava reencontrá-lo. Tinha grandes planos - o tom era mais respeitoso, demostrava segurança e esteio."

"Faz seis anos que procuro algo sobre ele, e nada. Nunca acreditei que poderia estar vivo... ele está morto... isso é horrível - Beto tartamudeava em consternadora sinceridade."

Tito, ainda desconfiado, olhou de soslaio para Adália. A moça, sem emitir ruídos, acenou com a cabeça. Perceberam que Beto falava a verdade.

Apagaram o rapaz antes de reconduzi-lo ao setor 43. Beto acordou em casa, não se lembrava de nada. Na verdade parecia acordar pela primeira vez. Quando se olhou no espelho tomou um susto. Barba feita, cabelos cortados, maquiagem no rosto; precisava diminuir as pastilhas. A perda de memória era sinal dos tempos.


***


FG 


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