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Aventuras de Ravi - VIII

Percorrendo quilômetros a toda velocidade, Colossos exsudava em cansaço. Saltava sobre galhos e troncos distribuídos pelo caminho. O dia que ainda não era noite já não resguardava qualquer claridade, e as sombras da densa vegetação deixava a atmosfera lôbrega. Ao se aproximar de um amplo barranco, o cavalo de chofre arrefeceu. A parada brusca não impediu a queda, e juntos, o animal e o menino, rolaram morro abaixo. Com o corpo encravado em terra, Ravi, que por alguns segundos perdera por completo a consciência, mais pelo susto da queda do que pelos ferimento, recuperou as forças e, ainda deitado ao chão, olhou ao redor, recompondo em memória o ocorrido. Ao seu lado, Colossos arfava; seus olhos denunciavam a iminência da morte. O garoto se levantou. Face a face com o animal, de alguma forma percebeu que o olhar do bichano apontava em súplica e pranto para uma pequena cavidade em rocha, desenhada bem próxima dos dois e que se assemelhava a uma caverna. Deixando o animal descansar, depois de alguns afagos de afeto e comiseração, se dirigiu a caverna. A passagem era estreita, porém seu corpo jovem e franzino não encontrou maiores dificuldades para transpor a pequena abertura. Em escuridão total, nenhum laivo de luminosidade penetrava o ambiente, Ravi engatinhou pela passagem convicto que encontraria algo do outro lado. Na medida que penetrava ao interior da cavidade rochosa, feixes de luz ficavam cada vez mais visíveis do outro lado. Após alguns metros de esforço, conseguiu vencer o túnel. Quando olhou para a paisagem que adornava o outro lado da passagem, seus sentidos turvaram em surpresa. O dia estava claro, suavizado pela luz do sol; e bem perto do seus olhos a portentosa árvore de folhagem azul queimava o alvedrio de suas predileções. Ela, sonora, onírica, sublime, pendia a sua frente; a imagem era tão bela que o menino sentiu-se obnubilado. Enfim, encontrara o objeto de desejo. Queria muito estar ao lado do pai e de Ancian para que os dois partilhassem com ele a emoção e o espanto daquele momento único de contemplação.

Como se a beleza vencesse a verdade, Ravi se recusava a fechar os olhos ou ao menos redirecionar a atenção para os outros campos oferecidos ao seu foco visual. Era a árvore azul, e nada nem ninguém enfraqueceria a força ociosa dos seus gestos. Não havia mais corpo, não havia mais sentido; apenas consubstanciação.

Por fim, interrompeu a contemplação e, meneando a cabeça, olhou ao redor. Estava exatamente no local que avistara no dia anterior; um belo vale iluminado pelas vozes do coração e ornado pela cachoeira de águas claras. Ainda absorvido pela imagem da árvore azul, começou a se lembrar dos incidentes da viagem. Seu pai e o velho senegalês tinham sido levados pelo rio, a esta hora poderiam estar em apuros. Mestre Mago se afogara, talvez já estivesse morto; e seu valente cavalo, o nobre Colossos, compadecia, do outro lado, em dores. Por enquanto nada poderia fazer para ajudar os três que se perderam no rio, porém ajudar o cavalo negro era algo que ainda estava ao seu alcance. Teve uma ideia, pegaria algumas folhas azuis da árvore e levaria à Colossos, provavelmente as lindas folhagens recuperariam a saúde do animal. Moveu o corpo, que voltara a ser seu, e com inesperada habilidade escalou o grosso tronco. Colheu uma dezena de folhas e, sem pestanejar ou olhar para trás, voltou a caverna. Engatinhou pelo interior escuro da passagem, mas ao contrário do que presumia não conseguiu encontrar a entrada, por algum motivo o túnel estava fechado. Sem entender o que acontecia, deu meia volta e retornou. Ao sair da caverna, novo susto. A paisagem era a mesma, mas os raios de sol, que cintilavam e davam cores ao ambiente, haviam desaparecido. A árvore estava lá, incrustada na mesma superfície de solo, mas carecia de folhagem, nenhuma folhinha azul se dispunha sobre os galhos; e as dezenas de folhas colhidas minutos atrás estavam secas, com coloração amarronzada.

O inebriado sonho se convertera em má sorte, e se as folhas azuis eram o amparo das desventuras das últimas horas; neste novo cenário, sem sol ou pureza, a liberdade da inexpugnável estética do instante anterior convertera-se em prisão. O céu, plúmbeo e sem vida, anunciava uma grande tempestade; relâmpagos ressoavam ao redor, produzindo sons de uma orquestra do pavor. A pulsação do seu corpo seguia o ritmo da elegia natural; tinha medo, muito medo.

Os primeiros respingos de chuva o exortaram ao interior da caverna, precisava se proteger da tempestade. Ouvindo as lamúrias do vento e da água que despencava do céu, rogou para que nenhum mau lhe acontecesse. Lembrou da mãe, ou da imagem que ao longo dos anos criara para poder se comunicar com ela; pediu para que o protegesse. Talvez ela estivesse perdida naquela exótica paisagem, esperando o momento exato para salvar o filho. Como se um dilúvio de memória incendiasse seu espanto, começou a sibilar uma doce canção que sua mãe costuma cantar quando ainda era um pequeno bebê. Em suavidade, cantou em lembranças: 

"Delicada semente 
dorme no berço da terra; 
e o sol ela sente 
e depois chuva espera, 
e o broto desperta; 
o mundo dá boas vindas; 
com a força da vida, 
vai ao encontro com o céu; 
com a força da vida, 
vai ao encontro com o céu."

Enquanto a natureza se renovava, dormiu um sonho tranquilo. Ao acordar, deixou a caverna; e, para o gáudio de seu espírito, o sol brotava no horizonte. A cachoeira oferecia água limpa em abundância e a árvore continuava sem folhagem; no entanto, a luz amenizava a crueza de seus galhos vazios, deixando-a bela. Mas uma vez tentou atravessar a caverna e novamente não obteve êxito. Precisava encontrar outro caminho de volta à aldeia. Estava bastante preocupado com o pai. No fundo sabia que o homem rinoceronte escaparia da desdita do rio, e quando percebesse o seu sumiço faria de tudo para encontrá-lo. Voltou à paisagem ensolarada e ao olhar para o céu, observou algo estranho; uma espécie de nuvem azul se destacava no dossel claro. A diferente atmosfera sugeria ao menino que ele se encontrava em outro mundo.     

FG         

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