Sempre associei esta música com a morte, ela me traz tristes recordações de parentes queridos. Na minha cidade é tradição a igreja anunciar, a pedido dos familiares, o falecimento dos indivíduos. No alto do morro, ostentando um ar exagerado e imponente, aquela velha moradia de Deus insiste, semanalmente, em gritar a dor para alguns, e burilar, na atmosfera auditiva do restante, a sonoridade melancólica, desprezível e indiferente. Sempre quando Bach ressoa pelo lúgubre ar de Lima Duarte é sinal que uma alma está se despedindo, indo embora para encontrar novos lugares ou simplesmente para não encontrar lugar algum. Perdi meus avós e conheço a pungente sensação do afastamento, racionalizar a perda é difícil, exige um esforço incomum, pois como é possível entendê-la se ela é para sempre? Saber que não haverá volta dilacera todos os pensamentos, deixa a boca seca odiar a umidade, o estômago vazio repugnar qualquer insinuação de preenchimento, o cansaço clamar pela intensificação da fadiga e o peito aberto escolher, em lugar dos afagos, a insensibilidade do tormento. Mas o tempo, aos poucos, vai reequilibrando nossa postura perante a vida; as semanas passam e ficam as lembranças. Tempestuosas no início, elas sofrem rapidamente um processo de mutação, ficam doces e singelas. As piadas, os sorrisos, aquela carinha ranzinza que tanto nos agradava, a promiscuidade ingênua da velhice, as histórias de fantasmas, a sabedoria da experiência, as broncas e até as tentativas frustradas de correção, passam a surgir como espectros nostálgicos de um tempo que se foi, deixou saudade mas, ao menos, existiu.
A perda advinda da morte dói, dói muito, no entanto, após algumas
rotações da Terra, ela vai embora, deixando como recordação
momentos eternos que carregaremos até o túmulo. Mas existe outra
perda que ao contrário da última não é amiga do tempo. Quando
perdemos pessoas em vida, o fenômeno descrito anteriormente se
inverte, na verdade é até difícil calcular ou ponderar o momento
exato desta suposta perda. Sem perceber o tempo vai passando e aquela
pessoa que amamos, mesmo quando está perto, vai ficando distante,
fria, indiferente. De repente nos apercebemos saturados pelo
desespero e pela angústia; a tênue esperança vai sedendo,
esmorecendo até se transformar em tristeza absoluta. O pior é
quando não temos lembranças, ou quando elas não chegam ou não
fazem sentido. Nesta modalidade de perda temos a sensação que o
universo, o destino, a criação, a natureza, a atmosfera e todas as
certezas são cruéis, vis, abjetas, pútridas e mesquinhas; o mundo
se anuncia como uma imensa esfera em decomposição, tudo perde seu
valor, o ambiente fica sujo. A realidade, parteira do fastio, é
perversa, ela, ao nos mostrar a pessoa amada, ri da nossa desfigurada putrefação, pois reconhecer a perda do amor diante dele próprio é
se assumir cadáver. Amar, ver e não ser visto, quando isto acontece
somos obrigados a enterrar com vida alguém importante. O tempo,
remédio acalentador das separações ocasionadas pela morte, é uma
moléstia para as perdas em vida; talvez o tratamento indicado para
adaptar o vírus do amor perdido ao corpo esteja na arte, na escrita
ou em qualquer outra forma de expressão e desabafo. A loucura,
nestes casos, não é apenas uma opção, mas uma necessidade, sendo
assim minha terapia é gritar, delirar, socar os pensamentos com a
agilidade exponencial dos dedos que digitam os sofrimentos. Meus
devaneios linguísticos são estratégicos e viciosos, me fazem
perscrutar, na alma, o alívio circunstancial do ávido vômito
verbal e o sibilar frondoso da momentânea e enganosa calma.
Portanto, agora, mesmo na solidão do leito, peço permissão para
chorar palavras que entorpecem o meu peito.
Deus, por quê? Diga-me algo, alivie minha dor, ou ao menos entenda
meus lamentos. É insuportável; a angústia me corrói, turva meus
sentidos com impossibilidades mesquinhas, solapa meu espírito em
ligeiras ilusões espectantes, ceifa minha própria personalidade,
dividindo-a em metades desproporcionais de medo e timidez. Estou
sozinho, fechado em meu próprio espaço, preso nas inconsequentes
privações de meus ignóbeis segredos. Hoje não tenho forças para
levantar e nenhum amigo que possa me ajudar; tenho caminhado
solitário durante a noite escura e silente, o vulto das formas já
se apagaram por inteiro, não é possível sentir nem mesmo o vento,
tudo é depravação do vazio, invisibilidade cortante, discurso
pedante condenado a ser um eterno monólogo sombrio. Sei que nada
existe fora dos meus pensamentos; os pedaços das espúrias dores
servem apenas para regar um amor apodrecido, materializado na figura
de uma delicada flor que nunca conheceu a vida. Por quê? Passei anos
cuidando, com um apaixonado melindre, do meu jardim inorgânico, mas
nada nasceu; todo o suor e todas as lágrimas foram em vão, pois
serei para sempre somente uma invisível e enfadonha mímica sem
sentido. Se um dia fui menestrel, só compatibilizei fracassos, no
máximo conquistei alguns sorrisos traduzidos por corpos insuflados
pela pena, e agora não posso me queixar, percebo que fui o único
culpado em promover meu epiteto de parvo; a genuína chocarrice -
graças a minha autorização – foi inevitável e, sobretudo,
legítima.
Neste momento tento manter a calma, qualquer descuido é suficiente
para meu âmago assassinar o tempo. As horas passam, os dias
terminam, as semanas dão adeus, os meses se despedem, e os anos vem
chegando; imagino que eles sejam cruéis, abjetos, perniciosos;
provavelmente irão engolir meu amor sem, no entanto, digeri-lo,
ficarão ruminando eternamente uma possibilidade aparente. Ter
consciência do próprio fracasso compunge a alma, escurece a clareza
de todos os sentidos, machuca, agride e as vezes tortura, afogando o
ânimo em desconfortável solidão. Eu gostaria de fazer as pazes com
o vagaroso e insuportável tic-tac do relógio, dizer a ele que estou
disposto a oferecer parte do meu dia em agradecimento, caso meu
sofrimento vire o espólio vultuoso que irá ser repartido pelo vento, fecundando novos momentos e outros pensamentos. Nesta tortura
sem sentido, temo radicalizar qualquer propósito, intensificar a
feiura do espelho para me sentir incapaz de almejar o menor anseio.
Doce ilusão provocar as palavras, pensar coerente talvez seja o
início do desespero, o certo é não pensar, pois racionalizar os
sentidos é covardia, mero desequilíbrio de pessoas ingênuas.
Chega, estou cansado, sei que Deus não existe, e se ele existisse
gostaria de matá-lo, não pelo sucesso, seria um assassino anônimo,
mas pelo menosprezo da obra planejada, criada, e hoje desfeita. Tudo
é belo? Tudo é podre? Nada existe? O que é o amor? Respostas
apenas propagam a dúvida, portanto não quero respostas, quero mais
perguntas. Pode parecer estranho, mas acabo de cumprimentar todas as
hipótese de criação, quando dizemos o óbvio o resultado é o
absurdo. Não cantarei o amor, nem provocarei o tempo, pois agora
tentarei me contentar com a perda de cada momento; se me sentir
rejeitado, com um sorriso no rosto, rejeitado serei; e digo mais,
mesmo indisposto, lavarei o meu rosto com a saliva do desgosto, para,
preso a todas as rimas indiferentes, conquistar o pungente almíscar
com uma escrita absconsa e plangente. Ridículo a minha falta de
talento, as vezes ela me comove, principalmente quando me mantenho
preso aos joguinhos linguísticos toscos, com eles e através deles
esqueço tudo, não ouço nada, finjo, me iludo. Chega de tentar
rimar, a falsa poesia, neste caso, serve como uma imensa pedra nos
trilhos, se ela não for retirada a tempo, o trem perderá seu rumo,
ficará desgovernado, destruído no meio do caminho percorrido.
Ficar parado antes de terminar o percurso, talvez esta seja minha
sina. Entendam que as motivações linguísticas, a procura dos
signos sagrados, o deleite gerado pelo prazer descompromissado de
poder escrever qualquer provocação, podem enganar até mesmo o
interlocutor amado. Meu propósito não é dizer “eu te amo”,
tampouco gritar: “Sofro!”, quero, apesar do vexame, caminhar
emulado em busca de uma perfeição impossível. A forma intraduzível
do seu rosto, valorada em mil páginas das melhores poesias, me
inspira; no entanto eu continuo incompetente, insuficiente, um eterno
fracassado, moribundo, retardado. Chego ao cúmulo de não perceber a
qualidade de algumas frases, sou levado, pela ávida histeria, a
estragar, vilipendiar, maltratar, e torturar pedaços sinceros
daquela etérea comunicação exultada pelas mais apaixonadas
alegrias. Nestas reflexões, aos poucos venho percebendo uma imensa
semelhança entre o amor e a arte; para criar precisamos,
inevitavelmente, de um grande amor; a diferença de estilo está nas
contingências amorosas: alguns são correspondidos, outros
ignorados, rejeitados, mas existem aqueles recalcados que, por medo
de se expor, ficam solitários, desenvolvem uma prosa sombria. Haverá
uma relação entre a perda e a criação? Gostaria de encontrar uma
resposta em seus olhos, pois abdicaria de tudo se um dia eles me
dissessem: “Esqueça, esqueça, seja apenas feliz”.
Quando minha querida avó morreu fiquei muito triste, passei a
escrever quase todos os dias, contudo o tempo foi passando, em poucas
semanas não precisava mais da escrita, voltei ao normal e apenas
coloquei um ponto final em numerosos textos, de duvidosa qualidade,
que jamais foram ou serão lidos. Perdi e rapidamente me despedi, foi
tudo muito efêmero, um sofrimento passageiro. Depois veio o amor e o
desespero; o processo foi semelhante, a perda, desta vez em vida, me
fez escrever, tentar colocar na tela de um monitor tudo que me
afligia. As vezes a pressão no tórax era tão intensa que eu socava
as teclas do teclado, produzindo algo idiota e nada agradável; aliás
teve um dia que produzi meu maior texto, trinta e cinco laudas com
caracteres desconexos e sem o menor sentido, algo mais ou menos
assim: “lsdngubWORGNNbrogNGWRIUHREGBGVK...”, vai ver aquele foi
meu melhor trabalho, no mínimo o mais verdadeiro. Tudo bem eu
confesso: todos os dias que escuto “não”, escrevo. Ignóbeis
frases em um papel, espúrias poesias no meu inviolável e secreto
caderno, escárnios linguísticos facilmente deletados e jogados ao
lixo, são alguns estouvados exemplos do meu amor sem talento e, sobretudo, do
meu despreparo afetivo. Mas e se escutasse “sim”, cantaria uma oblação
singela à felicidade? Devo ter esquecido, mortos não falam.
Todos nós amamos e sofremos, ganhamos e perdemos. A vida é assim,
se fosse diferente não teria graça; a conquista apenas faz sentido
quando conhecemos a perda. Uma criança, ao nascer, pode amenizar a
dor de um falecimento recente, um novo início sempre guarda
adoráveis segredos. Talvez tudo faça sentido, pois se não houvesse
a morte, qual seria a motivação para nos dedicarmos à vida? E
se todas as pessoas que escolhemos amar dissessem “sim”, teria o
amor alguma valia? Não me reconheço, basta um pouco de lucidez para
começar a escrever qualquer asneira, expressar o lugar comum, ficar
piegas. Prefiro a insanidade do delírio, a promiscuidade duvidosa da
falta de equilíbrio, a desproporção de um sentimento alimentado
pelo espírito obsessivo, a violência da agressão moral,
sentimental, a tortura, a falta de respeito, o suicídio imagético,
o caos e o menosprezo; definitivamente, não quero fazer as pazes com
a humanidade, tampouco receber qualquer elogio pela suposta graça e
sensibilidade, minha trajetória é e sempre será sangrenta, devo,
com orgulho, aplaudir o “auto-ódio”, rasgar minhas vestes em
público, apenas para galvanizar meu estado contemplador de todo o
repúdio. Farei uma ode ao inferno existencial, ele, quando absoluto,
apodrece a alma, estimulando solidariamente a insignificância da
própria criação. Quando radical, legítima, intransigente e
verdadeira nossa escrita passa a ter algum valor; posso manipular as
palavras visando algum objetivo, no entanto se fizesse isso seria um
sevandija asqueroso, uma fraude, tartufo, devoto da dissimulação.
Prezo pela congruência da expressão, não posso me conciliar com a
vida enquanto ela permanecer indiferente, me oferecendo apenas
desventuras, anelos irrealizáveis, perdas diárias, e falta de
ânimo. Devo jogar no papel todo o meu medo, depositar, em ásperos
tecidos, as filigranas do meu desespero, enforcar meu sentimento,
não para matá-lo (amor não morre); quero, na verdade, escamoteá-lo
das vistas indiscretas, dos burburinhos maldosos, da incompreensão
ignorante, do insidioso esgar de pulhas invejosos. Será prudente
esconder a essência das minhas absconsas confidências? Neste passo
moroso temo ter ficado chato, talvez louco; meu único alento é
saber que, depois de tantas linhas, poucos resistirão até aqui.
Perderão a melhor parte: o desvelar tardio de um grande segredo, a
possibilidade de produzir sua própria arte, a liberdade de dizer,
pensar, se iludir, delirar, sonhar, matar, torturar, xingar, e até
mesmo amar. Façam, todos nós precisamos disso:
Eu......................................................................
(preencham, pois criar é uma exigência existencial)
Depois de não dizer nada devo finalizar meu texto. Mas como?
Todas as perdas, o blog, meus avós que partiram, a mulher que eu
amo, minha solidão, a rejeição, o carinho, o ódio, o amor, a
música, a arte, os livros, os filmes, o inesperado, o instante
poético, minha família, amigos, tudo, absolutamente tudo revelam
quem eu sou. Por sorte sou diferente, todos nós somos. Nada é
homogêneo, ninguém vive igual, sente igual, sofre igual; fora os 45 cromossomos* tudo é dessemelhante. Portanto, quando Bach ressoar pelo
ambiente singular das nossas próprias vidas, sei que será difícil,
mas, estando o tempo do nosso lado ou não, devemos retirar, cada um
dentro de sua particularidade, algo de bom, pois um dia a música
regressa, os mortos deixam a tumba, e sem perceber encontraremos não
um antigo conhecido, mas novos amigos; estes, aliás, poderão, quem
sabe, estar mais adaptados às nossas excentricidades. Sei que
continuaremos a sofrer, a dor é inevitável; e que Bach, mais cedo
ou mais tarde, voltará a nos atormentar, querendo roubar um ente
querido, ou afastar um novo amor conquistado. Um conselho: aceite e
use o sofrimento para desenhar, tocar piano, compor músicas,
escrever textos, fazer poesias, contar estórias, ou criar qualquer
coisa genuinamente sua. Se a dor não for embora, ao menos ela será
usada de forma justa.
O amor, a perda e a criação, palavras que compõem um portentoso
ciclo. Só cria quem perde, só perde quem ama, só ama quem cria.
FG
Obs: *o 46ª, o cromossomo sexual, nem sempre é igual.
Este novo devaneio caminhou entre a lucidez e a loucura. Estratégia de escrita? Não sei; no entanto, parece que um câncer, aos poucos, vem se adaptando ao meu corpo.
Obs: *o 46ª, o cromossomo sexual, nem sempre é igual.
Este novo devaneio caminhou entre a lucidez e a loucura. Estratégia de escrita? Não sei; no entanto, parece que um câncer, aos poucos, vem se adaptando ao meu corpo.
Tentando consolar nosso sofrido personagem, pois suas palavras cortam o coração, deixo uma citação:"Os ventos que as vezes tiram
ResponderExcluiralgo que amamos, são os
mesmos que trazem algo que
aprendemos a amar...
Por isso não devemos chorar
pelo que nos foi tirado e sim,
aprender a amar o que nos foi
dado.Pois tudo aquilo que é
realmente nosso, nunca se vai
para sempre..." (Bob Marley)
Palavras do suposto personagem:
Excluir"Engraçado você postar este comentário logo hoje; já tinha um tempinho que eu não me sentia tão bem e feliz."
O tema mais presente em nossas vidas... as perdas... é bom falar disso, todos nós temos algo a declarar!
ResponderExcluirAs perdas, as conquistas, as perdas, as conquistas... um ciclo infinitamente doloroso, no entanto belo.
Excluir"Tão bom morrer de amor e continuar vivendo."
ResponderExcluirMario Quintana
Não aconselho o oposto, morrer e continuar amando pode ser nocivo.
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