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Don't Worry, I Killed the Facebook (part.VI)




A chocarrice verbal converteu, em chamas, o suave sorriso de Malu. Sua pele, pálida e fria, atingiu contornos cálidos de vermelhidão; seu rosto, exsudando em fúria, em poucos segundos se adaptava ao ódio; e seu olhos, vermelho sangue, agonizavam ignóbeis pensamentos. Nunca se sentira tão humilhada, mal tratada, escorchada, vilipendiada; Gabriel, sem saber, estava despertando um caráter assassino. A sua inocente brincadeira seria, em poucos instantes, desagradável para ele, no entanto outras consequências, mais graves, se desencadeariam do parvo recado. Mas, novamente repito, não devo me antecipar; cada fato deve esperar a hora certa para receber homenagens.

Mesmo sem estar presente, você deve imaginar os desdobramentos vindouros. Certamente Gabriel, no dia seguinte, te contou suas peripécias; mas ele não foi totalmente verdadeiro. Não estou chamando seu amigo de mentiroso, mas convenhamos, ninguém assumi espontaneamente certas covardias. Bater em uma mulher foi abjeto, principalmente se tratando de um rapaz tão ordeiro. Não acredita em mim? Quais os motivos eu tenho para omitir a verdade? Tudo bem, esta é apenas a primeira versão; mas espere só quando ouvir as outras. Se prepare, pois você terá medo de minhas palavras. Acalme-se Miguel, não tenho muito tempo, preciso terminar meu relato. Se recomponha, a piada está apenas começando.

Vou abrir a janela, quem sabe assim se sentirá melhor.

Bem, continuemos sem floreios. Descrevi, minutos atrás, a justa exasperação de ânimo da senhorita Malu. Quando viu o falso poema, a garçonete jogou, gritando horrores, meio litro de vodka no rosto de Gabriel. Naquele instante, seu amigo sorriu com perversidade, virou o copo com o restante de whisky, cerrou os punhos e socou o balcão. Aquela cena burlesca chamou a atenção de outros fregueses, curiosos pressentindo tumulto. Ao observar a plateia, Gabriel, aos berros, recitou:

Que teu punho se feche contra a mesa,
que teu rugido seja real, leonino;
que tuas palavras sejam justas e seguras,
viris, sem vaidade nem jactância.
O homem que se enfurece é belo,
a indolência é que enfeia;
os lamentos e as lágrimas pertencem às mulheres.

Neste mundo de mercadores servis,
que se inclinam e sorriem para ganhar a moeda,
deves semear suas palavras de pregos
e falar francamente segundo a verdade.
Neste mundo tão rústico e parvo,
há sempre lugar para as grandes cóleras
e a temperança se torna covardia.

O homem ora se assemelha ao vento norte,
que sopra e aviva um rude combate,
ora ao vento do oeste que caminha,
doce e terno entre os homens.
Assim outros seguem os teus passos,
e mulheres e crianças se abrandam
em sua primavera frágil,
lá, onde ele vai.*

Enquanto Gabriel declamava, a raiva e o desprezo brilhavam na face de Malu, mas ninguém, nem mesmo ela, ousou interromper o falso poeta. Quando ele terminou, a moça esticou o braço direito em sua direção, mostrando, com desdém, o dedo médio. Tal atitude, aparentemente infantil e inofensiva, fez com que Gabriel saltasse o balcão. Violentamente golpeou com as mãos espalmadas a garçonete. Esta caiu ao chão chorando muito alto. Alguns, que observavam a cena, ameaçaram chamar a polícia, no entanto, o agressor, antes de racionalizar a pérfida atitude, foi imobilizado por dois volumosos seguranças que se encarregaram do castigo. Eles levaram seu amigo para o depósito; e, após alguns tapas, socos e insultos, liberaram o rapaz.

Não acredito que você não percebeu que os hematomas de Gabriel não eram do acidente. Qualquer um que observasse seu amigo notaria as evidências do espancamento. Aquele rosto deformado e roxo só não ficou pior que o seu carro. Aliás, sejamos sinceros, o automóvel foi o único machucado com a batida.

De novo voltei a me antecipar. Ainda estamos longe da narrativa automobilística, antes dela teremos muitos fatos verossímeis e inverossímeis a narrar. Já confessei que adoro brincar com as palavras e instigar a imaginação. Estas duas atividades sempre me conduziram ao triunfo. Sou um provocador nato, sugiro, deixo no ar, mas cabe a você tentar desvendar minhas pretensões. Lembre-se, a correta interpretação de minha narrativa, será de primorosa utilidade para aceitar ou não minha vindoura proposta. Portanto, fique atento às nuanças, não se distraia, preste muita atenção. Sua resposta, seu consentimento, seu futuro dependem disso.


Feita a advertência, devo retomar meu relato. Disse que Gabriel foi severamente punido por sua misógina atitude impensada. Machucado, não voltou pra casa; queria aliviar a culpa com mais whisky. Caminhou quase um quilômetro, até um pub no sugestivo bairro São Mateus. Solitário, pediu uma dose.   

FG

PS: * trata-se do poema "Sobre uma Cólera Justa" do sueco Erik Axel Karlfeldt, e foi retirado do livro "Poesias" da Editora Opera Mundi. A tradução é de Ivo Barroso.

Depois continuo, mas o depois pode ser nunca.

Comentários

  1. Ola Felipe,como vao as coisas? Que surpresa encontrar uma narrativa de sua autoria por aqui.Talvez sua vocaçao maior seja mesmo com as letras.Visito ao blog sempre que busco um bom texto,ou uma boa inspir açao literaria,mas nos ultimos tempos nenhuma dissertaçao byroniana poderia me compreender.Pertencemos afinal a uma geraçao perdida,jovem escritor! haha torço para que voce encontre espaço para expor suas ideias também no campo literario...(e que voce encontre a sua musa dos olhos verdes haahaha)Espero que voce enfim se encontre (e eu também!) Estimo sucesso tanto quanto possivel ,da sua leitora mais assidua....até breve!

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    Respostas
    1. Olá, cara leitora. É um prazer encontrar seus comentários por aqui. Obrigado pelo incentivo, é muita gentileza guardar um pedacinho do seu tempo lendo meu blog. Continue comentando, aguardarei ansioso suas opiniões. Um abraço e até a próxima.

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