A conversa entre pai e filho se estendeu por horas. Ravi, desejoso em explicar a riqueza de suas fantasias, perorou sobre seus sonhos; as paisagens, os animais, os sons e as cores daquele mundo que era só seu. Dizia ao pai que talvez tudo aquilo fosse real, e que em algum lugar encontraria um portal de acesso àquele feixe imenso de sensações. Philippe, orgulhoso da sensibilidade do filho, sempre aos afagos, insistia em apontar para o coração da criança ao se referir à passagem secreta do mundo imaginado pelo filho.
"Tu guardas a chave desse lugar. Ela está em você, dentro de ti. Sinta a pulsação do seu corpo, perceba o quanto seu espírito é belo e sublime, o quão cheio de vivacidade, de vida guarda em seu âmago. O mundo imaginado por ti, é o reflexo, uma miragem de Deus; um pedacinho dele e da sua obra. Confesso que seu pai também tem um mundo próprio, também, como tu, sonhas; mas, ao me reconhecer como um servo humilde, uma partícula, um ornamento de luz do nosso senhor, sei que meu mundo não é só meu, é apenas uma nesga, um farelo da verdadeira criação. Apesar disso, preservo meus farelos, enfeito minha imaginação, transformo aquilo que possuo em algo ainda mais belo, isso é uma forma de louvor, de homenagem àquele que me fez e criou. Quando olho para ti, filho; percebo uma grande sensibilidade, um espírito criador, um artista. Não desperdice está dádiva, não deixe seus farelos se perderem em suas mãos. Quando descreve seu mundo, me ensina um pouquinho sobre Deus, e isso me expande a felicidade."
Ravi às vezes ficava confuso com os sermões do pai, no entanto adorava ouvir sua voz; o tom professoral dele era compensado por uma suavidade deslisante quase etérea. Além disso o som era emoldurado por gestos tão sincrônicos, que os discursos do pai, por mais que tivessem um conteúdo repetitivo, pedante, nunca o entediava, pelo contrário, lhe enchia de força criadora. Por vezes imaginava seu pai como um homem rinoceronte, o conteúdo das falas se refletia no corpo bruto, pesado e rígido, já a forma de expressão se misturava às linhas, curvas e estruturas tão diversificadas do animal, com o corno longilíneo e as patas roliças, o tronco arredondado e a cabeça delgada. Também o temperamento; calmo e pacato quando não incomodado, severo e raivoso ao pressentir perigo, assemelhava-se com o de Philippe. Durante o voo, o pai convertido em rinoceronte e apertado na poltrona inadequada para seu corpanzil, divertia o garoto com frases cheirosas e macias.
"Sabes como fortalece sua criação, fortifica seus farelos?"
"Não, papai?"
"Precisa iluminar ainda mais o que é luminoso, e levar luz para os lugares de sombras. Cuidado com os pântanos, os desertos, o frio. Cuidado, muito cuidado. Não se perca em medos, angústias; não faça do seu pedacinho de mundo um tugúrio contra as trevas; um refúgio aos perigos reais. Dê cores vivas aquilo que insiste em ser cinza, colora a noite com camadas e espessuras de amor."
Com sorrisos pai e filho a todo momento se compraziam em cumplicidade. Era prazeroso trocar afetos com palavras e conhecimentos com o olhar. A viagem, apesar de longa, se comprimiu num tempo de satisfatória empatia, e a exaustão de horas numa poltrona desconfortável, principalmente para o pai rinoceronte, foi equilibrada pela presença e companhia do outro.
No saguão do aeroporto de Guangzhou, os dois esperaram pelas bagagens, mal sabiam que um imenso infortúnio já havia acontecido; entre idas e vindas de infindáveis voos comerciais, seus pertences se perderam em extravio. A essa altura o canivete afiado, a bússola, o chapéu de aventureiro, a corda resistente, todas as roupas e livros de Ravi, além das roupas e da coleção de textos sagrados de Philippe, incluindo sua portentosa edição da Bíblia Sagrada, ocupavam um acalorado depósito nas terras tropicais do Brasil. Nem eles nem os funcionários da companhia aérea sabiam disso, de forma que após um longo período de espera, confusos empregados, vestindo roupas asseadas com logotipos nada criativos de empresas aéreas, informaram o problema, pedindo, sem qualquer convicção, paciência ao pai e ao filho.
Já resignados com a perda da bagagem, eles decidiram, antes de pegar a condução que os levariam até a aldeia de Huangphu, local que passariam os próximos anos, comprar alguns itens indispensáveis. Entre lojas convencionais e exóticas, se divertiram na experimentação de vestuários engraçados aos olhos ocidentais; e já desfeitos do amargor ocasionado pela incompetência no transporte de seus pertences, dialogaram sobre a situação.
"Papai, toda esta confusão me fez refletir."
"Ainda está chateado por ter perdido suas coisas?"
"Não! Comprar novas roupas está sendo ótimo; quero me ambientar com este novo mundo, e vestir estes panos engraçados irá me ajudar."
"Se soubesse nem tinha me preocupado com a bagagem; estou triste apenas pelos livros."
"Você pode comprar outros aqui."
"Vou ter que procurar muito pra achar uma Bíblia que eu possa ler."
"O senhor não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados no aeroporto."
"Não meu filho. Papai, assim como qualquer homem, tem suas limitações."
"Ah... então deve ser isso. Quem perdeu nossa bagagem deve ter algumas limitações."
Neste momento, pai e filho se entreolharam com o semblante em risos. Ravi continuou sua análise jocosa; Philippe, numa reviravolta de descontentamento, tentou frear a fervura cômica do filho que, no entanto, insistia.
"Não entendo pai, me parece que nós, os humanos, somos falhos em demasia; quando precisamos cumprir nossas obrigações o fardo a carregar parece muito pesado."
"Muitas vezes a aparência se confundi com desleixo. Fazemos o que é possível, e quando algo sai do lugar precisamos retirar o melhor do que não foi bem feito. Agora por exemplo estamos nos divertindo, e isto graças a companhia aérea, graças à nossa bagagem extraviada."
"Graças ao desleixo da companhia que não cumpriu sua finalidade. Talvez esteja exagerando, já que a finalidade das companhias aéreas é levar os passageiros com segurança ao destino, nisto ela foi divina. Esta outra parte da bagagem deve ser uma mera frivolidade."
Ravi olhou para o pai interrogativo, tentava, um pouco aflito, ler a expressão do homem rinoceronte. Philippe mastigava, como se ruminasse o sutil atrevimento do filho, talvez mais uma frase ou pequena provocação despertasse a ira do animal selvagem.
FG
Já resignados com a perda da bagagem, eles decidiram, antes de pegar a condução que os levariam até a aldeia de Huangphu, local que passariam os próximos anos, comprar alguns itens indispensáveis. Entre lojas convencionais e exóticas, se divertiram na experimentação de vestuários engraçados aos olhos ocidentais; e já desfeitos do amargor ocasionado pela incompetência no transporte de seus pertences, dialogaram sobre a situação.
"Papai, toda esta confusão me fez refletir."
"Ainda está chateado por ter perdido suas coisas?"
"Não! Comprar novas roupas está sendo ótimo; quero me ambientar com este novo mundo, e vestir estes panos engraçados irá me ajudar."
"Se soubesse nem tinha me preocupado com a bagagem; estou triste apenas pelos livros."
"Você pode comprar outros aqui."
"Vou ter que procurar muito pra achar uma Bíblia que eu possa ler."
"O senhor não lê em mandarim? Estava conversando com aqueles homenzinhos de olhos puxados no aeroporto."
"Não meu filho. Papai, assim como qualquer homem, tem suas limitações."
"Ah... então deve ser isso. Quem perdeu nossa bagagem deve ter algumas limitações."
Neste momento, pai e filho se entreolharam com o semblante em risos. Ravi continuou sua análise jocosa; Philippe, numa reviravolta de descontentamento, tentou frear a fervura cômica do filho que, no entanto, insistia.
"Não entendo pai, me parece que nós, os humanos, somos falhos em demasia; quando precisamos cumprir nossas obrigações o fardo a carregar parece muito pesado."
"Muitas vezes a aparência se confundi com desleixo. Fazemos o que é possível, e quando algo sai do lugar precisamos retirar o melhor do que não foi bem feito. Agora por exemplo estamos nos divertindo, e isto graças a companhia aérea, graças à nossa bagagem extraviada."
"Graças ao desleixo da companhia que não cumpriu sua finalidade. Talvez esteja exagerando, já que a finalidade das companhias aéreas é levar os passageiros com segurança ao destino, nisto ela foi divina. Esta outra parte da bagagem deve ser uma mera frivolidade."
Ravi olhou para o pai interrogativo, tentava, um pouco aflito, ler a expressão do homem rinoceronte. Philippe mastigava, como se ruminasse o sutil atrevimento do filho, talvez mais uma frase ou pequena provocação despertasse a ira do animal selvagem.
FG
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