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Don't Worry, I Killed the Facebook (part.VIII)




- Nunca estive melhor. – Sem olhar para moça, Gabriel deleitou-se com um prolongado trago da bebida.
- Seus olhos estão inchados, e sua camisa está suja de sangue! - Exclamou assustada, não compreendendo a indiferença do rapaz. – Tem certeza que não precisa de ajuda?
- Agradeço sua amabilidade, mas, se não puder oferecer uma boa conversa, é melhor me deixar sozinho. Gostaria de me concentrar na sonoridade agradável do ambiente, esta música converteu em bem-estar emocional minha dor física. – Transformando a arrogância em gentileza, continuou – aliás, confesso, nunca pensei que um bandolim e os dedos de uma instrumentista far-me-iam enxergar poesia em ondas sonoras.
-... - Exitante, não sabia como continuar a conversa; as feridas do rapaz, sua aparente embriaguez e principalmente o jeito empolado em se expressar assustaram a jovem. No entanto, por alguma razão, sentiu uma estranha atração por Gabriel; esqueceu as circunstâncias e puxou uma cadeira na mesa do rapaz.
- Então, não me digas que és uma excelente palestrante? - perguntou Gabriel, novamente sorrindo.
- A bandolinista é minha amiga, nós moramos juntas em um apartamento aqui em cima – apontou para o teto. Suas mão eram muito alvas, ligeiramente roliças, porém delicadas. Aquele gesto chamou a atenção de Gabriel, seu amigo finalmente teve a curiosidade de analisar o rosto da mulher. Seus cabelos eram escuros, lisos; sua pele clara e os olhos, provavelmente negros, a luminosidade dificultava uma definição precisa, eram pequenos e rasgados; aquele curioso formato ocular davam à moça uma atmosfera de mistério; algo nela era instigante. Rindo, continuou – acredite, existem vantagens em morar em cima de um bar, principalmente quando você trabalha nele.
- Você também trabalha aqui?
- Sou a dona – disse, mas no instante seguinte gargalhou. Vários segundos se passaram sem que ninguém pronunciasse qualquer palavra; o silêncio, agradável para seu amigo, tornou-se constrangedor para a moça. Sincrônicos, voltaram a falar simultaneamente.
Ele: “Adoro esta música”
Ela: “Você me lembra alguém”
Sorriram.
- Sério? Você também tem um rosto familiar. Já ouviu falar em Harriet Andersson?
- Não.
- Foi a primeira musa do Bergman. Protagonizou os clássicos “Monika e o Desejo”, “Através de Um Espelho”, “Gritos e Sussurros”. Vocês têm o mesmo semblante misterioso.
- Acredito que isto seja um elogio.
- Posso garantir que não é nenhuma injúria. – Seu amigo voltou a sorrir, a embriaguez, contudo, transvertia em ironia sua simpatia – Mas, por favor, diga com quem me pareço.
- Você... - A jovem não sabia como responder, para ela seu amigo não lembrava ninguém, aquela frase fora pronunciada por mero impulso, era apenas uma imprudente tentativa de romper o desagradável silêncio.
- Diga – ansioso, aguardava a resposta.
- Uh... Barney... você não deve conhecê-lo.
- Barney?
- É um personagem de um seriado.
- Qual seriado?
- “How I Met Your Mother”.
- Conheço – Gabriel ficou surpreso. Talvez a única semelhança entre os dois fosse a tonalidade dos cabelos. – Admito que não sou tão engraçado e nem possuo tantas habilidades na árdua atividade da conquista; também não uso terno - Tomou outro trago do whisky, antes de continuar – Curioso... nas últimas duas semanas fui obrigado a assistir alguns episódios deste programa.
- Obrigado?
-É uma longa história. Meu melhor amigo, um imbecil, por motivos bem idiotas – obsessão e um mal-entendido – me obrigou a assistir com ele.
- Como assim? Agora fiquei curiosa.
- Esquece, não vale a pena; esta estória não renderia sequer duas linhas, caso algum prosador com talento ousasse transcrevê-la. Mas, admito, adorei perder meu tempo vendo o seriado. Alguns episódios são “legendary”. - Pestanejando, acrescentou – “Barney is awesome”!
- Também gosto bastante do programa.
- Sabia que eles plagiaram meu poeta americano favorito?
- Não – disse a moça, novamente embaraçada.
- Na verdade poetisa – falou atropelando sua interlocutora, nesta altura os efeitos do álcool já eram notórios – a incomparável Emily Dickinson. Tem um episódio que o Barney diz a Robin, aquela personagem bonitona e sem graça, um verso da poetisa: “If I can help one Robin unto his nest again, I shall not live in vain”. Foi uma cópia descarada. - Gabriel, já exaltado, começou a recitar:

If I can stop one Heart from breaking 
I shall not live in vain

If I can ease one Life the Aching
Or cool one Pain 
Or help one fainting Robin
Unto his Nest again
I shall not live in vain.*

- Ah... esqueci de falar das minhas habilidades cognitivas. Tenho memória fotográfica, decoro com imensa facilidade tudo que leio, principalmente poemas – continuou Gabriel em ritmo alucinado. - Aliás, só estou machucado porque não compreenderam meus gestos poéticos. Hoje em dia ninguém consegue apreciar boa poesia; quando não compreendem a beleza reagem com agressividade, brutalidade, torpeza. Estamos perdidos, o terceiro mundo já explodiu e quem estava de sapato evaporou junto, não sobrou ninguém, não poderia sobrar. - Tomou fôlego e, percebendo que sua dose chegara ao fim, interrompeu bruscamente o raciocínio. - Ei... você se parece com a Robin.

- Nossa, acho melhor parar de beber. - A moça, arrependida de ter puxado assunto com aquele excêntrico rapaz, pensava avidamente em alguma desculpa pra poder ir embora. Enquanto raciocinava algo, sua amiga, a bandolinista, se despedia da plateia, anunciando a última canção. Aliviada, resolveu esperar a colega de quarto; em breve poderia, sem mentir ou inventar soluções mirabolantes, voltar pra casa.

- Duas doses, por favor – gritou Gabriel ao garçom.

FG

PS: poema retirado do livro "Emily Dickison Uma Centena de Poemas" da editora da USP

Comentários

  1. Mt bom! Queria fazer um comentário digno da beleza de suas obras ... Mas no momento estou incapaz! Falta-me inspiração e habilidade com as palavras. Além de me faltar conhecimento literário. Mas acho que lendo seus textos, lembro-me que devo voltar a ler! Para mim é tão prazeroso ler seus textos! Parabéns!

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