Pular para o conteúdo principal

Aventuras de Ravi - II

Philippe pela primeira vez percebia que seu filho estava crescendo, não era mais, apesar da tenra idade, apenas um menino. Aquele comentário sardônico e atrevido não era da feição do "petit enfant", em verdade o pai sequer compreendia a extensão daqueles dizeres, poderia ser uma interpretação curiosa, perfeitamente adaptável à ingenuidade infantil. Sem, no entanto, querer investigar o alcance das palavras do filho, decidiu mudar de assunto e se esforçar para recriar a atmosfera de minutos atrás. Pegou o traje mais colorido e estampado da prateleira da comprimida boutique que estavam e vestiu por cima de seus andrajos convencionais; Ravi se alegrou.

Abastecidos de vestimentas de todos os tipos e cores, caminharam apressadamente, estavam prestes a perder a condução à aldeia. No caminho, um senhor de barba muito branca e cabelos finos que caiam sobre os ombros segurou, à sorrelfa, os braços do menino. Surpreendido com o repentino gesto do ancião, olhou em seus olhos em espanto. O velho parecia cego, seus glóbulos oculares eram cinza esbranquiçados. Quando começou a falar, o pai despertou para o que estava acontecendo e tentou acudir o filho; em um gesto rígido e repentino desvencilhou o braço da criança do jugo do invasor, mas não conseguiu evitar os gemidos, que mais pareciam lamúrias de morte, do estranho. Num lapso temporal de difícil apreciação, ouviram frases tormentosas. Ravi, pouco afeito ao mandarim, nada entendeu; porém seu pai, a julgar pela expressão do rosto, captou as esquálidas palavras do senhor.

Voltando ao ritmo da caminhada que antecedeu o incidente, Ravi, antes mesmo de se refazer do susto, quis saber o que o velho havia falado. Seu pai, apesar de tentar cobrir de desimportância o ocorrido, teve de dizer o que havia escutado. Contou que o velho falava de um menino de olhos azuis que encontraria muitos obstáculos e resistências num mundo particular, uma espécie de passagem da infância para a juventude. 

"Ele disse também algo estranho sobre uma feiticeira, mas não consegui compreender bem. Na verdade aquele velho é apenas um sujeito exótico, absorvido por falsas crenças e motivado talvez pela nossa aparência um tanto incomum para eles."

"Estranho ele falar de um menino de olhos azuis, eu poderia jurar que aquele senhor era cego. Mas pelo visto ele enxergava bem, provavelmente melhor do que nós dois, papai."

"Uma figura estranha, dessas que existem em todos os lugares. Lembra do andarilho Pierre que vivia nos arredores da escola e adorava assustar os meninos ao final das aulas?" - Ravi assentiu com a cabeça - "Então, este senhor é o Pierre chinês. - Philippe esboçou um sorriso pouco convincente aos olhos da criança.

"Lá na aldeia encontraremos sujeitos estranhos assim?"

"Acho que não; a maioria dos aldeões são camponeses, trabalham quase o dia todo e não devem ter tempo para se prestar a estas fantasias oraculares."   

"Então aquele senhor era um oráculo, estava falando sobre o meu futuro?"

"Falava sobre o futuro de qualquer menino, já que a passagem para a juventude e a vida adulta sempre é permeada por imensas aventuras."

"E a feiticeira?"

"Bobagem, apenas bobagem."

No ônibus que os conduziriam até a aldeia, Ravi ficou pensando na mensagem do velho. Seria ele um sábio oráculo? Um profeta que o alertara sobre perigos vindouros? Que mundo era aquele? Seria o mesmo dos seus sonhos? E a feiticeira? Deveria, a partir de então, ser cauteloso, evitar perigos e seguir as orientações do pai.

Divagando sobre o caso, suas elucubrações só foram interrompidas quando, na metade do percurso, percebeu a incrível paisagem que o circundava. Estava numa poltrona recostado à janela, ao seu lado Philippe cochilava. A estrada acompanhava um imenso desfiladeiro e as atribulações da pista exortavam o motorista a seguir em vagarosa prudência. O ritmo lento possibilitava a total apreciação do ambiente; e nada poderia ser tão prazeroso para o menino. Quando o pai descreveu o que encontrariam no lugar, durante o voo de Paris à Guanghzou, não conseguiu esmiuçar nem a décima parte de toda aquela beleza; Ravi se enebriava, suas sensações, seu espírito e ânimo se engrandeciam a cada árvore e montanha que repentinamente se desvelavam no horizonte.

Abaixo do desfiladeiro existia uma gigantesca floresta de vegetação espessa e frondosa. Todas as árvores tinham folhas de um verde escuro muito vivo, comum para aquela época do ano. E não obstante tudo o que era visto durante quilômetros a fio aparentasse recrudescente semelhança, para Ravi cada detalhe das montanhas e florestas era genuinamente original. A superfície extremamente acidentada produzia uma atmosfera de impotência e prostração. Diante do inexpugnável o menino se sentia bem; a hiperbólica paisagem se assentava com perfeição ao seu simbólico mundo, e naqueles calmantes momentos que permearam a viagem, chegou a acreditar que seus sonhos eram reais e que seu mundo imaginado era apenas a projeção daquele exótico ambiente. Porém, nada estava fora do lugar, e, por mais que forçasse a vista para enxergar distâncias ainda não alcançadas, todos aqueles contornos preservavam uma estância real; nada imaginado, tudo verdadeiro.

FG  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Camões vs. Gonçalves Dias - um duelo aos olhos verdes

Redondilha de Camões Menina dos olhos verdes Por que me não vedes? Eles verdes são, E têm por usança Na cor esperança E nas obras não Vossa condição Não é de olhos verdes, Porque me não vedes. Isenção a molhos Que eles dizem terdes, Não são de olhos verdes, Nem de verdes olhos. Sirvo de geolhos, E vós não me credes, Porque me não vedes. Havia de ser, Por que possa vê-los, Que uns olhos tão belos Não se hão de esconder. Mas fazeis-me crer Que já não são verdes, Porque me não vedes. Verdes não o são No que alcanço deles; Verdes são aqueles Que esperança dão. Se na condição Está serem verdes, Por que me não vedes? (poema retirado do livro Lírica Redondilhas e Sonetos de Camões da editora Ediouro) Olhos Verdes de Gonçalves Dias São uns olhos verdes, verdes, Uns olhos de verde-mar, Quando o tempo vai bonança; Uns olhos cor de esperança Uns olhos por que morri; Que, ai de mi! Nem já sei qual

Carta de Despedida

Sentir? Sinta quem lê! Fernando Pessoa Quando alguém ler estas palavras já estarei morto. Não foi por impulso, refleti muito, ao tomar esta decisão; percebi que o melhor não seria viver, mas desistir. Venho, através desta carta, me despedir de algumas pessoas; tenho, antes de tudo, a responsabilidade de amenizar a dor, causada por esta autônoma escolha, que infelizmente afligirá quem não a merece. Cansei de ser covarde, ao menos nesta derradeira atitude assumirei a postura obstinada e corajosa dos homens de fibra; não será por medo e nem por desesperança do futuro que abdicarei da existência, são razões bem mais simplórias que me autorizaram a colocar em prática resoluta solução; na verdade, talvez não exista razão alguma, esta será uma decisão como qualquer outra, e, portanto, será oriunda da mais depurada liberdade de meu espírito. Não quero responsabilizar ninguém, pois apenas eu, sem nenhuma influência exterior, escolhi por um ponto final nesta frase mal escrita

Narrativa Erótica

Um homem cansado fumava seu cigarro refestelado ao sofá, ouvia um pouco de jazz e não pensava em nada; Miles Davis, o inigualável músico americano, preparava seu organismo para uma vindoura noite de prazer. A atmosfera era cálida, desaconselhava as formalidades de qualquer andrajo ou vestimenta; em uma espécie de convite, o calor exortava-o à nudez. Não era belo, tampouco repugnante, tinha alguns atrativos capazes de seduzir mulheres mais liberais, apesar de magro possuía um corpo atlético, bem definido. Três baganas já pendiam sobre o cinzeiro, sua vitrola sibilava o ar com um doce almíscar sonoro de Blue in Green, criando um clima perfeito para possíveis relaxamentos sexuais . D e olhos fechados, aguardava, dentro de uma tranquilidade incomum, ansioso e apoplético; seus movimentos eram delicados, sincronizados, quase poéticos; levava o cigarro à comissura dos lábios, inspirava a fumaça para depois soltá-la, tentando criar figuras mágicas, inebriadas pela falta de pudor. A s