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Aventuras de Ravi - IV

Insatisfeito com o pai, e já nutrindo uma forte empatia pelo velho senegalês, Ravi foi para o quarto se deitar; precisava se recompor para a busca do dia seguinte. Os dois homens, enquanto o menino dormia, continuaram sobre o sofá de palha conversando. Bebiam saque e vinho, e a medida que o corpo de ambos esquentava, a mente se amoldava numa construção de linguagem mais pura e sem barreiras. Conversaram sobre os tristes incidentes de anos atrás no sul do Congo, quando os dois nada fizeram para impedir um monstruoso massacre, promovido com o apoio do governo central do país contra congoleses já convertidos ao catolicismo.

"Eu me lembro das chamas e dos gritos de horror. Quando tudo se incendiava e nós abrigávamos a família Bongolê no interior da capela, não tivemos a coragem de Deus para evitar nem uma nódoa de tragédia." - dizia Ancian com lágrimas aos olhos.

"Tudo aquilo que aconteceu não estava ao nosso alcance, fomos surpreendidos pela milícia do governo e tivemos sorte em sobreviver. Eles destruíram tudo menos a capela, e eu nunca entendi por que eles preservaram a humilde morada de Deus; certamente não foi por medo de uma intervenção dos céus. - Philippe suspirou em angústia, aos poucos retomava as lembranças pungentes daquele momento nada misericordioso. Pálido e com o olhar em trevas, continuou. - "Quando eles invadiram a capela e espancaram pai e mãe Bongolê na frente da filha, senti uma fúria impotente, e depois" - não conseguiu continuar, se engasgava em ressentimentos.

Os dois, olhando para o vazio, pareciam vivenciar mentalmente toda a perfídia do passado. Naquela noite ignominiosa um comboio militar invadiu a vila católica fundada por eles. A mais de dois anos trabalhavam ao lado de trinta famílias camponesas, produzindo inhame, banana, mandioca e sorgo. Além do cultivo, disseminavam a cultura cristã não só na aldeia como nos arredores. Durante aquele tempo sofreram algumas intervenções e retaliações do governo instituído, principalmente o confisco de mercadorias, mas nada que pudesse ameaçar a existência da comunidade e nem limitar o alcance dos seus projetos cristãos; tampouco poderiam imaginar qualquer violência contra eles e os aldeões. No entanto, no final da primavera foram surpreendidos pela invasão de quinze homens fortemente armados. Eles destruíram todas as casas, mataram alguns camponeses que ofereceram resistência e prenderam os demais; diziam estar seguindo ordens do ministro de Estado. Quando entraram na capela e perceberam que uma família de pai, mãe e filha estava escondida, riram em laivos de revolta insinuando um castigo iminente. E de fato a punição veio de forma irascível. Dois deles espancaram o homem e a mulher e um terceiro sobre o altar de cristo violentou a menina na frente de todos. Philippe e Ancian nada fizeram, assistiram toda a barbárie sem reação. O miliciano que parecia liderar o grupo, quando viu seus comandados praticando os atos infames, atirou na menina antes de agredir o homem que a violentava. Com sangue nas mãos esbofeteou Ancian e ameaçou Philippe com o revólver. Pai e mãe Bongolê, ao presenciarem a execução da própria filha, já desesperados pela situação, tentaram, de todas as formas e com a toda a fúria de seus corpos, intervir; acabaram mortos pelos homens que os seguravam. Após a desforra aviltante, os missionários foram abandonados sozinhos na vila destruída.

Mais tarde Ancian, a pedido do governo senegalês, foi deportado para seu país de origem; Philippe continuou no Congo protegido pela embaixada francesa. Acompanhou o processo que julgou os excessos cometidos pelos militares no trágico incidente. Mesmo recebendo muitas ameaças, foi a testemunha principal do julgamento. O governo se eximiu de culpa, condenando os autores diretos do massacre. A punição, no entanto, acabou sendo bastante branda comparada aos crimes cometidos; e tanto Ancian quanto Philippe nunca mais se recuperaram do trauma. O senegalês voltou para a China, lugar que se sentia mais seguro e livre das plangentes sensações que atormentavam sua memória, já o pai de Ravi começou a lesionar teologia na escola de sua cidade natal, onde teve uma vida pacata ao lado de sua falecida esposa e longe das tormentas do passado. 

"Pensei que após o ocorrido tu irias perder a fé. Fiquei surpreso quando soube de sua vinda para cá depois de tão pouco tempo da tragédia." - disse Philippe de volta ao presente.

"Naquele tempo pensei em largar a batina, estava revoltado com Deus. Todo o ocorrido foi demasiadamente pesado, e minha fé não era capaz de sustentar insidiosas lembranças. Abandonei Deus e a vida, entrei num estado de melancolia profunda e nada fiz naqueles meses que sucederam o massacre. Depois, já sem fé, decidi comunicar, ao cardeal de Dakar, minha decisão de abandonar a igreja; e quando fiz isso as lembranças do Congo voltaram a ficar insuportáveis, e eu sabia que ao longo do demorado processo de desligamento elas iriam perdurar violentamente. O cardeal Sagna, no entanto, me fez uma proposta; ao invés de largar a batina eu poderia me mudar pra cá, lugar que sempre nutri inestimável carinho. Aceitei a proposta, e desde então vivo aqui. De certa forma recuperei minha fé, porém não aceito mais os dogmas cristãos; não lesiono teologia, tampouco compartilho com os chineses a autoridade cega da mensagem de cristo. Ensino a eles a fomentar o que cada um tem de bom. Aliás, quando fores a capela perceberá que nada existe em homenagem ao Deus das escrituras, lá é apenas uma simples construção que incentiva os homens a entrar em contado com o deus que cada um reserva dentro de si."

"Neste tempo todo não ensinou nada a este povo? Nenhuma palavra de cristo, nenhuma mensagem cristã?"

"Ensino e tento despertar o lado bom que existe em todos nós. Acho que este foi o intuito de cristo, sua verdadeira missão. Nunca pretendi subverter a cultura chinesa com qualquer moralismo apegado cegamente ao evangelho."

"Perdeste a fé, meu caro Ancian, perdeste a fé!" - o tom da fala transmitia desesperança e resignação e os olhos de Philippe, após escutar o velho amigo, estavam soltos, não visuais, perdidos, inertes, quase mortos.

"Não! Sou um homem de Deus, e como tal incuto conforto e compaixão naqueles que se enveredam num caminho de sombras. Os chineses não precisam da mitologia cristã para o exercício de virtudes. A partir de suas fábulas podemos não só ensinar o que é justo, bom e belo; como também aprender um pouco mais sobre nós mesmos e sobre o mundo. Esta cultura, este povo, assim como todas as outras culturas e todos os outros povos nos têm a oferece uma nova forma de enxergar a vida e de vivê-la de maneira boa."

"Vim a China para ajudar um velho amigo na tarefa evangelizadora; porém percebo que terei de fazer, começando do zero, tudo sozinho. E já não sei mais se posso chamá-lo de amigo. Tu te transformaste em outra pessoa, não é o jovem Ancian que nutria tanto afeto. Somos tão diferentes agora, pensamos a realidade e a fé de forma tão distintas que não é possível mais compartilhar com você a amizade."

"Não se engane, o que nos fez amigo não foi a crença criatã, o que nos fez amigo foi a troca sem amarras, sem censura de afeto. Lembra de quando nos conhecemos? Você debochava do meu sotaque e eu motejava de sua pele clara. Em nossa primeira caminhada juntos, sob um sol escaldante, brinquei com a vermelhidão repentina de sua face. Você, mesmo com dor e diante de um desconhecido que zombava do seu incômodo, me agradeceu pelos momentos divertidos de prosa e descontração. Ficamos amigos naquele mesmo dia, não pela vivência cristã que nos igualava, mas sim por aquilo que nos tornava diferentes. Nossa empatia foi galvanizada pelas nossas díspares experiências de vida."

Um pouco convencido pelas palavras do amigo, transmitiu um doce olhar e comentou:

"Você, com seu humor jocoso e sotaque atrevido, era o que faltava para a minha severidade aparvalhada de homem frio."

"E tu eras o frescor necessário à minha linguagem incandescente."

FG 

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