Por favor Miguel,
não me interrompa, sempre fui um amante da performance, e se conto
tais fatos com tamanha paixão e porque me sinto diante de uma imensa
plateia. Talvez você seja meu único ouvinte, mas gosto de imaginar
a ilusão de ser um ídolo reverenciado e observado. Minto, digo apenas bobagens,
esqueça minhas palavras; não há possibilidade de confranger meu espírito demonstrando falsas fraquezas; lembre-se: eu sou o novo Deus do
terceiro milênio. Eu sei o que as pessoas pensam. Eu sei o que as
pessoas gostam. Eu sei o que pessoas fazem. Eu sei o que as pessoas
sentem. Eu sei tudo e posso, caso deseje, lhe fornecer este
poder. Não quero exortá-lo, tampouco pretendo corrompê-lo, mas pense nas vantagens, em seus amores.
Acalme-se, o
achincalhe não me afeta. Volte ao seu lugar, preciso continuar minha
narrativa.
Falávamos sobre a
infância de Gabriel. Havia prometido revelar o primeiro porre do seu
amigo. Pois bem, tudo aconteceu na escola durante a classe de ensino
religioso. Na ocasião, a professora fanática lia o evangelho de São
Mateus:
“Mas desde a hora
sexta até a hora nona se diluíram trevas sobre toda a terra. E
perto da hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Eli, Eli,
lamma sabachthani? Isto é: Deus meu, Deus meu, por que me
abandonastes?”
Para Gabriel,
sincero amante da estória de Cristo, esta passagem representava um
grande momento de fraqueza. Para ele Jesus era humano. Suas falhas de
caráter revelavam uma única e incerta verdade: Deus, uma entidade
repleta de imperfeições e desvios, talvez fosse o próprio homem. As
discussões ou quizílias linguísticas entre ele e sua professora
foram severas; na ocasião o jovem rapaz foi jogado à lama.
- Professora, tenho
uma dúvida?
- Diga Gabriel, mas
tenha cuidado Deus está observando.
- Por que Jesus
fraquejou nos momentos finais de sua passagem pela terra?
- Deus tenha
misericórdia, esta infeliz criança não sabe o que diz.
- Sinceramente não
compreendo. Admiro a história de Jesus; os evangelhos,
principalmente o de São Mateus, são tão belos; mas a tradição
cristã parece deturpar o óbvio. Não seria muito mais interessante
se, como nós, Jesus também pecasse?
- Saia daqui
demônio encarnado, não volte a pisar neste solo sagrado. Vejam
criança, o anticristo enfim veio até nós – bravejava a insana
mulher ao delírio.
Naquele instante
ela ameaçou agredir Gabriel, mas antes que conseguisse, caiu no chão
e começou a regurgitar palavras estranhas, uma espécie de aramaico
misturado com outras línguas proibidas. Minutos depois recebeu
atendimento médico. Mais tarde veio a notícia: a professora
desenvolvera um tumor maligno no lóbulo frontal do cérebro; seu
progressivo fanatismo era resultado natural da evolução da doença;
morreu cinco semanas após o incidente.
Por sua vez,
Gabriel, após o ocorrido, decidiu beber. Sentia-se culpado pela
doença da professora e precisava de algo para aliviar a pungente
culpa. Voltou para casa, furtou o Cavalo Branco de seu pai e teve seu
primeiro porre diagnosticado. Nunca mais abandonou o álcool. Em
todos os momentos de tristezas, decepções ou alegrias, o rapaz
lavava as mãos com generosas doses de whisky. Assim como Pilatos dormia tranquilo, embora nem sempre acordasse em bom estado.
Com a morte da
professora, a vaga para lecionar ensino religioso no colégio cristão
ficou aberta. Mestre Zózimo a ocuparia. Este, brilhante em
conhecimento, compreensão e compaixão, virou um grande amigo de
Gabriel. Foi ele o responsável pelo amadurecimento existencial e
filosófico do rapaz. No entanto, não quero me antecipar com relatos
inúteis; voltemos à Diabolik, ainda precisamos revelar muito sobre
o sábado retrasado.
FG
PS: mais tarde continuo, ou talvez nunca.
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