Em Homenagem a György Ligeti
Parte I - Sombras
Como me expressar, demonstrando com palavras sentimentos
e angústias?
O Andarilho
“Devo confessar, fantasmas têm perseguido meus segredos, eles vão
se esgueirando pelas ruas abandonadas, se abaixam tentando alcançar
a invisibilidade, recuam, se aproximam, sem, no entanto, mostrarem as suas faces. Talvez tudo seja um delírio, apenas aparentes
coincidências oriundas da obnubilação de meus pensamentos; mas,
apesar de todo o sofrimento, prefiro sofrer o medo da perseguição
do que acordar e descobrir que nunca fui caçado; escolheria ser uma
presa fácil aos olhos de predadores astutos, do que viver em um
campo florido sem ser observado. Meu coração, a cada nova
insinuação, chora o menosprezo elucubrado. Se a verdade for bondosa
não quero descobri-la, prefiro a mentira da comunicação indireta,
pois qualquer um, em lugar do silêncio, escolheria a negação, o
deboche e o tormento do exasperado Não”.
Este foi um bilhete que escrevi antes do acidente, tento desvendar
seu significado, mas ainda não o compreendo. Já faz muito tempo que
perdi a memória, não me recordo de uma outra vida fora deste
esgoto; sei que minha pele escureceu, e que meus dentes caíram;
reconheço minha péssima higiene, afinal convivo no meio dos ratos.
Sobrevivo sem qualquer objetivo, no entanto procuro algo, mesmo sem
saber o quê. Nunca conheci a felicidade; talvez antes do acidente eu
fosse feliz, mas isso não importa pois não posso me lembrar. Nos
últimos dias tenho passeado pela superfície, em uma dessas oportunidades conheci um homem que se dizia apaixonado; ele
tentou me explicar o Amor, nada entendi; aos poucos percebo que estas
pessoas da cidade são engraçadas; vivem brigando, discutindo, as
vezes até se matando, no entanto elas não suportam a solidão.
Estão sempre em eterno conflito, e a dissidia é inevitável; como
posso entendê-los? Sobre as quizílias mais acachapantes e
perniciosas eles, ao final, se abraçam, fazem juras de amor eterno;
mas basta um grãozinho de discórdia para o ódio voltar, como um
tumor, a coabitar seus sentimentos. Não! Não acredito no amor,
tampouco acredito nos homens, eles são todos mentirosos. Talvez a
perda de minha memória tenha sido um júbilo precioso do meu
subconsciente, pois, ao viver em solidão e sem precisar compartilhar
dores e alegrias, provavelmente sou o único homem que encara o
sofrimento com sinceridade e sabedoria. Hoje, no entanto, para
fugir do medo, tenho procurado companhia, converso com muitas pessoas
lá na superfície, algumas revelam os maiores segredos de suas
vidas, principalmente as mulheres, estas são mais sensíveis e
verdadeiras. Um dia mostrei a uma simpática, astuta e sábia senhora
o bilhete que guardava escondido comigo. Perguntei se ela entendia ou
conseguia desvendar seu significado, foi então que ela me respondeu:
“Acho que o senhor estava apaixonado e teve seu amor negado, ficou
com medo de ser esquecido e preferiu o castigo do menosprezo à
injúria da invisibilidade.” Naquele momento fiquei sem palavras.
Eu, um apaixonado? Não, não podia ser.
O Demônio
Sinto a vaidade, eu sou toda ela; vocês, medíocres mortais, têm me
oferendando preciosos tesouros, pois não resistem, querem ser
admirados, os mais belos, inteligentes, ricos, bem sucedidos; e a
cada nova conquista precisam de um espelho para se auto contemplarem.
Admitam, sou amado, vocês me idolatram, veneram minha confrangida
beleza. Eu sou o caos, a desordem, a violação da lei; sou os
mistérios quebrados, o prazer inconsequente, o orgulho e o excesso.
Represento o proibido. Na cama : o sexo, no trabalho: o pagamento, na
conquista: o líder; confessem, vocês me querem, são todos Faustos
tentando vender a alma. Me diga quem não almeja os louros da
vitória, os aplausos, os cumprimentos; quem a qualquer custo não
jogaria sujo pela realização de um desejo; abram o jogo, eu sei que
ninguém se sacrificaria pelo outro se não por vaidade. Um conselho:
faça o bem quando estiver em evidência; assim suas conquistas
perniciosas, maquiadas socialmente pela bondade, serão bem
sucedidas. Conheço muitos dessa laia, de famosos a inúteis
anônimos; tenho uma lista de milhares facilmente reconhecidos, não
preciso divulgá-la, todos já a conhecem. Presidentes, autoridades
religiosas, atores, apresentadores de TV, esportistas, donos de
conglomerados financeiros, vencedores do nobel da paz e muitos outros
já venderam suas almas; façam como eles e sentirão a glória.
Vidas pequenas são para parvos sem ambições, sejam espertos.
Venham, venham, venham, venham todos...
Eu sempre fui um admirador do amor, pra mim este é o sentimento
humano mais fácil de ludibriar, através dele consigo inúmeras
vitórias. Brigas, solidão, assassinatos, discórdia, lágrimas,
desespero, insídia, vileza tudo isto alimenta meu ego; e neste
sentido o amor tem sido muito grato e solidário comigo. Almas que se
amam e se maltratam, como é delicioso, reconfortante, admirável.
Estes tolos filhos de Deus têm exultado meus sentidos; eles
conseguem ministrar, concomitantemente, sentimentos tão díspares;
juras de amor eterno são acompanhadas por maldições insufladas
pelo ódio absoluto. Tenho aconselhado, em sonho, alguns deles;
recebem meus conselhos com atenção, pois são enganados facilmente.
Não compreendem a própria alma e tentam compreender os outros; as
vezes até acho que meu trabalho é inócuo, eles sozinhos conseguem
resultados mais eficientes e nefandos. A algum tempo atrás exortei
um casal à deliciosa desordem, eles – e quando lembro disso dou
risada – acabaram se matando; cada um em sua realidade promoveu o
assassinato do outro, eles se divertiram muito no início. O poder, o
domínio tudo isto é irresistível, enche a boca de qualquer humano
do mais insidioso desejo, eles querem, eles anseiam, eles lutam,
esperneiam, fazem de tudo para conseguir, inclusive alguns vedem a
própria alma. No meu cardápio de ofertas, vendo de tudo: Amor,
Dinheiro, Fama, Mulheres, Homens, Beleza, Sucesso e até Talento; eu
sei convencer, se duvidam irei convencê-los. Fechem os olhos, ouçam
o doce cintilar da conquista; sim é tudo seu, basta querer. Para
conquistar a felicidade esqueçam dos outros, assim vencerão. Querem
um Amor, roubem-no, roubem tudo, a dignidade, o orgulho, a ombridade;
humilhem, pisem, batam. Se puderem torturem, escalpelem, chupem o
sangue. Provoquem, sim provoquem; sejam ardilosos, insinuem, seduzam,
sussurrem qualquer prazer, assim alcançarão a glória na desgraça
do outro; não preciso aconselhá-los, vocês conhecem táticas
infalíveis; ao observá-los tenho aprendido bastante.
Andei perseguindo um nojento andarilho, ele se dizia
inacreditavelmente bom; amava o próximo, e tinha imensa comiseração
pelo outro; Pra mim não passava de um altruísta de merda, alma
plangente, fraco, imundo. Foi enxotado pela amada e ficou chorando
sozinho sem fazer nada, hilário estes profetas da abnegação. Mas
eu me antecipei, retirei sua memória, sei que os humanos nunca
esquecem, pois quando Deus os criou eu dei conselhos para o
subconsciente. Não queiram invadir este local, sentirão um
exuberante almíscar de enxofre, lá fiz e faço minha obra prima.
Enfim, sem lembranças o sevandija do esgoto não poderá se
controlar pela razão, seguirá, portanto, os segredinhos que venho
plantando nos níveis absconsos de sua mente. Sou belo, inigualável
e - se prometerem não espalhar – confesso: estou a um passo de
subjugar o idiota criador do universo.
A Mulher
Fui traída e matei, decapitei o escroque ignóbil fantasiado na
pele de um cordeiro. Um tiro no pescoço, ele mereceu. Escondi seu
corpo nas gavetas de meu armário, a cabeça pendurei no teto da
sala; o fígado eu decidi comer, fritei no óleo quente. Sempre
recebi auspiciosamente minhas visitas, algumas estranhavam o crânio
em decomposição exposto em minha casa, mas a maior parte já havia
se acostumado. Tempos atrás estava aliviada, o cheiro podre não me
incomodava, eu, inclusive, adorava contemplar as moscas que jantavam
o pulha pestilento que tive o prazer de ver morrer. No entanto, certo
dia, aquele rosto transfigurado começou a falar, ele me insultava,
cuspia sangue pútrido em minha cara, lançava-me invectivas
horrendas, não me deixava dormir, cantarolando e gritando labaredas
guturais de sonoridade melancólica. Certa noite decidi por um fim
naquela situação; peguei a cabeça para embrulhá-la em um saco
escuro, com ele na mão deixei o apartamento. Em poucos minutos
chegava à beira do rio, lá me desfiz da imundice que carregava,
joguei meu antigo amor fora, na água negra famosa por esconder os
segredos mais abjetos. Com o passar das semanas comecei a sentir uma
imensa falta do morto, uma angústia no peito dilacerava meus
sentidos, meu coração batia acelerado, compungido pelo pungente
mal-estar da solidão. Chorava em qualquer ocasião, nada me
acalmava. Passava as manhãs sofrendo, minhas tardes eram desoladoras
e nas noites quase sempre vozes lúgubres me incutiam uma ânsia
suicida. Todas as madrugadas caminhava solitária pela praça
deserta. Em uma destas lancinantes andanças algo burlesco aconteceu.
No dia 08 de agosto do último ano vi um andarilho morrer. Andava
desesperada pelas ruas, era tarde. Com lágrimas nos olhos assentei
no toco de uma antiga árvore derrubada. Sozinha não via nada,
carros e pessoas talvez estivessem escondidos. Algum tempo se passou
até eu ser abordada por um homem estranho, ele fedia, sua pele era
muita escura e seus poucos dentes, pelo cheiro, eram podres. “Boa
noite”, disse o homem, nada respondi.
- Está chorando?.
- Isto não é da sua conta – falei, pensando: “Sim sofro muito e não tenho a quem recorrer”.
- Acalme-se, para tudo há uma solução.
- Por favor me deixe.
Por um longo momento o homem me olhou, seu rosto assumiu uma
expressão de desespero, aqueles segundos intermináveis foram
cruéis; ele, balbuciando frases desconexas, parecia estar
infartando; as únicas palavras que consegui identificar foram as
monocromáticas sílabas: “ver”, “des”. Sobre os meus pés o
estranho morreu. Não posso me culpar pela morte do mendigo; tenho
certeza, ele morreria de qualquer jeito. Este misterioso
acontecimento, não obstante a sua insignificância, acalentou meus
sofrimentos. No dia seguinte acordei disposta, ligeiramente feliz.
O Homem
A meses atrás desconfiei que minha mulher estava me traindo, decidi
matá-la. Fui cruel, torturei cada centímetro do seu corpo, passei
semanas trancado em casa vilipendiando o cadáver, e hoje posso
confessar: aqueles foram dias de abjeta felicidade. Durante este
período dispensei todas as visitas, não queria compartilhar meu
podre entusiasmo. A pele fria dos mortos me excita; o cheiro é
inebriante; e a consistência dos cabelos é um doce bálsamo
sombrio. Nunca pensei na possibilidade atrativa de um corpo inerte,
mas eles são apaixonantes. Não amava minha mulher, amava seu corpo,
e quanto mais ele apodrecia maior eram meus sentimentos. Eu adorava
fazer malabarismos com aqueles olhos verdes verdes, abstraído do meu
inefável cadáver; eles eram tudo pra mim, o portal de todas as
lembranças, o segredo de um suposto amor simultaneamente
compartilhado e obliterado. Mas eis que meus infortúnios começaram;
em uma estouvada brincadeira deixei cair meus brinquedinhos oculares
na privada; por um mistério do destino tropecei, pressionando a
descarga; meus olhinhos favoritos foram embora, habitariam, a partir
daquele desventuroso dia, o esgoto.
Sem os olhos verdes verdes não poderia viver; tive, então, que
procurá-los. Passei dias percorrendo as estreitas passagens do
subsolo fétido da minha cidade, tudo em vão - nada foi encontrado.
Fiz do esgoto minha nova casa, viveria o resto dos meus anos preso à
pérfida solidão de meus lamuriosos sofrimentos. Tive que matar uma
traidora para perceber que seus olhos mortos eram deliciosamente
apaixonantes; por pura imprudência perdi o objeto que matizava com
amor minha existência. Agora me pergunto: se aqueles olhos
estivessem vivos eu poderia amá-los? Não sei, mas tive uma chance e
não soube aproveitá-la. Como será meu futuro? Acho que estou
ficando louco, ouço demônios.
O Voyeur
Eu era vizinho de um casal apaixonado, da janela do meu quarto
conseguia ver os dois se amando; eles eram belos, o homem tinha os
cabelos claros, olhos cinzas, altura mediana; a mulher possuía a
pele alva, um sorriso doce, cabelos negros da cor do ébano; me
encantava suas delicadas covinhas e a maneira como se deslocava, seus
seios eram magistralmente desenhados, pernas grossas e nádegas
promiscuamente fartas; mas nunca irei me esquecer dos olhos verdes
verdes que sempre me hipnotizava. Tinha inveja daquele casal, eram
perfeitos, lindos. Com o binóculo acompanhava suas noites de prazer;
era um açucarado deleite na madrugada. No entanto, certo dia, vi uma
imensa discussão entre os dois, naquela noite o homem deixou a casa.
Alguns dias se passaram e por um segredo do acaso eu, ao sair de casa
com meu carro, tive a sorte de atropelar levemente minha vizinha
momentaneamente rejeitada; a levei ao hospital e sem muitos esforço
consegui sua amizade, passei a frequentar a casa que em um passado
recente presenteava minha vista com indescritíveis seções de sexo.
A mulher me contou todos os seus infortúnios e lamúrias; com ódio
relatava o término de seu casamento, dizia que seu marido a traia,
levava outras mulheres para sua cama. Eu sempre achei aquelas
confidências muito estranhas, sou um bisbilhoteiro e certamente
saberia sobre possíveis traições entre o casal. Não poderia, no
entanto, me intrometer naquele assunto; revelar minha própria
torpeza para ajudar pessoas aparentemente estranhas; posso ser
qualquer coisa, menos tolo. O tempo seguiu seu rumo, continuei na
solidão e privacidade de meu quarto a observar a vida alheia; a
mulher dos olhos verdes verdes passava horas ao telefone gesticulado,
com o rosto supostamente zangado. Em uma madrugada ela deixou o
apartamento com caixas e papéis, pareciam livros, cartas e álbuns
de fotografia, voltou minutos depois com as mãos vazias. Nunca
entendi direito esta atitude, nem sei por que continuo a recordá-la,
mas alguma coisa me induz a pensar que este ato selou a separação
daquele casal que um dia se amou. Hoje a mulher continua vivendo no
mesmo lugar, solteira e solitária. Todavia eu soube de notícias
tristes sobre o homem, ele, a meses atrás, dirigia bêbado e em alta
velocidade pela madrugada; ao atropelar um suposto mendigo, perdeu o
controle do veículo, capotou afundando o carro nas águas do rio;
morreu na hora.
Parte II - Deus (Narrador Onisciente)
Devo remendar os retalhos perdidos da primeira parte, esclarecer
lacunas, reaproximar a realidade do sonho. Deixo claro que não sou
um personagem, apenas observo de longe. Os acontecimentos independem
da minha vontade, sempre fui um mero espectador, dou livre arbítrio
para que os homens tracem seus destinos; não passo a mão na cabeça
de ninguém, não auxilio, tampouco castigo. Para as mentes confusas
que leram este estranho texto até aqui, se acalmem - tudo será
desvelado. Como já ficou evidente (espero) temos cinco personagens,
a história de todos eles se entrelaçam. Abaixo contarei, com
detalhes importantes e tentando recuperar a ordem temporal esquecida
na primeira parte, tudo que envolve os eventos lôbregos do enredo
amoroso pincelado por estas mãos medrosas que quer inventar até
mesmo um narrador. Aproveitem o passeio.
Cena I – Intriga
Um casal apaixonado viveu anos em perfeito equilíbrio; ela amava
incondicionalmente ele, e nunca escondeu este inexpugnável
sentimento. O homem, contudo, sempre teve dificuldades de se
expressar, sentia imensa ardor por sua esposa; e mesmo sendo muito
feliz, não se dava conta desta realidade. Ele era engenheiro,
passava o dia projetando casas, não obstante, esquecia de conservar
a sua própria. A mulher, poetisa de talento, escrevia longos poemas
dedicados ao amor, seu marido, fonte inesgotável de inspiração,
era homenageado a cada verso. Os anos foram passando e a relação
esmorecendo, no fim se amavam apenas no sexo. Algo começou a
perturbar os pensamentos da mulher, em seus sonhos ouvia conselhos
repugnantes, uma espécie de fantasma malévolo invadia sua mente
para compungi-la na alma. Certo dia, ao chegar em casa, ela sentiu
algo insuportável, seu quarto fedia a sexo. Não fora convidada e
tampouco participara daquela provocação.
Cena II – Intruso
Será o voyeurismo uma grande perversão? Sei que deveria utilizar
uma prosa objetiva para narrar estes eventos, mas é inevitável, ao
menos por enquanto, serei sardônico. Na parte um, o voyeur parecia o
personagem mais sensato, narrou com parcimônia os eventos que estava
envolvido; mas não se enganem foi apenas uma estratégia, ele
ocultou muitos fatos. Não preciso dizer que o estranho sobre a
alcunha de demônio teve participação decisiva na pertubação
mental do nosso amigo bisbilhoteiro. Graças ao meu rival (gosto de
supervalorizá-lo) o enxerido de binóculo invadiu a casa de seus
vizinhos para saciar seus anseios libidinosos. Foi até o quarto do
casal e ficou horas sobre os lenções se masturbando, deixou um
cheiro horrível e nem se preocupou em limpar. Entendem agora o
desespero da mulher na cena I. É difícil acreditar, mas as vezes
somos enganados pelas circunstâncias mais esdrúxulas. A vida é uma
comédia, cheio de reviravoltas absurdas, e devo confessar que dou
risadas assistindo os impropérios da mente humana. Hoje tenho
certeza que fiz bem em criar um palhaço que incentiva a idiotice de
minhas crianças. O mais paradoxal é que o bobo da corte sonha em
ser rei; pobre inútil, será meu servidor eterno.
Cena III – Quizília
A noite, após o acontecimento olfativo, homem e mulher
encontraram-se em casa, houve uma imensa discussão, cada qual
defendeu seu lado e acusou a outra parte. A relação dos dois já
estava bastante desgastada, o incidente foi apenas o estopim que
desencadeou uma enorme avalanche de ofensas. Chorando, a mulher
balbuciava frases tristonhas, dizia que nunca tinha sido amada, que
passou sua vida dedicando-se a um homem infiel, um crápula parasita
do mais puro romantismo sincero. A briga verbal foi tão intensa que
no subconsciente de ambos algo podre e demoníaco transformava a cena
em uma sequência de martírio e morte. Ela matava seu amor com uma
antiga carabina, ele, ao contrário, assassinava sua parceira com
golpes violentos de espada; estava feito e não haveria volta, tudo
foi muito insano, intenso e desproporcional; parecia que séculos de
angústias, vaidades reprimidas e vontades amordaçadas haviam
reencontrado a existência, chegando ao mundo como deletérios
furacões sanguinários. O homem foi embora, levava apenas uma
pequena bolsa com roupas e alguns pertences, aquele seria o último
dia que o antigo casal apaixonado se veria.
Cena IV – A Bondade em Excesso
Devo admitir que existem homens surpreendentemente bondosos, chegam a
ser anjos, profetas do bom comportamento, defensores da moral,
paladinos da justiça, heróis da abnegação e mártires da
solidariedade; alguns deles (aqui não faço distinção de sexo)
chegam a ser chatos, parecem que querem me agradar de todas as
maneiras, não percebem que o julgamento só é feito por homens; pra
mim, seja santo ou bandido, todos merecem a minha mais distraída
consideração (não consigo largar a ironia). Vocês já devem ter
suspeitado que irei comentar pedaços da vida do simpático
andarilho. Este homem nasceu pra sofrer; perdeu os pais muito cedo e
teve que se virar sozinho; cresceu na rua, sempre fazendo o bem.
Apesar de tudo vivia tranquilo, não era feliz, mas nunca se
queixava. Adorava perambular pelo esgoto da cidade, lá ele sempre
encontrava coisas interessantes; certa vez algo mudaria sua vida;
encontrou uma caixa abarrotada de livros, cartas e fotografias.
Passou semanas lendo e contemplando as fotos; ele se deleitava com as
poesias, nada era mais belo; um dos versos ele guardou, nunca mais se
esqueceu.
Luz, apenas luz sibila em meu peito
Pois o nobre laço da igualdade
Elevam as cores da amizade
Ao patamar apaixonado do seu leito
A autora estava ali ao seu lado em inesgotáveis fotografias; o
mendigo finalmente havia visualizado o amor; pra ele palavras tão
belas escritas por uma dama igualmente encantadora eram suficientes
para criar um sentido místico à existência. Os olhos verdes verdes
da mulher o hipnotizaram, as possibilidades de não amá-los eram
mínimas, apenas cegos insensíveis não perceberiam a opulência
daqueles mágicos globos oculares. Vocês acham que eu não tenho
desejos? Deixem de serem bobos; a beleza da minha própria criação
também me encanta, tenho sensibilidade. Enfim, voltemos aos fatos.
Cena V – Vida Louca
O homem ao deixar sua casa, foi viver em um hotel; decidiu aproveitar
a vida em orgias e promiscuidade. Quase todas as noites ia ao bordel
da cidade, transava religiosamente com álgidas e desinteressadas
prostitutas; no fundo parecia que ele copulava com mulheres mortas.
Passou a ter prazer com esta experiência, se afogando aos poucos no
álcool e nas drogas. A única recordação de sua antiga esposa era
uma inefável fotografia. Nela os olhos verdes verdes brilhavam como
os brasões dos portentosos impérios; sempre que olhava aquela foto
o homem chorava em impenetrável nostalgia. Aos poucos descobria que
amava e sempre amaria sua mulher; mas agora ela estava morta, e não
havia mais nada a fazer. Em uma madrugada típica de muito álcool e
drogas sintéticas, o noctâmbulo, após a farra, dirigia em alta
velocidade às margens do rio. Naquele dia ele havia colado a foto de
sua esposa no retrovisor do carro; um estranho e misterioso barulho
chamou sua atenção; eram vozes de súplica, vindas do ambiente
lôbrego; aos poucos, tudo ficava nítido, sua mulher o chamava,
implorava por sua volta. Sem diminuir a velocidade, ele perscrutou a
fotografia, os olhos verdes verdes começaram a brilhar, a
luminosidade era tão intensa que, por alguns segundos, o homem
perdeu os sentidos. Este tempo foi suficiente para provocar um
acidente fatal. Ao voltar a consciência o imprudente motorista já
estava sobre o passeio a alguns centímetros de distância do bondoso
andarilho, com um rápido movimento o homem jogou o carro dentro do
rio, um choque violento retirou sua vida. O mendigo teve sorte, foi
atingido de leve, sofreu apenas algumas escoriações.
Cena VI – A Besta
Agora cheguei na parte mais divertida, irei destrinchar o charme
cômico do meu adorável rival. Tão sedutor, amável, simpático e
agradável; já passei por muitas dimensões em colóquios
divertidíssimos com ele; e devo admitir que aquele capadócio tem
uma oralidade impressionante, um grande poder de persuasão. Fico
horas gargalhando quando ele usa seu próprio encanto pra me
ludibriar; ele esquece o óbvio, sou eu que dou voz aos personagens.
Chega de enrolação, vamos ao que interessa. Lembram dos telefonemas
da mulher descritas pelo voyeur, ela falava com o demônio. Ele,
ardiloso e esperto, assumia a voz do ex-marido, dizendo as maiores
barbaridades. Aquelas invectivas provocavam um imenso distúrbio
emocional na inigualável poetisa ( no mal sentido da palavra, os
homens adoram supervalorizar o medíocre), e o desfecho, comum para
as almas pequenas, foi a depressão. Este estado mental enobrece meu
amigo diabo; quando alguém fica deprimido, ele adora dar conselhos
abusivos; exorta todos ao suicídio, o pior é que esta tática dá
resultado, muitos caem na sua lábia, se matam por qualquer motivo. A
mulher da nossa história, inclusive, esteve a um passo de ser
convencida, foi salva sem nem perceber, mas este é outro assunto, é
melhor continuar seguindo uma perspectiva linear de tempo, não
coloquemos a carroça na frente dos bois.
Na cena anterior relatei o acidente automobilístico. Toda aquela
esquisitice foi obra do diabo. O brilho dos olhos verdes, foi uma
grande sacada; muito sagaz meu irrelevante adversário. Ele tem
conseguido com facilidade, através de ideias aparentemente simples,
angariar muitas almas. O engenheiro, por exemplo, ficará preso pela
eternidade naquele esgoto chamado rio, lá ele será utilizado em
qualquer situação pelo diabo. Já disse pra vocês que eu nada
posso fazer, sou apenas um espectador; desperdiçar a vida é uma
opção, pois se querem vender a alma, vendam; esqueçam o amor, a
bondade, a humildade, a solidariedade e todas as outras “dades”
que vier a mente, porque não me importo com nada disso; até
confesso: sempre gostei mais das tramas pútridas de terror e ódio,
para um grande amante da vaidade, acompanhar indivíduos melindrosos
e circunspectos é brochante.
Cena VII – O Fantasma
Após o acidente o homem morto passou a vagar pelo esgoto, não sabia
de sua condição de fantasma, aliás ele não mais raciocinava,
vagava como um louco tentando buscar os olhos verdes verdes da amada.
Se esgueirando por canais podres o homem persistia em sua inepta
busca. Certa vez, contudo, ele viu algo chocante: um andarilho
foleava, em inebriado êxtase, o seu álbum de fotografias; para o
fantasma ver outro homem admirando sua ex-mulher era insuportável.
Tentou agredir o invasor de sua privacidade, tudo em vão, não
conseguia atingi-lo.
Cena VIII – O Contato
O andarilho, em uma noite sem luar, sentia que algo o observava, já
havia algumas noites que a situação se repetia. Todavia naquele
específico dia a atmosfera estava diferente, parecia desvelar a
realidade em seu subconsciente. Ele finalmente visualizou pedaços
turvos de outra dimensão, viu o fantasma e não se assustou. Foi
logo perguntando: “Quem é você?”, neste instante o fantasma
ficou lívido - ou melhor, recrudesceu sua lividez – já tinha
perdido a esperança de fazer contato. Sobre um oceano de segundos,
enfim veio a resposta: “Sou um fantasma apaixonado, condenado a
vagar em busca dos olhos verdes verdes que tanto me impressionaram”.
Foi então que o andarilho percebeu o óbvio: “Você é o homem das
fotos. O marido da doce donzela encantadora de palavras e
manufatureira de emoções”. O fantasma, incutido por um nobre (ou
será demoníaco?) espírito de confiança, contou toda a sua
história; seu relacionamento com a poetisa, suas brigas, discussões
e, principalmente, seu reprimido amor nunca demonstrado. Em tom de
arrependimento, aquele espectro de vento, chorava a impossibilidade
de uma nova oportunidade.
Cena IX – O Bilhete
Querem saber o segredo do bilhete? Pensam em algo engenhoso, complexo;
dúvidas existenciais do andarilho bondoso? Se enganam, tudo é bem
mais simples. O mendigo achou o bilhete na rua, um jovem de boa
estatura (que não participa dos eventos aqui narrados) o havia
escrito em um momento de desespero, jogando-o, minutos depois, pela
janela do apartamento. O conteúdo do papel intrigou o andarilhou,
chamou tanto sua atenção que ele decidiu não só guardá-lo como
também reescrevê-lo em outro material mais conservado. Por um
desses azares do destino, ou planejamentos do diabo, nosso simpático
personagem foi novamente atropelado, desta vez seus ferimentos foram
graves; dias no hospital público não salvaram sua memória; agora
ele era um pobre andarilho sem passado. De todos os seus pertences, a
única coisa que levava nos bolsos, no momento da fatalidade, era o
seu bilhetinho reescrito. Portanto, a solitária peça do seu
quebra-cabeça pessoal, que poderia devolver parte da sua pretérita
vida, era apenas uma ilusão perversa muito bem engendrada. Meu
amigo, o diabo, jogava novamente com o amor, para entreter seu
criador. Bem, após os aplausos, façamos uma pausa.
Cena X – O Sonho
Sem memória o andarilho passou a vagar trôpego e sem qualquer
perspectiva nos intermináveis túneis do subsolo da cidade.
Fantasmas, comandados pelo diabo, passaram a incomodá-lo durante o
dia, forçando-o a buscar companhia entre os vivos da superfície.
Era tudo um plano demoníaco; sobre a astuta ótica do “bom
vivant”, meu companheiro de eternidade acochambrou falsas verdades
pelas vozes performáticas de espúrios atores. Primeiro ele assumiu
a materialidade de um corpo masculino e jovem, tentando explicar ao
andarilho o significado, dentro do padrão diabólico, do amor; não
conseguiu seu intento, no entanto não desistiu; por dias se
fantasiou na pele das mais diversas mulheres: velhas, maduras,
adolescentes, avós, mães, executivas, modelos, ricas, pobres,
feias, belas, enfim, tentou diversificar sua aparência incutindo, ao
desmemoriado mendigo, várias situações envolvendo os sentimentos
amorosos. Mas nada foi tão inteligente quanto a tradução feita
pela diabo - nesta ocasião ele estava fantasiado de velhinha - do
absconso bilhetinho. Dizer que o andarilho estava apaixonado foi
genial.
Cena XI – Depressão e Angústia
Esta cena talvez seja dupla, relatarei a depressão da poetisa e a
angústia do andarilho. Ela sofria um amor perdido, ele, ao
contrário, estava ávido, ansioso, pela falsa descoberta de um amor
escondido. O demônio é perspicaz, ele sabia que se unisse a
tristeza com a angústia algo incomum poderia acontecer; a solidão
da dor em contato com o vazio eleva a potencialidade dramática de
todas as situações. Enquanto a dama pensava no suicídio, em se
jogar do alto da torre de seu castelo inatingível, o plebeu esperava
encontrar a chave das muralhas aristocráticas que segredavam um
vórtice de obsequiosas sensações inexistentes. A perda pode ser o
início da queda, a porta de entrada do abismo; já a falsa conquista
transforma o indivíduo em pedra, ele fica imóvel, inerte; vive,
respira, mas não se mobiliza; a angústia é um estado de morte em
vida, quem a sofre quer viver, no entanto não consegue. A depressão
da perda envolve o indivíduo sobre outra perspectiva, nela a vida
caminha para a morte. Portanto, podemos dizer que a poetisa e o
andarilho estavam em polos opostos do sofrer, tão distantes que, ao
aproximá-los, algo nefando iria acontecer. O toque do diabo lograria
sucesso? Quem se arrisca em responder?
Cena XII – Morte
Todos vocês são leitores ansiosos, querem a minha versão da morte
do andarilho. Mas eu confesso e repito, sou um mero espectador, não
sei de toda a verdade. Alguns podem reclamar, pensando: “Mas você
é onisciente, sabe tudo”; eu conheço os fatos, não os seus
motivos. O andarilho lembrou, ao ver os olhos verdes verdes, do álbum
de fotografia? Morreu por que achou a mulher amada? Os mistérios da
alma são intraduzíveis; talvez a morte tenha sido um ato de
sacrifício; pois dar a vida pela felicidade alheia é apanágio da
espécie humana, nós, deuses, não conhecemos estas tolices. Mas por
que se imolar? Como a morte de alguém condiciona a felicidade de
outrem? Sou incapaz de responder tais perguntas; neste aspecto o
homem é seu próprio senhor. O amor, o amor absoluto, talvez ali
encontremos a resposta.
Cena XIII – Sempre Castanhos
Meu papel nesta narrativa esta chegando ao fim, deixei algumas coisas
vagas, pois quero dar ensejo a novos mistérios. No entanto, antes de
partir, devo relatar um fato curioso. Meses após o 08 de agosto, o
voyeur encontrou a poetisa em felicidade radiante; eles trocaram
cumprimentos até o pervertido do binóculo notar uma coisa estranha;
estupefato tartamudeou: “Seus olhos estão castanhos”; ela, com
um confuso sorriso no rosto, respondeu: “Sim! Eles sempre foram
castanhos.”
CONTINUA...
FG
Obs: Este texto foi escrito graças as excêntricas músicas de György Ligeti que me inspiraram. Novamente reafirmo que não me responsabilizo pela qualidade de meus textos, lê quem quer.
Como escrevi apenas metade da "estória" e o texto já está bem grande, resolvi dividi-lo em dois volumes; este com a parte 1 e 2 e o próximo que provavelmente contará com a parte 3 e 4 (que ainda será pensado e escrito). Sei que dificilmente alguém chegará ao fim deste texto, mas, caso aconteça, poste um comentário, apenas para que eu saiba (pode ser anônimo). No próximo texto tentarei dar as explicações e os nós que estão faltando, antecipo que haverá muito conteúdo sobre os misteriosos olhos verdes verdes e principalmente sobre a suposta perspectiva gótica do amor. Outro fator importante, Deus (narrador da segunda parte) participará da trama. Minha nossa, após estas explicações me sinto imensamente estúpido.
Confesso que tinha lido já na quinta somente "o andarilho" sob a promessa pessoal que voltaria para ler o resto. Fiz isso hoje, o texto é interessante, bem conectado, original. Gostei, parabéns. Acho que você tinha que proteger seus textos sob algum tipo de licença, já vi algo desse tipo em algum blog, por aqui da para fazer alguma coisa: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/3.0/
ResponderExcluirContinue o trabalho! abraço!
Valeu Paulo por ter disponibilizado parte do seu tempo lendo meu texto, fico muito agradecido e lisonjeado. Este "conto" ficou um pouco confuso, algumas lacunas e imprecisões precisam ser desfeitas. Havia prometido uma continuação, hoje, aliás, pensei em começar o vol.2, mas estava e continuo sem ideias. Obrigado pela dica, vou dar uma olhada no site indicado. Um grande abraço e sempre que quiser frequente o blog e comente os textos, ficarei muito contente.
ExcluirHoje achei que meu dia estava perdido... mas ainda bem que tive a ideia de visitar o blog! Então meu anjo da guarda me fez clicar neste texto. É muito bom... bom mesmo... muito envolvente, inteligente, bem escrito... interessante... às vezes comovente, às vezes amedrontante. O fato é que é uma obra de arte. Parabéns!
ResponderExcluirQuanto tempo levou para escrever?
Fala sério, obra de arte? Fico muito agradecido com suas palavras, mas reconheço minha insignificância, já me sinto profundamente agradecido em envolver meus virtuais leitores com meus textos e histórias, algo além disso é exagero; minha pretensão ao escrever é apenas passar o tempo e descarregar emoções.
ExcluirUm quinto deste texto foi escrito em duas tardes, o restante foi produto de uma longa e exaustiva madrugada. Obrigado e um grande abraço.
O bilhete é comovente... tocante... não sei explicar... Mas o jovem de boa estatura já imagino quem seja!!
ResponderExcluirVocê é brilhante em seus textos. Estou muito emocionada!
Só posso dar risadas com este comentário; talvez o meu conto de terror tenha se transformado em uma hilária comédia.
ExcluirDevo admitir que tenho que reler para discutir mais coisas... volto a te incomodar, ok?
ResponderExcluirSinta-se à vontade para ler e reler meus textos, quanto mais comentários melhor.
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