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Vidas Secas - Graciliano Ramos



Após me enternecer com a suposta futilidade amorosa do jovem Werther, nada melhor que embarcar em um ignóbil drama social; Vidas Secas me transportou novamente à realidade, me sinto, após a leitura, renovado e com muitas dúvidas. Somos todos parvos, tendemos a supervalorizar nosso ego, nossas pequenas mazelas e dores. O que é o tédio diante da fome? Nós, jovens burgueses, bem alimentados e bem vestidos já experimentamos algum sofrimento verdadeiro? Aff... deixemos de lado estas reflexões adolescentes, vamos ao que interessa.

Sinceramente, não tenho muito a dizer sobre este monstruoso romance brasileiro, para os que procuram se informar sobre o enredo do livro, eu lhes aconselho a procurar no google outros comentários infinitamente melhores do que este. Se meu blog não passa de uma ilha governada e abitada por um único sujeito, e se isto às vezes me incomoda um pouco, ao menos agora, ao escrever sobre a obra prima de Graciliano, sinto-me aliviado por não possuir leitores. Este texto nem deveria existir, só me empenho a comentar algo pela obrigação moral, assumida conscienciosamente, de resenhar tudo que leio.

O romance é curto, dividido em treze capítulos; o primeiro nos dá uma amostra de todo o sofrimento daqueles que são obrigados a conviver com a martírio da seca. Fabiano, sinhá Vitória, seus dois filhos e a cadelinha Baleia, peregrinando, fatigados de sede e fome, pelas terras áridas do sertão nordestino, perdiam, aos poucos, as esperanças de encontrar terra fértil. Graciliano narra com precisão e maestria os horrores da seca:

“A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”.

Já entregues pelo cansaço e pela falta de forças, a família encontra uma propriedade abandonada, resolvem interromper a jornada para descansar. Fabiano, não encontrando comida, sente que será vencido pela fome, mas sua sorte, naquele tempestuoso dia, iria mudar; a esperta Baleia retorna, após breve sumiço, ao grupo, trazendo, preso ao focinho, um delicioso preá. De noite, aliviados da fome, Fabiano e sua família observam as poucas estrelas no céu, era um ótimo sinal, a seca estava chegando ao fim.

Com as plantações florescendo novamente, Fabiano decide permanecer no sertão, vira vaqueiro. Passa a trabalhar para o proprietário da terra a qual se instalara; mensalmente roubado, recebia salários menores do que era combinado, tinha que pagar impostos absurdos ao governo, comprava mercadorias adulteradas na cidade e ainda, frequentemente, era humilhado pelas autoridades policiais, que no livro são personificadas pelo soldado amarelo. As mazelas da seca são substituídas pelos distúrbios pútridos da exploração; mesmo no ambiente longínquo do semiárido brasileiro as forças nefandas do capital fazem-se presentes, impondo suas regras.

Graciliano ainda dedica um capítulo a cada personagem, o mais significativo, onírico, e surpreendentemente belo, é o que narra os últimos instantes de vida da simpática cadelinha Baleia. Envelhecida, adquire feridas pelo corpo e perde o pelo; Fabiano, pensando que sua fiel companheira estava doente, abatida pela cólera, decide sacrificar o animalzinho. Antes de morrer, Baleia delira sonhos inefáveis e impossíveis, imagina a casa repleta de preás, se deleita com a beleza do vazio. Neste capítulo, o escritor alagoano, com maestria, revela, pela a morte do adorável animal, a dimensão inexpugnável da vida e dos desejos humanos.

Outro aspecto singular da obra é o trabalho dedicado à linguagem. Na contracapa do livro Graciliano comenta: “A palavra não foi feita para brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para dizer.”. Eu, por exemplo, com minha mania de adjetivar qualquer substantivo, tenho muito a aprender com nosso famoso escritor. Somos, ao longo da leitura, agraciados com expressões tipicas do nordeste brasileiro, um simples dicionário não é suficiente para satisfazer o desejo daqueles que anseiam em descobrir palavras novas; aliás, um outro capítulo interessante da obra trata, exatamente, deste fenômeno. O menino mais velho, ouvindo os dizeres extraordinários da velha sinhá Terta, escuta o estranho vocábulo “inferno”; encantado com a beleza da palavra, perquiri seu pai e sua mãe na ânsia de identificar o significado desta deslumbrante expressão; quando descobre, através do zangado balbuciar gutural de sua mãe, que o inferno é apenas um lugar ruim, se decepciona. Para o menino, a doce sonoridade da palavra exigia mais.

Os personagens da trama pouco se comunicam, o vocabulário dos infelizes é escasso. Fabiano chega a refletir que se tivesse a erudição dos indivíduos letrados talvez enfrentasse seu patrão, exigindo um pagamento justo, desafiasse o soldado amarelo, para impor um merecido respeito, e, quem sabe, violasse até mesmo as leis do Estado. No entanto, se considerava um tolo, um cabra nascido pra levar na cacunda violentos açoites. Viveria e continuaria a viver uma vida simples aviltada pela exploração alheia, esta era a sina de sua estirpe, seu avó vivera assim, seu pai também, e seus filhos, provavelmente, seguiriam este pernicioso destino. Sem dominar a linguagem somos, a todo o tempo, dominados por ela.

Ah... como é bom se abstrair dos problemas internos e reencontrar a realidade, pois diante de toda a complexidade humana, das mazelas sociais, da barbárie política ou do odioso sistema econômico que sobrevive sugando vidas; o amor e todo o arcabouço de sentimentos destrutivos e sublimes que o envolve não significam nada, são apenas adereços de tolos privilegiados, contemplados pela sorte da vida digna, estável e sem problemas; burgueses inconsequentes que só enxergam o próprio umbigo. Se esquecêssemos nosso vulgar individualismo teríamos mais tempo, ideias e disposição para mudar nossa perversa e insidiosa sociedade. Chega de romantismo; o amor não vale nada, só revela nossa fraqueza de espírito; temos que ser fortes, sequiosos por liberdade e obstinados pela justiça. Combater quimeras interiores? Isto é uma traição ao coletivo, um atentado àqueles que sofrem o enxovalho da miséria, burrice das mais estúpidas, comuns aos cordeirinhos alienados, bem alimentados e entretidos pela masturbação midiática.

VIVA A REVOLUÇÃO!

Brincadeirinha, sempre quando deixamos nossos pensamentos livres para navegar em qualquer direção, a inocência juvenil brota com ávida força e vontade. Parece que clamar por mudanças sociais exige o mesmo espírito romântico daqueles indivíduos que se afogam em paixonites platonicamente motejantes, pois, mesmo havendo uma incrível dicotomia entre o sofrimento do Eu e o sofrimento do Nós, é possível observar uma imensa similitude entre o romantismo social e o romantismo amoroso. Talvez, encontramos a maturidade ao caminhar pela tênue comissura que separa estes polos diferentemente iguais.

A intensidade é para os jovens, ao envelhecer precisaremos sempre do aprazível sossego.

Avaliação: 8,0/10
FG

Comentários

  1. Li nos tempos de vestibular este livro. Foi marcante para mim. Devo repetir a leitura. Aliás, sou fã da escrita enxuta. Os textos menos floridos abrem mais espaço para a imaginação e nos levam mais facilmente ao senário descrito (para mim, é claro). O emaranhado de palavras, facilmente me distrai.

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