- Nunca
estive melhor. – Sem
olhar para moça, Gabriel deleitou-se com um prolongado trago da
bebida.
- Seus olhos estão inchados, e
sua camisa está suja de sangue! - Exclamou
assustada, não compreendendo a indiferença do rapaz. – Tem
certeza que não precisa de ajuda?
- Agradeço sua amabilidade, mas, se não puder oferecer uma boa
conversa, é melhor me deixar sozinho. Gostaria de me concentrar na
sonoridade agradável do ambiente, esta música converteu em
bem-estar emocional minha dor física. – Transformando a arrogância
em gentileza, continuou – aliás, confesso, nunca pensei que um
bandolim e os dedos de uma instrumentista far-me-iam enxergar poesia
em ondas sonoras.
-... - Exitante, não sabia como continuar a conversa; as feridas
do rapaz, sua aparente embriaguez e principalmente o jeito empolado
em se expressar assustaram a jovem. No entanto, por alguma razão,
sentiu uma estranha atração por Gabriel; esqueceu as circunstâncias
e puxou uma cadeira na mesa do rapaz.
- Então, não me digas que és uma excelente palestrante? -
perguntou Gabriel, novamente sorrindo.
- A bandolinista é minha amiga, nós moramos juntas em um
apartamento aqui em cima – apontou para o teto. Suas mão eram
muito alvas, ligeiramente roliças, porém delicadas. Aquele gesto
chamou a atenção de Gabriel, seu amigo finalmente teve a
curiosidade de analisar o rosto da mulher. Seus cabelos eram escuros,
lisos; sua pele clara e os olhos, provavelmente negros, a
luminosidade dificultava uma definição precisa, eram pequenos e
rasgados; aquele curioso formato ocular davam à moça uma atmosfera
de mistério; algo nela era instigante. Rindo, continuou –
acredite, existem vantagens em morar em cima de um bar,
principalmente quando você trabalha nele.
- Você também trabalha aqui?
- Sou a dona – disse, mas no instante seguinte gargalhou. Vários
segundos se passaram sem que ninguém pronunciasse qualquer palavra;
o silêncio, agradável para seu amigo, tornou-se constrangedor para
a moça. Sincrônicos, voltaram a falar simultaneamente.
Ele: “Adoro esta música”
Ela: “Você me lembra alguém”
Sorriram.
- Sério? Você também tem um rosto familiar. Já ouviu falar em
Harriet Andersson?
- Não.
- Foi a primeira musa do Bergman. Protagonizou os clássicos
“Monika e o Desejo”, “Através de Um Espelho”, “Gritos e
Sussurros”. Vocês têm o mesmo semblante misterioso.
- Acredito que isto seja um elogio.
- Posso garantir que não é nenhuma injúria. – Seu amigo
voltou a sorrir, a embriaguez, contudo, transvertia em ironia sua
simpatia – Mas, por favor, diga com quem me pareço.
- Você... - A jovem não sabia como responder, para ela seu amigo
não lembrava ninguém, aquela frase fora pronunciada por mero
impulso, era apenas uma imprudente tentativa de romper o desagradável
silêncio.
- Diga – ansioso, aguardava a resposta.
- Uh... Barney... você não deve conhecê-lo.
- Barney?
- É um personagem de um seriado.
- Qual seriado?
- “How I Met Your Mother”.
- Conheço – Gabriel ficou surpreso. Talvez a única semelhança
entre os dois fosse a tonalidade dos cabelos. – Admito que não sou
tão engraçado e nem possuo tantas habilidades na árdua atividade
da conquista; também não uso terno - Tomou outro trago do whisky,
antes de continuar – Curioso... nas últimas duas semanas fui
obrigado a assistir alguns episódios deste programa.
- Obrigado?
-É uma longa história. Meu melhor amigo, um imbecil, por motivos
bem idiotas – obsessão e um mal-entendido – me obrigou a
assistir com ele.
- Como assim? Agora fiquei curiosa.
- Esquece, não vale a pena; esta estória não renderia sequer
duas linhas, caso algum prosador com talento ousasse transcrevê-la.
Mas, admito, adorei perder meu tempo vendo o seriado. Alguns
episódios são “legendary”. - Pestanejando, acrescentou –
“Barney is awesome”!
- Também gosto bastante do programa.
- Sabia que eles plagiaram meu poeta americano favorito?
- Não – disse a moça, novamente embaraçada.
- Na verdade poetisa – falou atropelando sua interlocutora,
nesta altura os efeitos do álcool já eram notórios – a
incomparável Emily Dickinson. Tem um episódio que o Barney diz a
Robin, aquela personagem bonitona e sem graça, um verso da poetisa:
“If I can help one Robin unto his nest again, I shall not live in
vain”. Foi uma cópia descarada. - Gabriel, já exaltado, começou
a recitar:
If I can stop one Heart from breaking
I shall not live in vain
If I can ease one Life the Aching
Or cool one Pain
Or help one fainting Robin
Unto his Nest again
I shall not live in vain.*
- Ah... esqueci de falar das minhas habilidades cognitivas. Tenho
memória fotográfica, decoro com imensa facilidade tudo que leio,
principalmente poemas – continuou Gabriel em ritmo alucinado. -
Aliás, só estou machucado porque não compreenderam meus gestos
poéticos. Hoje em dia ninguém consegue apreciar boa poesia; quando
não compreendem a beleza reagem com agressividade, brutalidade,
torpeza. Estamos perdidos, o terceiro mundo já explodiu e quem
estava de sapato evaporou junto, não sobrou ninguém, não poderia
sobrar. - Tomou fôlego e, percebendo que sua dose chegara ao fim,
interrompeu bruscamente o raciocínio. - Ei... você se parece com a
Robin.
- Nossa, acho melhor parar de beber. - A moça, arrependida de ter
puxado assunto com aquele excêntrico rapaz, pensava avidamente em
alguma desculpa pra poder ir embora. Enquanto raciocinava algo, sua
amiga, a bandolinista, se despedia da plateia, anunciando a última
canção. Aliviada, resolveu esperar a colega de quarto; em breve
poderia, sem mentir ou inventar soluções mirabolantes, voltar pra
casa.
- Duas doses, por favor – gritou Gabriel ao garçom.
FG
PS: poema retirado do livro "Emily Dickison Uma Centena de Poemas" da editora da USP
Mt bom! Queria fazer um comentário digno da beleza de suas obras ... Mas no momento estou incapaz! Falta-me inspiração e habilidade com as palavras. Além de me faltar conhecimento literário. Mas acho que lendo seus textos, lembro-me que devo voltar a ler! Para mim é tão prazeroso ler seus textos! Parabéns!
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