Talvez
estejamos vivenciando dias históricos, de profundas mudanças.
Jovens mobilizados, juntos, confraternizando um desejo pacífico por
transformações políticas, éticas e sociais, representam a
construção de uma nova identidade; em poucos dias nossa geração
rompeu com a letargia cívica mostrando, finalmente, que é possível
incomodar, com legítimas demandas, as estruturas arcaicas que ainda
sedimentam e controlam o espaço público do nosso país. Mas quais
seriam estas demandas? O fim da corrupção, da falta de
transparência no manejo orçamentário, dos privilégios concedidos
a grupos poderosos, do preconceito, da má distribuição
dos recursos, da opressão social, da incompetência administrativa?
Talvez, o repúdio ao extremismo religioso, ao pensamento burguês,
ao nosso sistema político falido, à falta de estrutura, à péssima
qualidade da educação e da saúde, à elevada carga tributária?
Quem sabe estas demandas não sejam contra o inchaço do Estado,
fruto dos resquícios de ideais socialistas que ainda influenciam as
decisões do governo? Ou, ao contrário, elas podem representar a
indignação diante do ultra conservadorismo, institucionalizado em
um legislativo composto por compadres? Alguns ainda poderiam sugerir
a falência do sistema judiciário, dos veículos tradicionais de
comunicação, ou o retrocesso democrático, traduzidos em emendas
constitucionais ignóbeis e imorais. A questão ambiental, o direito
das mulheres, das outras minorias e tantas outras bandeiras também
poderiam ser levantadas. As demandas, algumas colidentes, são tão
múltiplas que, por conseguinte, é impossível olhar para o futuro e
visualizar um possível desdobramento dessa nova onda de protestos.
Qualquer previsão estaria fadada à hipérbole, seja ela ampliativa
ou diminutiva da força e das consequências deste ainda incipiente
movimento. Contudo, tentarei, em breves linhas, refletir sobre o
talvez histórico dia 17 de junho, levando em consideração as estranhas mudanças no discurso dos grandes canais de comunicação.
Nós,
jovens incutidos repentinamente por um desejo de transformação, lutamos
por quê? Não é possível comparar as passeatas que tomaram as ruas
de várias cidades brasileiras ontem com o movimento das diretas na
década de oitenta ou dos caras pintadas na de noventa; esta exigia o
impeachment de Collor, aquela lutava pela redemocratização; eram
objetivos claros e bem delineados. Nosso movimento, ao revés, por
possuir tantas demandas, carece de um elemento catalisador de
mudanças reais; os paulistanos, por exemplo, a princípio exigiam a
diminuição das passagens, eles ainda lutam por isso, mas a
descabida ridicularização do movimento inicial promovida pela
grande mídia e também por algumas lideranças políticas, provocou,
entre os jovens, uma epifania de indignação; rapidamente o
movimento foi galvanizado, transformando-se em algo gigantesco,
inimaginável, quase poético. Várias cidades aderiram aos
protestos, o povo foi as ruas, fazendo coro, levantando cartazes,
entoando palavras de ordem, e exercendo o direito mais legítimo de
qualquer cidadão. No entanto, com objetivos difusos, abstratos, o
sucesso desse novo engajamento cívico corre sérios riscos de não concretizar-se. Aliás, a já citada grande mídia parece ter
percebido este inevitável sintoma; depois de condenar a paralisação
de São Paulo, comparando os manifestantes com criminosos, ela
repentinamente, em uma espécie de arrependimento divino, voltou
atrás, reavaliou suas posições. Agora, para ela, os atos de
violência são externalidades menores e previsíveis que não podem
descaracterizar a beleza simbólica da caminhada sincrônica e
pacífica de 240 mil jovens, e tampouco deve servir para reprovar o
movimento ou deslegitimá-lo. A força da internet pode explicar esta
messiânica reviravolta argumentativa, afinal ninguém é mais alheio
aos benefícios e malefícios dela, e tentar controlar a opinião
pública, sendo sistematicamente desmentido e menosprezado pelas
redes sociais, blogs e outros canais alternativos de difusão da
informação, é praticamente impossível. Porém, acho que há algo
mais, ainda camuflado, escondido. Não sejamos ingênuos, ou será
que alguém imagina que os grandes conglomerados da indústria
comunicativa, financiada pelos pequenos grupos usurpadores da
dignidade populacional, apoiariam causas que podem, em um futuro
próximo, sacudir e restruturar nosso país?
Sem um
objetivo claro não chegaremos a lugar algum, e por mais que digam
que não eram apenas vinte centavos, lutar por isso parece mais digno
e inteligente do que exigir ou gritar por diversas e genéricas
demandas. Teremos, com a PEC 37, uma chance de aderir à
revindicações bem delineadas e com possibilidades de sucesso;
Globo, Folha, Veja e Estadão, tenho certeza, irão apoiar os jovens;
a desaprovação da emenda não colide com os interesses destes
grupos, embora seja fundamental para não regredirmos
democraticamente. Agora, se fôssemos às ruas exigir a criação de
um marco regulatório para a imprensa, provavelmente e sem fazer
alusão à violência, “o bicho ia pegar”, muitos privilégios
estariam em jogo e qualquer negociação ou concessão por parte do famoso quarto poder seria inviável. Lutaríamos sozinhos, seríamos tachados de
marginais bolcheviques contrários à liberdade de expressão;
talvez, neste caso, dependendo da proporção e do tamanho deste
sugerido e hipotético movimento, a repressão policial não só
seria aceita como exortada pelos nossos vergonhosos canais
tradicionais de comunicação.
Para
mudar nosso país temos de ser ousados, nos organizar com propostas
claras, ir as ruas com objetivos definidos, pois, caso contrário,
seremos apenas o reflexo ordinário de uma juventude que embelezou as
ruas das cidades, cantou, com alguma afinação, o hino nacional,
vestiu branco, pintou o rosto de verde e amarelo, para, no fim,
apenas receber improváveis e lôbregos aplausos de muitos que se
encantaram com o lirismo do nosso engajamento oco; não quero ser manipulado, e nem fazer parte de uma geração que foi as ruas
por mera curiosidade ou rebeldia passageira.
Ontem
pode ter sido um dia icônico, pois descobrimos que somos fortes, no
entanto, nas próximas manifestações temos que comprovar que esta
força pode ser usada em prol de objetivos concretos. Vamos protestar
almejando mudanças reais e significativas, pois depois da poesia vem
a prosa; e a beleza desta não está na simbologia da forma, mas na
concretização da ação. Agir é definir o trajeto e estabelecer
metas. Se não soubermos para onde ir, nossos maiores inimigos
assumirão as rédeas, nossa luta será vã e, quando a velhice bater
à porta, olharemos para trás com vergonha de ter perdido a
oportunidade de reescrever a história.
Se é
idiotice lutar por vinte centavos, quero, com orgulho, fazer parte de
uma nova geração de idiotas, que, em vez de relaxar vendo filmes,
jogando video-game ou paquerando na internet, prefere aderir a
supostas causas insignificantes. Vamos juntos criar uma nova geração
de jovens participativos e exigentes, sequiosos, seguros e engajados
em lutar por ideais de desenvolvimento e justiça. Sei que muitos
ficarão indignados, ofendidos, farão tudo para desqualificar
qualquer mobilização política; dirão, mesmo pedindo hipócritas
desculpas com o passar do tempo, que não valemos sequer vinte
centavos. Todavia, devemos ignorar estas antas reacionárias, fingir
que eles são gênios e nos esconder sobre o digno epiteto de jovens
patéticos. Sejamos patéticos, quem sabe assim poderemos transformar
o futuro das próximas gerações. É bom lembrar, parafraseando às
avessas os Engenheiros do Havaí, que não estamos sós e, portanto,
todos nós sabemos onde chegar.
Força e coragem, o futuro é nosso!
FG
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