Não quero acelerar
minha narrativa, mesmo tendo pressa, preciso ser muito cuidadoso com
a exposição de suas ideias. Por quê o espanto? Não me diga que
nunca soube o óbvio? Acredita mesmo no poder criativo de minhas
palavras? Tudo que digo é seu, todas as reações de meu rosto são
suas; a ironia, a comiseração, o desazo, tudo, absolutamente tudo
lhe pertence. Não acredito que nunca soube que minhas frases são
simples ressonâncias de seus pensamentos. Se não me julgas original
é porque não acredita no próprio talento. Mas fique tranquilo,
você não está louco, eu sou real, sempre existi e sempre aguardei
com parcimônia cognitiva o nosso encontro. Não quero confundi-lo,
muito menos assustá-lo. Quando digo que tudo lhe pertence estou
sendo literal; nada existe fora de seus pensamentos; nenhuma emoção,
dor, alegria, angústia, nenhum medo, trauma, júbilo fogem ao seu
alcance, todos estes sentimentos são internos e correspondem às
suas vontades. Você se censura, você se impõe limites; suas
fraquezas são bloqueios de autopreservação.
Caro Miguel, seja
sincero, você sempre desejou o desprezo; fez tudo para abraçá-lo.
Quanta covardia e quanta coragem empregastes para conviver ao lado do
silêncio. Ah... amo-te muito por isso. Sua abnegação egoísta me
comove, consterna meus sentidos. Todos os seus gestos, quando falsos,
são belos. Nasceste para ser artista, não à toa procuraste
conquistar, como um caçador que liberta suas presas capturadas,
amores indesejados. Se ousasse refletir entenderia melhor suas
próprias palavras, saberia que o silêncio, sinônimo de tolerância,
incuti duas interpretações. Por um lado reflete o mais etéreo
sentimento humano, a compaixão; há nestes casos um discurso
indulgente, pré-programado a perdoar o estouvado, indelicado ou
intransigente comportamento alheio. Por outro significa apenas
indiferença, menosprezo; não dizer seria negar a existência do
interlocutor; nesta modalidade nunca haverá raiva e muito menos
perdão, porque a ausência de agente impede a assimilação da
linguagem, e sem esta não há discurso.
Tente entender
Miguel, você é o único culpado. Sua covardia afastou Sofia, sua
coragem também. Por quê não olhou nos olhos dela para dizer o que
precisava dizer? Por quê, mesmo reconhecendo sua total
incapacidade em esperar, preferiu o silêncio? Sua coragem em assumir a
covardia teve a força para desconstruir belas frases. Sem saber você
extinguiu o discurso, fez do silêncio indiferença. Miguel,
desafortunado Miguel, a vida quase lhe ofereceu diversas
oportunidades para reencontrar Sofia; foram detalhes, minúcias,
minutos, talvez segundos os grandes responsáveis pela ficção. No
entanto, quando só há silêncio a ficção torna-se a única
realidade; pois para preencher os espaços vazios é necessário
criar, através da imaginação, novos discursos. Ouse Miguel, vá em
frente, continue, é seu dever moral, poético, sepultar quem nunca
existiu.
Não chore, suas
lágrimas irão estragar o papel. Vamos voltar ao que interessa,
tenho muito a falar e pouco tempo a perder com consolações
enfadonhas. Recomponha-se Miguel, limpe seu rosto, recupere o ânimo,
volte a sorrir, acalme-se. Tudo bem vou colocar música para reavivar
seu espírito criativo, pois, no fundo, nosso principal órgão
sensorial são os ouvidos. Vejamos... bossa nova... João Gilberto
irá acalmá-lo, ninguém consegue ficar alheio ao solfejar melódico
deste grande artista. Aliás, sempre soube, no peito dos
desafinados também bate um coração.
Acho que agora já
posso continuar. Foi até bom interromper nossa conversa com este
doce deleite musical, porém, acredite, não foi por acaso que pausei meu discurso com reflexões insípidas e uma música
igualmente fastidiosa. Não me olhe com desdém, a incoerência de minhas palavras é reflexo da sua paradoxal alma. Não preciso lembrá-lo
que a beleza exige futilidade; desconstruir sua falsa essência,
desmistificando qualquer ranço de seriedade, é tarefa básica na
apreciação estética. A obra ou o artista, quando circunspecto em
demasia, perde seu valor, sua graça. Por isso você não deve se
levar a sério, em verdade, mesmo se alguém ousar dizer o contrário,
o seu comportamento sempre será anti-musical.
Sim, sempre haverá
falta de ritmo, linguagem sincopada, e frustrações estilísticas em
sua prosa. Neste ponto, você e Gabriel se assemelham. Ambos possuem
a necessidade existencial de conviver ao lado do abismo, do fracasso;
ambos são desafinados e sofrem calados; ambos racionalizam com o
coração. Seu amigo errou, não deveria ter se exasperado por tão
pouco em Diabolik, foi ao pub pois procurava redimir seus erros com
mais álcool. Não vou mentir, ao sugerir bossa nova, me
antecipei aos fatos. Quando seu amigo depositou suas frustrações em
uma solitária cadeira no supramencionado pub, uma excepcional
bandolinista tocava a doce canção de Tom Jobim. Machucado e
ligeiramente embriagado, Gabriel, naquele momento, em voz quase
inaudível, cantarolava seguindo os acordes do bandolim.
Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também tem um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito
Bate calado, que no peito dos desafinados
Também bate um coração.*
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também tem um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito
Bate calado, que no peito dos desafinados
Também bate um coração.*
Quando a música terminou, o
ébrio sorriu em lágrimas; sua emotividade e seu estado deprimente
chamaram a atenção de uma bela mulher; ela se aproximou
perguntando: “sente-se bem?”. Antes de responder, Gabriel pediu
outra dose.
FG
PS:*A música foi retirada do site vagalume: acesse aqui
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