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Aventuras de Ravi - III

Quando já se aproximavam do destino, depois de enfrentar o desfiladeiro, trecho mais perigoso da viagem, uma árvore de folhas azuis, matizada por radiantes feixes de luz e ao pé de uma sublime e violenta cachoeira, apareceu no horizonte. A imagem era tão bela que o menino, em grande alvoroço, tentou acordar o pai que ainda dormia. Ao despertar com os gritos da criança de "olha, rápido, rápido, veja," fixou os olhos pra onde os dedos do filho apontavam e enxergou uma cadeia de montanhas. Perguntou por que tamanho estardalhaço. Ravi, ao notar que o pai não acordara a tempo de presenciar a imagem que dificilmente sairia de sua memória, se entristeceu em lamúrias. Aborrecido pelo despertar letárgico do homem rinoceronte, tentou, sem muito entusiasmo, descrever o que vira. Mas aquela árvore era inefável, e nem o poeta mais acalorado daria forma às luzes azuis que irradiavam daquele opúsculo da natureza.

Tudo tão azul, visualmente sonoro; tudo tão belo, onírico, pleno; tudo em afasia reconfortante, que se faz memória do para sempre. Entre outros dizeres estes e outros mais poderiam recompor uma pequena porção de tudo aquilo que o garoto Ravi sentia ao reconstruir a imagem da árvore azul através da lembrança que ainda era sensação, percepção do momento quase presente. A folhagem espessa, aparentemente macia que se dispunha singular dentro da imensa floresta de vegetação convencional, poderia ser o reflexo de seus olhos de tons azulados. Outros passageiros conseguiram captar tão proeminente visão? Ou aquele espetáculo foi percebido apenas por ele? Quando o ônibus parou numa pequena cidadezinha o menino não hesitou, foi logo perguntando ao motorista, antes de saltar do veículo:

"Onde fica aquela árvores de folhas azuis? Podemos chegar até ela?"

"Árvore azul? O quê está dizendo? Não existem árvores azuis." replicou o confuso motorista, em um sonoro sotaque de difícil compreensão.

"Passamos por ela, quilômetros atrás. O senhor deve saber já que percorre estes caminhos quase diariamente."

"Lamento rapaz, mas nunca vi nenhuma árvore azul por estas bandas, e olha que viajo nesta estrada a mais de vinte anos."

Se esforçando para entender as palavras do condutor, Ravi lançou um esgar tristonho. Percebendo o semblante do menino, tentou logo consertar o estrago feito pela resposta decepcionante.

"Sabe menino, já estou velho; minha visão não anda boa e ela é capaz apenas de diferenciar a estrada da vegetação. Com a idade perdemos um pouco a sensibilidade, e o que, aos olhos de um passageiro atento, seria de imediata apreensão, aos meus passa despercebido. Muitas vezes comentam comigo algo que viram pelo caminho e eu quase sempre não reconheço. Acho até que nasci apenas para manter a atenção àquilo que não se distancia muito do meu rosto; talvez por isso seja um bom motorista e não consiga me distrair com esta e outras paisagens tão impressionantes. Mas se queres achar a árvore azul pergunte ao velho Ancian, ele mora a poucos metros daqui, é topógrafo e conhece cada detalhe dessas florestas."

Repentinamente animado, Ravi sorriu ao motorista e agradeceu pela condução. Philippe, admirado pela sensibilidade do senhor de aparência tão simplória, acenou com dizeres cristão. "Que Deus abençoe sua jornada!" Por coincidência, pai e filho, antes de seguirem à cavalo o resto do percurso até a aldeia na manhã seguinte, dormiriam na casa de Ancian naquela noite. O topógrafo também era missionário e ajudaria Philippe em sua empreitada. Já do lado de fora do ônibus, disse ao menino que encontrariam Ancian, repousariam em sua casa antes de seguir viagem.

O topógrafo viva num humilde casebre a poucos metros da capela. Era senegalês e conhecia Philippe. A muitos anos atrás fundaram juntos uma vila católica ao sul do Congo. Nesta época, Ancian já havia feito seus estudos topográficos da região chinesa, e logo depois de deixar a vila africana, um pouco antes do próprio Philippe, voltara aquele lugar de relevo acidentado não mais como topógrafo mas como missionário.

Chegaram ao casebre e foram muito bem recebidos pelo senegalês. Um velho de pele muito escura e barba grossa que, um pouco grisalha, dava os primeiros sinais da idade. A construção de pedra abrigava três cômodos, uma sala, um quarto e um banheiro. O anfitrião, após os formalismo da chegada, ajudara os inquilinos com a bagagem, os convidando a assentar no confortável sofá feito à palha. Após as primeiras conversas, Ravi, já não contendo a ansiedade, perguntou ao dono da morada sobre a árvore azul e se era possível visitá-la. A princípio um pouco contrariado e surpreendido pelo pergunta do jovem rapaz, Ancian quis saber em que ponto da estrada tinha visto a árvore. Ao ser informado que ela não se distanciava muito da cidadezinha, deu uma resposta pouco contundente, porém muito simbólica.

"Engraçado você ter visto esta árvore. Poucos conseguem vê-la. Confesso que a muitos anos atrás, quando era jovem e vinha a região pela primeira vez, avistei esta mesma árvore. Tal como você me inebriei com tamanha beleza. Aquela visão era tão bela que dificilmente poderia passar despercebida pelo mais desatento dos viajantes, mas aos poucos fui percebendo que eu era o único a reconhecê-la. Com todos os moradores que conversava nenhum dava qualquer sinal da existência da árvore. Quando iniciei meus trabalhos topográficos tinha certeza que a encontraria; porém, após algum tempo de insucesso na minha busca, esqueci dela; cheguei a pensar que estava sonhando. Fiz muito mapas da região, ao passo que poderia jurar ter percorrido cada palmo dessa superfície; mas se tu falas que viu a mesma árvore que vi a tantos anos atrás é porque minha busca foi incompleta e certamente ela deve estar em algum lugar de difícil acesso. Se teu pai permitires, amanhã antes do sol raiar, podemos, com a ajuda dos meus infindáveis mapas, procurá-la."

Philippe em protesto, indagou:

"Mas amanhã iremos à aldeia, e ao que parece você já combinou com alguns citadinos de seguir viagem conosco para iniciarmos a construção do pequeno templo. Acho que esta aventura terá que ser adiada, coisas mais importantes precisam ser feitas."

"Caro amigo, procurar esta árvore não é um mero passatempo. Amanhã sairemos cedo e se até o final da tarde nada encontrarmos, poderemos adiar as buscas para outro momento. Um dia de atraso é perfeitamente aceitável. Acho, inclusive, que seu garoto ficaria assaz descontente se ao menos amanhã não tentarmos achá-la."

O homem rinoceronte, já não mais contendo sua exasperação de ânimo, falou não em tom professoral e suave, mas ríspido, quase furioso:

"Por favor, perder um dia para procurar algo que não existe é um grande sacrilégio. Ao invés de alimentar as fantasias do meu filho, deveria acalentar seu coração com a verdade."

Ravi olhou raivoso para pai. Até então nunca pensaria ouvir palavras tão severas e brutas daqueles lábios.

"Meu amigo, não são fantasias; eu também vi a árvore, não estava a mentir. Acha que poderia macular o nobre espírito do seu filho inventando e fomentando fantasias? Somos homens de Deus, e foi ele que colocou esta árvore no nosso caminho."    

Philippe, ainda insatisfeito, se recompôs e, concordando com a ideia de procurarem a árvore, pediu desculpas ao filho. O homem rinoceronte novamente ruminava sob o olhar desencantado da criança.

FG

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