Antes de
prosseguirmos é necessário um parêntese. Você (deixemos a
impessoalidade de lado, afinal este discurso é apenas uma conversa)
não se recorda dos eventos que irei narrar. Quando eles aconteceram
estavas entretido com a garota russa, falando indiretamente sobre
orgulho e paixão. Acontece que seu fiel e inseparável amigo Gabriel
decidiu ficar sozinho no bar; foram 7 doses de whisky, 7 poemas e 7
cantadas que seduziriam qualquer personagem, moralista ou não, do
universo Boccacciano.
A predileção do
seu amigo pela bebida escocesa perfaz longa data. Desde menino
Gabriel detestava a sobriedade, seu primeiro porre aconteceu durante
uma extensa aula de ensino religioso. Naquele tempo era comum
professoras inexpressivas lerem copiosamente as escrituras sagradas.
Sem capacidade oratória, charme vocal ou sutileza argumentativa
estas escravas da ignorância traziam de baixo dos braços volumosos
exemplares do antigo testamento. Fingindo eloquência latiam:
“No princípio
criou Deus o céu e a terra. A terra porém estava vazia e nua; e as
trevas cobriam a face do abismo; e o espírito de Deus era levado por
cima das águas. Disse Deus: Faça-se a luz. E viu Deus que a luz era
boa; e dividiu a luz das trevas. E chamou à luz dia e às trevas
noite; e da tarde e da manhã se fez o primeiro dia. Disse também
Deus: faça-se o firmamento no meio das águas, e separe umas águas
das outras águas. E fez Deus o firmamento, e dividiu as águas que
estavam por baixo do firmamento das que estavam por cima do
firmamento...”
O início da
Gênesis sempre impressionou Gabriel, não pelo teor metafórico, mas
por uma ligeira incoerência. A bíblia dizia que no princípio não
havia nada, porém, antes de Deus criar o céu e a terra, as águas
já existiam, não à toa o firmamento foi construído sobre as
águas.
Eram curiosas as
discussões que o menino travava com a professora.
- Se Deus não
criou as águas, como elas surgiram?
- Deus criou tudo,
ele é todo poderoso.
- Mas na bíblia...
- Você é um
paspalho. Primeiro Deus criou a terra, e na terra havia água. A água
fazia parte da terra, ela era a própria terra. Por cima das águas,
criou o céu e viu que sua obra era boa.
- Não consigo
entender. Se Deus é tão poderoso por que não há forças em suas
palavras? Por quê tudo é nebuloso, estranho, mal escrito?
Gabriel, após o incidente,
foi suspenso. Não se admitiam proeminentes blasfêmias em seu colégio.
Depois daquele dia, passou a
apreciar às avessas todos os falsos ensinamentos do suposto livro
sagrado. Os dogmas judaico-cristãos, antes de serem assimilados pelo
rapaz, passavam pelo crivo jocoso de seus pensamentos. Foi esta
peculiar personalidade a culpada pelos pecados de sua estranha
ebriedade. Junto com a bíblia, seu irmão e Sam Peckinpah também
contribuíram na sua distopia alcoólica. Certa noite, assistindo à
“Straw Dogs” ao lado de Lúcio, parceiro de sangue, ficara
impressionado com a falta de unidade moral negligentemente dispostas
sobre os personagem do filme. Perguntou ao irmão: “Por quê eles
são maus?”. “Não são maus, são escoceses”. “Mas eles
fazem horrores”. “Não, eles não fazem nada, a culpa é do
whisky; o whisky livra qualquer um dos maus pensamentos e das más
ações”.
Foi a incoerência
da escritura sagrada que permitiu a Gabriel assimilar honestamente as
palavras do irmão. A brecha encontrada na bíblia era o ponto
vulnerável de Deus. Não haviam dúvidas, Deus tinha fraquezas
literárias. No entanto, todos os adultos, religiosos ou não,
consideravam Deus, ou no mínimo a ideia de Deus, algo isento de
defeitos, imperfeições. Gabriel não compreendia, ele possuía
certezas bastante sedimentadas para não entender o discurso alheio.
A sensação que crescia em seu âmago assemelhava-se ao atordoamento
diante dos fictícios escoceses. Quando assistiu ao filme, livrou-se
do mal-estar com um raciocínio bastante simples. Homens que fazem
maldade podem não ser maus; nascer na Escócia e consumir whisky são
escusantes de culpabilidade.
Gabriel sentia-se
enxovalhado por não conseguir, como os outros, enxergar em Deus a
perfeição; ele deveria encontrar um método para eximir-se do
pecado, algum elemento eficaz na tarefa de torná-lo inimputável. O
álcool era o símbolo escocês de expiação, ao consumi-lo homens e
mulheres não poderiam ser censurados por nenhum código moral. A
correlação lógica feita pelo ingênuo menino legou o álcool, e
mais precisamente o whisky, à sua vida.
Mas voltemos ao principal. Não me esqueci
do proposto, irei narrar o primeiro porre do rapaz. Devo lembrar a todos que esta
digressão foi exposta para nós saborearmos o incrível relato.
FG
PS: Volto mais tarde ao blog, para iniciar o relato sugerido. Até a próxima ou até nunca mais.
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