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Aventuras de Ravi - VI

“Quando disse ao meu filho que também havia visto a árvore de folhagem azul, pensava estar fomentando sua imaginação, ou, no mínimo, protegendo-o das cruezas do mundo. Como tu mesmo disseste, ninguém nunca comentou sobre esta peculiar espécie de vegetação, ninguém nunca a viu; ninguém nunca admitiu sua existência. Não entendo suas intenções, tampouco posso acreditar que tiveste a mesma ilusão visual do meu menino.”

“Quando seu filho descreveu a árvore, de folhas azuis espessas e ao lado de uma portentosa cachoeira, foi como se ele tivesse resgatado meu passado. Tive a mesma visão, e na época não julgava estar louco. Sei que pode parecer estranho, inacreditável; mas amanhã, quando partirmos em nossa busca, procurarei pela árvore com a mesma paixão da criança. Aliás, minha intuição diz que encontraremos esta árvore e que ela nos trará conforto e respostas que tanto eu quanto você procuramos”

“Supondo que a árvore exista e que nós a encontraremos, qual resposta ela poderá nos fornecer? O que faremos com uma mera experiência visual de algo que a princípio tu e meu filho supõem ser bela? No máximo faremos uma descoberta biológica, encontraremos uma espécie nova de vegetação; porém, como não somos botânicos ou biólogos, de nada servirá nossa empreitada.”

“Acho que a fé cristã te fez cético. Somos adultos e como tais carecemos de inocência. Temos nossos traumas, réprobas lembranças; talvez um desazo da consciência que insiste em retirar de nós a pulsão criadora, o contado, o sentimento e o sentido que transcende a realidade. Nem tudo que existe se oferece, muitas vezes vivemos alheio ao que se dispõe do nosso lado. Seu filho, no entanto, ainda guarda dentro de si a pureza que o permite ver além das aparências. Ele nos conduzirá até a árvore, e diante dela recuperaremos a potência, o frêmito da vida, os auspícios das paz de espírito." - olhou para Philippe que parecia confuso, não entendendo ao certo aquelas insinuações; a fisionomia do amigo modificou o tom e o teor da sua prosa - "O que fizemos no Congo foi diabólico, subvertemos a cultura de dezenas de camponeses e em troca eles receberam a morte. Nós éramos os instrumentos necessários para limpar o terreno antes do massacre. Sem saber, fomos usados pela igreja, pela França e pelos políticos congoleses. Todos aqueles milicianos que promoveram o massacre estavam a mando do governo central, tenho certeza que sabe disso. No processo, no qual participou e ajudou na farsa, condenaram os homem que participaram diretamente das atrocidades, mas no fim associaram o grupo a uma organização terrorista que intentava eliminar comunidades cristãs. Este grupo nunca existiu, todos aqueles homens eram mercenários contratados pelo ministro de guerra. A verdade foi camuflada, e as relações do governo com o massacre ficou escondida. Massacres semelhantes foram feitos ao longo desses anos, e associaram todos eles a divergências religiosas entre grupos paramilitares e camponeses. Comunidades islâmicas fundadas nas últimas décadas também foram alvo dos achaques violentos dessa falsificação política, e não me assustaria nem um pouco pensar que uma suposta cúpula do islamismo instrumentaliza fieis para a promoção de interesses econômicos escusos. Hoje no Congo praticamente inexiste comunidades agrícolas voltadas para o cultivo não predatório da terra; a maior parte dos camponeses trabalha em grandes latifúndios, vivendo um vida miserável e em condições subumanas. Ter consciência da minha participação neste jogo espúrio de relações econômicas, lacera qualquer condolência que por ventura julgava ter pela nossa corrompida instituição cristã."

"Não posso acreditar nesta sua revelação conspiratória. Sei que o governo participou do massacre e que, ao longo do processo, uma imensa atmosfera de injustiça impossibilitou a descoberta da verdade. Em vários momentos me senti angustiado por ter corroborado com tamanha farsa, mas pensar que tudo o que aconteceu tinha sido planejado desde o início, que nós e outros missionários fomos enviados para a África com o objetivo diabólico devidamente arquitetado pela igreja e pelos governos da França e do Congo, não passa de uma fantasia espetaculosa de suas interpolações traumáticas."      


"Estou apenas simplificando uma história bastante complexa. Não sei de fato de que forma a igreja me instrumentalizou, mas não posso permitir que algo semelhante se repita sob a tutela de meus olhos."

"E mesmo ciente das conspirações opressoras da igreja manteve-se padre. Tu és um grande cínico, meu amigo."

"Não larguei oficialmente a batina, mas não me considero padre; como disse não converto os chineses ao cristianismo. Quando tentei me desligar da igreja não consegui, e o fato de ter continuado padre foi uma imolação forçada pelos bispos senegaleses. A mim não foi concedido qualquer graça, não podia deixar a igreja depois de tudo o que aconteceu, eles precisavam me manter enclausurado no sacerdócio, para que minha atitude não despertasse suspeitas."

"Ancian, me parece que tu estas absorvido em desatinos. Eu me desliguei da igreja e não encontrei qualquer obstáculo. Por que acha que no meu caso houve um tratamento diferenciado?"

"Na França as coisas acontecem de outra maneira. O governo te ofereceu um cargo na escola pública, e tenho certeza que, se insinuasse rejeição ao suposto mimo, seria forçado a aceitar o emprego. Sob a tutela estatal, não precisariam mantê-lo acorrentado ao sacerdócio; a posição pública garantiria uma vigilância ainda maior. Ou acha que durante todos estes anos ninguém seguiu seus rastros?"

"De fato fui forçado, mesmo sem oferecer resistência, a aceitar o emprego na escola. E talvez estes detalhes tenham pré sugestionado seu intelecto a criar estes devaneios conspiratórios. O que não entendo é a relação dessas infames memórias com a árvore azul. Por acaso pretende encontrar uma resposta às lancinantes dúvidas que o enchem de culpa e desesperanças? Era isso que tentava insinuar?"

"Gostaria apenas de voltar a ver algum laivo de pureza e inocência. E o seu filho parece saber o caminho das flores que tanto procuro."

Nesta altura da conversa, ambos estavam exaustos e alcoolizados. Foram dormir. Philippe adormeceu com a sensação de que seu amigo flertava com a insanidade; e, como bom cristão, deveria recondicionar o espírito do seu velho afeto à santidade de cristo.

FG 
  

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