Devo confessar,
caro Miguel; de toda a minha vasta narrativa esta é a parte que mais
gosto. Whisky e poemas: não há melhor nem mais etérea combinação.
Aquele dia Gabriel ficou sozinho no bar; foi responsável por
momentos de inopinados desazos emocionais. Como eu me diverti quando,
mais tarde, soube do ocorrido. Até admito que hoje preferiria estar
ao lado não de você, mas de seu interessantíssimo amigo. Aliás,
se não fosse por Sofia, sua história não teria a pujança
necessária para me trazer a sua casa. Venho até aqui por dois
motivos, o primeiro e mais importante você saberá em breve, o
segundo envolve sua desconhecida amada. Mesmo eu, vasto em
conhecimento, onisciente e insuperável, não consigo compreender sua
obsessão por Sofia. Vocês trocaram algumas frases e nada mais.
Diga-me Miguel, foram apenas os olhos verdes? Você não pode ser tão
vulgar para se deixar seduzir por um mero olhar? Existe alguma
metafísica inexplicável que transcendeu sua alma? Qual absurdo
poderia envolver este sentimento? Cale-se Miguel, se contenha; guarde
suas respostas para depois. Se lhe faço perguntas é porque preciso
amoldar seus pensamentos; por enquanto quero apenas ser ouvido. Não
se exaspere e tire o sorriso irônico do rosto, no fundo você sabe
que tudo é uma questão de linguagem. Escolhi você, pois conheço o
seu apreço estético. Sei que, assim como eu, viverias, entre a
forma e o sentido, abraçado à primeira opção.
Nossa! Perdi o fio
da meada; mas devo voltar ao que interessa.
Comentei que
Gabriel ao chegar à boate ficou sozinho no bar. Ele, em frente ao
balcão, repousou seus quadris em um desconfortável banco. A
primeira dose foi solicitada com tímida elegância. Servido,
degustou o primeiro trago; ainda não reparara no pequeno e sensual
detalhe que atordoaria seus sentidos. A garçonete, moça com fartos
seios e belas nádegas, carregava ao colo um crucifixo vermelho. Tal
adereço, quando finalmente notado, fez os olhos do rapaz dardejarem
em excitação. Não se conteve e perguntou o nome da donzela. “Me
chamo Madalena, mas pode me chamar de Malu”. Ao ouvir a resposta,
Gabriel ficou pálido; em seu inconsciente aquela, prostrada em sua
frente, era a mulher de Jesus. Sem conseguir frear seu ímpeto
galanteador, o jovem iniciou a conquista:
- Deve ser
cansativo ficar horas servindo um monte de pessoas indelicadas e
arrogantes.
- Eu gosto do meu
trabalho, principalmente quando não sou incomodada por fregueses.
- Não sou um
freguês comum, sou um poeta.
- Nossa, quanta
honra – disse a moça com uma expressão debochada – o jovem
Drummond poderia me recitar um poema?
- Cobro caro pelo
meu trabalho, mas posso te garantir que tenho talento. Se me der seu
telefone, escrevo um poema neste pedaço de papel – apontou para o
guardanapo e sorrio jovialmente antes de continuar – me dê três
palavras e eu tirarei lágrimas de seus olhos.
- Primeiro você
escreve o poema; se for bom ou se me arrancar lágrimas, eu dou meu
telefone – a moça parecia entretida com a conversa, a ousadia
lúdica do rapaz lhe agradava.
- Vejo que a
senhorita desconfia do meu talento. Não me importo, me dê três
palavras e terá um poema.
- Vejamos. Uh...
sangue... fogo e.... frio.
- Madalena,
Madalena, lestes meus pensamentos? - perguntou Gabriel com um garboso
sorriso no rosto.
Sem desfazer o
semblante de felicidade o poeta escreveu. Aguardou alguns instantes,
esperava a garçonete atender outros fregueses, e sugeriu ler o poema
ao invés de entregá-lo. A moça exitou, mas acabou concordando.
Gabriel, então, aproximou-se dos ouvidos de sua interlocutora e
docilmente tartamudeou:
Não te quero senão porque te quero,
e
de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não
te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só
porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a
medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um
cego.
Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel
meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta
história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te
quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.*
Mesclando desconfiança, assombro e
alegria; Malu perguntou se aquele poema era mesmo de Gabriel, ou se
ele tinha surrupiado de algum poeta famoso. O rapaz com olhos
cáusticos e o coração em fúria, gargalhava e não escondia o
contentamento de ter provocado tamanha confusão. Não desfez o
mal-entendido, assumindo a autoria do poema.
- Pare de rir, não acredito que o
poema seja seu – gritou a moça, incomodada.
- Acredite, o poema é meu, só estou
rindo porque na verdade ele não foi escrito pra você; mas, por
favor, não suspeite da minha autenticidade – disse Gabriel
tentando manter-se sério.
- Então não vale, não vou dar meu
telefone.
- Ah, você disse pra eu escrever um
poema, eu escrevi; este era o trato. Tudo bem, criei este poema a
algum tempo atrás, mas isso não vem ao caso. Se você gostou, deve
dar seu telefone.
- Não gostei – a moça voltou a
esboçar um semblante alegre.
- Não minta!
- Tudo bem... é lindo – Malu
mordiscava com leveza o canto dos lábios, segurando, com a ponta dos
dedos, o crucifixo preso ao pescoço – se foi você mesmo que
escreveu devo chamá-lo de poeta... mas, estranho, eu ainda não sei
seu nome.
- Assim como o nobre escritor de
Cervantes, me chamo Miguel – brincou o rapaz já jocosamente
comovido com a ignorância da moça.
- Bonito nome, poeta Miguel.
- Obrigado Madalena – agradeceu o
jovem, olhando, sem nenhum pudor, para os seios e eventualmente para
o crucifixo da cortesã católica. Pediu outra dose.
Malu serviu Gabriel e junto ao whisky
deixou um bilhetinho com seu telefone. Sorridente o poeta agradeceu e
perguntou se a moça não iria guardar seu poema. Ela, bastante
descontraída, pegou o guardanapo e, antes de depositá-lo na bolsa,
leu seu conteúdo. Com letras garrafais, eis o poema:
NOBRE SENHORA, QUERO COMER SUA BUNDA.
COM AMOR, SEXO E SACANAGEM.
J.
FG
PS:* o poema é de Pablo Neruda e integra a coletânea "Vinte Poemas de Amor", pode ser encontrado no link abaixo:
Amanhã continuo, ou talvez nunca.
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