A peça mais famosa de Shakespeare, além de ser um grande estudo
sobre a vingança, é uma imensa reflexão sobre nossas primitivas
dúvidas existenciais. A tragédia sanguinária engendrada pelo
dramaturgo inglês, traz à baila um campo fértil para o
desenvolvimento de dilemas psicológicos complexos que afligem boa
parte dos personagens; o príncipe Hamlet, o mais importante deles,
atormentado pelo fantasma do pai, desprezado amorosamente por Ofélia
e incutido por um ódio nefando do tio, caminha entre o tênue limite
da loucura e da lucidez; em longos monólogos, acompanhamos as
reflexões, angústias, tormentos, dúvidas e agruras enfrentadas
pelo protagonista da peça, que aos poucos é envolvido por um
labiríntico torvelinho de dúbias sensações; para ele o mundo era
injusto e a existência não fazia o menor sentido. Seu desencanto
com a vida pode ser comprovada através desse desesperançoso, porém
lucubrado dizer:
Ultimamente – e por que, não sei – perdi toda a alegria,
abandonei até meus exercícios, e tudo pesa de tal forma em meu
espírito, que a Terra, essa estrutura admirável, me parece um
promontório estéril; esse maravilhoso dossel que nos envolve, o ar,
olhem só, o esplêndido firmamento sobre nós, majestoso teto
incrustado com chispas de fogo dourado, ah, para mim é apenas uma
aglomeração de vapores fétidos, pestilentos. Que obra-prima é o
homem! Como é nobre em sua razão! Que capacidade infinita! Como é
preciso e bem feito em forma e movimento! Um anjo na ação! Um deus
no entendimento, paradigma dos animais, maravilha do mundo. Contudo,
pra mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não me
satisfaz...
No primeiro ato da peça, Hamlet, acompanhado dos amigos Horácio,
Bernardo e Marcelo, encontra o fantasma do pai; este o revela uma
pérfida verdade: sua morte não tinha sido natural, Cláudio, seu
irmão, havia-o envenenado, não apenas para usurpar seu trono, mas,
também, para desposar sua própria esposa. De fato, dias após o
estranho acontecimento, a corte celebrava a união da mãe de Hamlet,
Gertrudes, com seu tio. Abatido por um lancinante desespero, nosso
herói promete vingança, no entanto, antes de por em prática sua
insuflada resolução, decide comprovar a veracidade das nebulosas
confidências de seu pai. A chegada de uma trupe de atores à corte
de Elsinor seria a oportunidade perfeita para Hamlet comprovar ou não
suas suspeitas. O príncipe escreve uma peça baseada nos supostos
eventos narrados pelo fantasma, pede aos atores que a encene,
promovendo um grande evento na presença de toda a realeza, entre
eles, o rei Cláudio e rainha Gertrudes. Durante o espetáculo, o
jovem protagonista perscruta em minucias as expressões e reações
de seu tio; no clímax da peça, quando um dos personagens envenena o
rei para roubar o trono, Cláudio passa mal, fornecendo, dessarte, a
prova irrefutável que evidenciava sua perniciosa conduta.
Transtornado, Hamlet confidência à mãe o segredo
recém-descoberto; esta, achando se tratar de um delírio, tenta
acalmar o filho que passa a acusá-la de promiscuidade e desrespeito
à imagem do antigo soberano dinamarquês. Durante a cena, Polônio,
cortesão, pai de Ofélia e um dos maiores bajuladores da autoridade
real, ouvia atrás da tapeçaria a quizília linguística que se
transformava o colóquio de mãe e filho. Hamlet, cego de ódio,
ameaçava ferir Gertrudes com seu florim, ela, ao gritar, é
socorrida por Polônio, no entanto, este acaba sendo atingido
mortalmente pelos golpes do príncipe, que, julgando ter matado o
tio, se surpreende ao notar que retirara a vida do pai da sua
inexpugnável amada.
Em paralelo à trama de vingança, acompanhamos o envolvimento
amoroso frustrado entre Hamlet e Ofélia. Para o príncipe a filha de
Polônio era sublime, desprovida do mais insignificante defeito;
contudo o amor dos dois encontrava-se em uma dimensão irrealizável;
pois o herdeiro do trono se uniria, em consonância aos costumes da época, como é provável de supor, matrimonialmente por
conveniência, buscando algum acordo com outros Estados soberanos;
portanto, Ofélia reconhecia a impossibilidade de concretização das
promessas poéticas e apaixonadas pronunciadas por nosso herói, ela,
incutida por seu pai e por seu irmão Laertes, considerava os elogios
e galanteios de Hamlet sub-reptícios, obliterados pela falsidade de
um sedutor ímpio e lascivo. Com o peso insuportável da perda e da
negação de um amor achincalhando seus ombros, Hamlet desenvolve
drásticas dúvidas existenciais; seria a vida um fardo necessário a
ser suportado? Eis o ápice da peça, e o monólogo que imortalizou o
personagem:
Ser
ou não ser - eis a questão.
Será
mais nobre sofrer na alma
Pedradas
e flechadas do destino feroz.
Ou
pegar em armas contra o mar de angústias -
E,
combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só
isso. E como o sono – dizem – extinguir
Dores
do coração e as mil mazelas naturais
A
que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente
desejável. Morrer – dormir -
Dormir!
Talvez sonhar. Aí esta o obstáculo!
Os
sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando
tivermos escapado ao tumulto vital
Nos
obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que
dá à desventura uma vida tão longa.
Pois
quem suportaria os açoites e insultos do mundo,
A
afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As
pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A
prepotência do mando, e o achincalhe
Que
o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo
ele próprio, encontrar seu repouso
Com
um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo
e suando numa vida servil,
Senão
porque o terror de alguma coisa após a morte -
O
país não descoberto, de cujos confins
Jamais
voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,
Nos
faz preferir e suportar os males que já temos,
A
fugirmos para outros que desconhecemos?
E
assim a reflexão faz de todos nós covardes.
E
assim o matiz natural da decisão
Se
transforma no doentio pálido do pensamento.
E
empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas
demais, saem de seu caminho,
Perdem
o nome de ação.
Imortal, atemporal, inatingível e inigualável são alguns
adjetivos que poderiam caracterizar o autor dessa sequência de frase
definidoras de toda a angústia e incerteza do espírito humano. Por
que a vida? Em tempos dos inesgotáveis e repetitivos livros de alto
ajuda, as pessimistas palavras de Hamlet, por serem violentamente
verdadeiras, parecem trazer muito mais conforto às compungidas almas
desesperadas, do que as tolas e ingênuas palavras de incentivo dos
novos charlatões da literatura. Voltemos aos clássicos, pois o
mundo não é só felicidade e beleza, o podre sobrevive e luta por
mais espaço em nosso âmago. Talvez o certo seja aprender os
segredos e mistérios dos miasma que decompõem a existência, quem
sabe assim compreenderemos melhor nossas imensuráveis frustrações.
Bem, após a inevitável digressão, devo voltar ao enredo da peça.
Com a morte de Polônio, Hamlet é enviado à Inglaterra, Ofélia,
desesperada, se afoga no lago, e Laertes, julgando ter sido o pai
vítima das artimanhas malignas do rei, ameaça invadir a corte e
destronar a autoridade real. Cláudio, esclarecendo o incidente,
contorna a situação; joga a culpa das duas mortes nos ombros do
sobrinho. Com astúcia, nosso herói consegue retornar, em segredo, à
Elsinor; reaparece no funeral de Ofélia, onde é desafiado por
Laertes. No quinto e último ato, muitas reviravoltas transformam o
duelo dos dois jovens em uma inesperada sequência de mortes e
traições; todos descobrem o insidioso caráter do rei; Gertrudes
morre envenenada, Hamlet mata Laertes e seu tio, morrendo em seguida
abatido pelo veneno fraudulentamente depositado por Cláudio na
lâmina de seu adversário. A peça, assim como a vida, termina em
sangue.
Apesar de dramática, temos, em alguns momentos, cenas do mais
refinado humor negro. Em uma delas, Hamlet, que havia escondido o
corpo de Polônio após matá-lo, ao ser indagado sobre a localização
do defunto, profere estas agudas, cínicas e hilárias palavras:
Na ceia. Mas não está comendo. Está sendo comido. Um
determinado congresso de vermes políticos se interessou por ele.
Nesses momento, o verme é o único imperador. Nós engordamos todos
os outros seres pra que nos engordem; e engordamos pra engordar as
larvas. O rei obeso e o mendigo esquálido são apenas variações de
um menu – dois pratos , mas na mesma mesa; isso é tudo.
Se pudesse dar um conselho
aos meus virtuais leitores, diria para lerem Shakespeare o mais
rápido possível, eu mesmo sinto que perdi muito tempo postergando a
leitura do fantástico dramaturgo inglês. Após quatro séculos a
dúvida permanece e provavelmente jamais será respondida. Ser ou não
ser? Como responder a complexa pergunta se nunca alcançaremos
racionalmente a dimensão da não existência. Viver machuca, abre
feridas, flagela o corpo, mas não viver pode ser uma (não)
experiência ainda pior. E se me disserem agora que o mundo é belo,
cheio de cores e alegrias ou que devemos sorrir para a vida, cantando
e dançando em homenagem à inefável natureza ou à indescritível
criação divina, passarei a acreditar mais no “não ser”, pois
lá, certamente, não haverá tamanha hipocrisia.
Avaliação: 9,5/10
FG
Ser ou não ser... Vivemos esperando dias melhores pra sempre... dias melhores pra sempre...
ResponderExcluirE se nada acontecer, onde encaixaremos os dias melhores?
Excluir“Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.” Lygia Fagundes
ResponderExcluirPode até ser, mas as cicatrizes são inevitáveis.
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