No período em que Philippe ficou sob a tutela da embaixada francesa no Congo, se sentiu impotente. Diante de tamanha tragédia e ciente da repercussão negativa do incidente sobre a cúpula do governo congolês, sabia que uma atmosfera de injustiça permearia o julgamento dos culpados. O que não sabia era que a própria França tinha interesse em encobrir o caso. As ligações econômicas do seu país com a nação africana não poderiam ser abaladas pelo contratempo que vitimou dezenas de famílias insignificantes à política cínica e não humanitária do Estado europeu. Eles precisavam, a todo custo, atenuar as consequências do massacre, e para tanto obrigaram os diplomatas e funcionários da região a orientar o missionário durante seu testemunho no processo. Era de interesse de ambos os governos a extinção de todas as comunidades voltadas à agricultura familiar e de subsistência. Planejavam intensificar o cultivo predatório da monocultura latifundiária, para que a chefia governamental do Congo se enriquecesse com a exportação de produtos primários, e para que o governo francês tivesse acesso à matérias primas de baixo custo. Uma transição de poder motivada pela barbárie dos eventos catastróficos poderia abalar as relações mercantis entre os dois países, e isto não era aceitável.
Findado o processo, Philippe retornou a França e foi, quase coercitivamente, alocado à uma cidadezinha próxima a Paris, recebendo o cargo de professor de teologia numa escola secundarista. Por lá viveu alheio às implicações macroeconômicas ligadas à tragédia. Sem saber, era vigiado de perto por agentes estatais que fiscalizavam o conteúdo de suas aulas, palestras e textos publicados. A culpa e o sentimento de injustiça o acompanharam por longa data, mas, ao contrário do amigo senegalês, manteve-se circunspecto em relação à Deus e à fé cristã. Sentia que algo maior estava reservado para àquelas singelas famílias de camponeses que transmitira a verdadeira linguagem da fé; e se sentia remorso pela inação diante da violência contra o povo que aprendera a amar, de alguma forma acalentava suas angústia a partir da espiritualidade em cristo.
Impedido de continuar suas migrações pelo mundo, levando a mensagem cristã às mais diversas culturas, decidiu se desligar da Igreja. Um forte sentimento, que julgava ser divino, o incutia a um estilo de vida diferente. Para ele era da vontade de Deus que largasse a batina para constituir uma família.
Conheceu sua esposa no colégio. Ela era professora de literatura, e, tal como a maioria das pessoas de sua geração, não tinha fé, tampouco acreditava em Deus. A diferença espiritual que os separavam, de alguma forma incendiou a fogueira interna da paixão. Os dois se apaixonaram. Philippe, que ainda não conhecia a sensação do amor romântico, pensava que o sentimento era a mais etérea recompensa dos céus; sua mulher, já afeita aos prazeres da carne, acreditava que conseguiria demonstrar ao marido a dissonância entre Deus e a convulsão amorosa do corpo. Mesmo renitentes em suas originárias crenças, mantiveram um relacionamento estável, que seguiu o ritmo de uma canção barroca, sincronizada entre as trevas e a luz.
Ravi nasceu em meio a muitas alegrias e projetos; ambos continuavam na escola, seguindo suas vidas comuns. Porém, as atribulações do cotidiano afastaram pai e mãe. Se separaram pouco depois da criança completar um ano. A mulher ficou com o filho. Durante este período Philippe andou angustiado, preso à sensação de fracasso; julgava que sua união com a antiga esposa deveria ser eterna.
A mãe de Ravi faleceu sob circunstâncias misteriosas. Na ocasião o menino passava o fim de semana com o pai. A mulher foi encontrada morta no banheiro de sua casa; a perícia constatou morte súbita devido a um aneurisma cerebral que a mulher não conhecia ou ao menos não revelara a ninguém.
Esta nova tragédia modificou a vida de pai e filho. A criança, de apenas dois anos, ainda era muito pequena para expressar conscientemente a perda; no entanto a separação repentina da mãe abalara por completo seu desenvolvimento e formas de se relacionar com o mundo. Ravi se aproximou, a cada nova etapa da infância, a um caminho de fantasias e sensibilidades. Seu pai, diante da necessidade de acolher o filho, não teve muito tempo para experienciar a tristeza; fez de tudo para mantê-lo afastado das crueldades da vida, sempre mostrando ao menino a beleza de todas as coisas. Dizia à criança que sua mãe estava no céu sempre a protegê-lo; e que, se ele quisesse conversar com ela, bastaria ouvir a voz que perpassava seu coração.
Escondendo o seu passado de Ravi, viveu anos pacatos ao lado do filho e lecionando na escola. Meses antes da viagem para China e sem se relacionar com qualquer outra mulher, decidiu voltar a igreja. Suas boas relações com o arcebispo de Paris fez com que fosse readmitido na congregação católica. Alguns setores da instituição cristã, ligadas ao antigo governo francês, temiam sua volta ao celibato, pretendiam manter a antiga tragédia do Congo encoberta por diversos panos; decidiram enviá-lo a China para mantê-lo bem longe dos holofotes. Juntá-lo a Ancian, no isolamento desertor do continente asiático, não incomodava os membros da igreja; afinal, numa inócua vila chinesa, Philippe e o padre senegalês, mesmo juntos, seriam inofensivos.
Na conversa entre os dois missionários regadas a bom vinho e resguardada pelo sonho da criança que dormia no quarto sem nada ouvir, Philippe contou ao velho amigo, em verdadeira cumplicidade, parte do seu passado recente. Um pouco antes de dormir, dialogaram sobre a aventura que enfrentariam no dia seguinte.
FG
Comentários
Postar um comentário