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Don't Worry, I Killed the Facebook (part.V)




Devo confessar, caro Miguel; de toda a minha vasta narrativa esta é a parte que mais gosto. Whisky e poemas: não há melhor nem mais etérea combinação. Aquele dia Gabriel ficou sozinho no bar; foi responsável por momentos de inopinados desazos emocionais. Como eu me diverti quando, mais tarde, soube do ocorrido. Até admito que hoje preferiria estar ao lado não de você, mas de seu interessantíssimo amigo. Aliás, se não fosse por Sofia, sua história não teria a pujança necessária para me trazer a sua casa. Venho até aqui por dois motivos, o primeiro e mais importante você saberá em breve, o segundo envolve sua desconhecida amada. Mesmo eu, vasto em conhecimento, onisciente e insuperável, não consigo compreender sua obsessão por Sofia. Vocês trocaram algumas frases e nada mais. Diga-me Miguel, foram apenas os olhos verdes? Você não pode ser tão vulgar para se deixar seduzir por um mero olhar? Existe alguma metafísica inexplicável que transcendeu sua alma? Qual absurdo poderia envolver este sentimento? Cale-se Miguel, se contenha; guarde suas respostas para depois. Se lhe faço perguntas é porque preciso amoldar seus pensamentos; por enquanto quero apenas ser ouvido. Não se exaspere e tire o sorriso irônico do rosto, no fundo você sabe que tudo é uma questão de linguagem. Escolhi você, pois conheço o seu apreço estético. Sei que, assim como eu, viverias, entre a forma e o sentido, abraçado à primeira opção.  

Nossa! Perdi o fio da meada; mas devo voltar ao que interessa.

Comentei que Gabriel ao chegar à boate ficou sozinho no bar. Ele, em frente ao balcão, repousou seus quadris em um desconfortável banco. A primeira dose foi solicitada com tímida elegância. Servido, degustou o primeiro trago; ainda não reparara no pequeno e sensual detalhe que atordoaria seus sentidos. A garçonete, moça com fartos seios e belas nádegas, carregava ao colo um crucifixo vermelho. Tal adereço, quando finalmente notado, fez os olhos do rapaz dardejarem em excitação. Não se conteve e perguntou o nome da donzela. “Me chamo Madalena, mas pode me chamar de Malu”. Ao ouvir a resposta, Gabriel ficou pálido; em seu inconsciente aquela, prostrada em sua frente, era a mulher de Jesus. Sem conseguir frear seu ímpeto galanteador, o jovem iniciou a conquista:

- Deve ser cansativo ficar horas servindo um monte de pessoas indelicadas e arrogantes.
- Eu gosto do meu trabalho, principalmente quando não sou incomodada por fregueses.
- Não sou um freguês comum, sou um poeta.
- Nossa, quanta honra – disse a moça com uma expressão debochada – o jovem Drummond poderia me recitar um poema?
- Cobro caro pelo meu trabalho, mas posso te garantir que tenho talento. Se me der seu telefone, escrevo um poema neste pedaço de papel – apontou para o guardanapo e sorrio jovialmente antes de continuar – me dê três palavras e eu tirarei lágrimas de seus olhos.
- Primeiro você escreve o poema; se for bom ou se me arrancar lágrimas, eu dou meu telefone – a moça parecia entretida com a conversa, a ousadia lúdica do rapaz lhe agradava.
- Vejo que a senhorita desconfia do meu talento. Não me importo, me dê três palavras e terá um poema.
- Vejamos. Uh... sangue... fogo e.... frio.
- Madalena, Madalena, lestes meus pensamentos? - perguntou Gabriel com um garboso sorriso no rosto.

Sem desfazer o semblante de felicidade o poeta escreveu. Aguardou alguns instantes, esperava a garçonete atender outros fregueses, e sugeriu ler o poema ao invés de entregá-lo. A moça exitou, mas acabou concordando. Gabriel, então, aproximou-se dos ouvidos de sua interlocutora e docilmente tartamudeou:

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.*


Mesclando desconfiança, assombro e alegria; Malu perguntou se aquele poema era mesmo de Gabriel, ou se ele tinha surrupiado de algum poeta famoso. O rapaz com olhos cáusticos e o coração em fúria, gargalhava e não escondia o contentamento de ter provocado tamanha confusão. Não desfez o mal-entendido, assumindo a autoria do poema.

- Pare de rir, não acredito que o poema seja seu – gritou a moça, incomodada.
- Acredite, o poema é meu, só estou rindo porque na verdade ele não foi escrito pra você; mas, por favor, não suspeite da minha autenticidade – disse Gabriel tentando manter-se sério.
- Então não vale, não vou dar meu telefone.
- Ah, você disse pra eu escrever um poema, eu escrevi; este era o trato. Tudo bem, criei este poema a algum tempo atrás, mas isso não vem ao caso. Se você gostou, deve dar seu telefone.
- Não gostei – a moça voltou a esboçar um semblante alegre.
- Não minta!
- Tudo bem... é lindo – Malu mordiscava com leveza o canto dos lábios, segurando, com a ponta dos dedos, o crucifixo preso ao pescoço – se foi você mesmo que escreveu devo chamá-lo de poeta... mas, estranho, eu ainda não sei seu nome.
- Assim como o nobre escritor de Cervantes, me chamo Miguel – brincou o rapaz já jocosamente comovido com a ignorância da moça.
- Bonito nome, poeta Miguel.
- Obrigado Madalena – agradeceu o jovem, olhando, sem nenhum pudor, para os seios e eventualmente para o crucifixo da cortesã católica. Pediu outra dose.

Malu serviu Gabriel e junto ao whisky deixou um bilhetinho com seu telefone. Sorridente o poeta agradeceu e perguntou se a moça não iria guardar seu poema. Ela, bastante descontraída, pegou o guardanapo e, antes de depositá-lo na bolsa, leu seu conteúdo. Com letras garrafais, eis o poema:

NOBRE SENHORA, QUERO COMER SUA BUNDA.
COM AMOR, SEXO E SACANAGEM.

J.   

FG

PS:* o poema é de Pablo Neruda e integra a coletânea "Vinte Poemas de Amor", pode ser encontrado no link abaixo:

Amanhã continuo, ou talvez nunca.  

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