O amor, eis a causa de qualquer infortúnio humano; este sentimento
provoca dores insuportáveis, distúrbios desproporcionais, delírios
inconsequentes e todo tipo de angústia; quem já foi rejeitado,
certamente experimentou uma lancinante pressão no tórax, aquele
aperto no peito sufocante, intolerável. E o quê dizer da náusea, o
mal estar abdominal, a ânsia de vômito, a incapacidade de
raciocínio, os tremores, a fria exsudação e as intermináveis
lágrimas; são estes os sintomas desta doença eternamente incurável
e sem nenhum método preventivo, pois não é possível tratar uma
dor que arde sem se ver, uma ferida que dói e não se sente, ou o
monástico contentamento descontente*. Somos todos transmissores e
hospedeiros, os algozes e as vítimas, desta mazela
indescritivelmente tosca e bela. Amar sem ser amado é a maior
violação do querer humano, pois, ao ter nossa principal vontade
afetiva negada, desenvolvemos as piores anomalias mentais e os
maiores e mais insidiosos desequilíbrios psicológicos. Muitos
diriam que apenas o tempo pode amenizar esta específica agrura, no
entanto a resposta encontrada no romance de Yalom é outra.
Quando Nietzsche Chorou é
um livro que precisa ser lido; ao unir dois célebres personagens em
conversas transcendentais, o autor americano presenteia seus leitores
com uma surpreendente sessão de psicanálise. O enredo é simples, a
estória começa em Veneza na Itália; local escolhido pelo famoso
doutor Josef Breuer e sua mulher Mathilde para passar as férias. Na
bela cidade italiana a jovem e exuberante Lou Salomé, durante um
informal encontro, pede ao doutor para que ele cure os distúrbios
emocionais do ainda desconhecido filósofo Friedrich Nietzsche.
Deslumbrado e seduzido pela beleza da rapariga russa, Breuer aceita a
proposta, mesmo sabendo que seu futuro paciente não concordaria com
qualquer tratamento. Dias mais tarte, já em Viena, Nietzsche,
persuadido por alguns amigos, visita a clínica do notável doutor,
para combater sintomas físicos e não psicológicos. Lou Salomé já
havia alertado Breuer que o filósofo, apesar de suas inúmeras
ameaças suicidas, não consentiria com nenhuma ajuda emocional, pois
suas peculiares interpretações a respeito dos relacionamentos
humanos, incrustados de jogos de domínio e poder, impediria
abordagens dissolvidas do formalista, objetivo e tradicional contato
médico paciente. O doutor, então, tenta, sem sucesso, uma
melindrosa e sutil aproximação do convicto pensador; no entanto, a
cada nova estratégia, Nietzsche mostrava-se mais fechado e menos
suscetível às investigações internas.
É fundamental esclarecer que em
1882, ano em que transcorre os fatos narrados, inexistia tratamento
elaborado ou minimamente científico para as ditas doenças mentais.
O próprio doutor Breuer era um dos interessados na perscrutação
dos métodos ainda insipientes deste embrionário saber. O famoso e
verídico caso de Anna O,
pseudônimo de Bertha Pappenhein, foi importantíssimo para o
desenvolvimento da psicanálise. Breuer, através da conversa,
induzia sua paciente a recordar os motivos desencadeadores de suas
crises psíquicas; ao relembrar os fatos passados, Bertha eliminava
seus malévolos sintomas. Foi exatamente esta experiência inovadora
que motivou Lou Salomé a procurar Josef; ela achava que os
destrutivos problemas emocionais de Nietzsche poderiam ser resolvidos
pelo mesmo método.
Outro fato relevante para trama era o envolvimento destrutivamente
sentimental entre Nietzsche e Salomé; esta, ao rejeitar o filósofo
envolvendo-se com seu amigo Paul Reé, considerava-se culpada pelas
intensas crises emocionais do pensador, pois, após o esfacelamento
da amizade que envolvia os dois, Friedrich desenvolve, em suas
cartas, uma prosa pessimista e galvanizada por uma loucura de morte.
O antigo amor de Nietzsche pela bela russa transformara-se em um ódio
de apaixonado traído; eis abaixo seus pensamentos:
“- (…) Essa mulher,
essa Lou Salomé, invadiu minha mente e nela se instalou. Não
consigo desalojá-la. Não se passa nenhum dia, às vezes nenhuma
hora, sem que eu pense nela. Na maioria do tempo, odeio-a. Penso em
atacá-la, em publicamente humilhá-la. Quero vê-la rastejando aos
meus pés, implorando-me que volte para ela! Às vezes, dá-se o
contrário: desejo-a, penso em segurar a mão dela, em nossos
passeios de barco no Lago Orta, em saudarmos um nascer do sol no
Adriático juntos...”
Devido a esta conturbada relação,
o doutor Breuer, exortado por Salomé, decide omitir de Nietzsche
seus encontros com a jovem. As primeiras consultas, ainda na clínica
do médico, são frustrantes; quando as conversas obliteram em
direção a assuntos pessoais e psicológicos os papéis parecem se
inverter; o filósofo assume a postura de um profeta, entonando
frases abstratamente transcendentais. Temos o prazer e o privilégio
de acompanhar e aprender parte significativa das ideias do
inigualável pensador; muitas frases soam falsas e, ao mesmo tempo,
verdadeiras; pequenas sentenças nos fazem refletir por horas.
Nietzsche em tom imponente diz: “a esperança é o pior
dos males, porquanto prolonga os tormentos”; “expor-se a um outro
é o prelúdio da traição e a traição é angustiante”; “tudo
que não me mata me fortalece”; “todas as ações são auto
dirigidas, todo o serviço é auto serviço, todo o amor é amor
próprio”. Como ficar
indiferente a palavras tão fortes, concordar ou discordar delas é
apenas um detalhe, o que importa é a reflexão.
Outro relevante personagem da trama
é o jovem Sigmund Freud. Amigo íntimo de Josef, ajuda-o, em
colóquios empolgantes, a desvendar os mistérios do inconsciente;
sempre astuto, o inventor
da psicanálise, demonstra, com um rápido raciocínio, talento
extraordinário na interpretação dos sonhos, desejos e pensamentos
obscuros. Na segunda parte do romance, no entanto, Freud perde um
pouco a importância, mas a estória, ao aprofundar nos desejos dos
dois personagens principais, ganha força. O doutor Breuer, sem
conseguir convencer Nietzche a se internar na clínica Lauzon para um
tratamento intensivo, recorre a uma última estratégia, inverte
definitivamente os papeis, assume sua doença emocional e pede a
Friedrich para, com sua filosofia, tratá-lo, Nietzsche aceita a
proposta, os laços entre os dois se estreitam e nós, leitores,
somos oferendados com diálogos inefáveis e complexos.
Nas primeira conversas, Breuer conta seus medos, angústias, o
desespero ao observar, com o passar dos anos, seu corpo envelhecer;
relata o péssimo relacionamento matrimonial e revela o principal,
sua paixão reprimida pela antiga paciente Bertha Pappenhein. No
início, as intenções do doutor eram claras, ao se expor a
Nietzsche esperava criar um ambiente de confiança, propício para
que o filósofo finalmente confessasse seus obscuros e reprimidos
desejos. Contudo, Breuer percebe que seus problemas sentimentais eram
graves e que Friedrich ajudava-o a superá-los, em contrapartida, com
a cumplicidade intensificada entre os dois, o filósofo vai aos
poucos revelando seus segredos e distúrbios pessoais.
Em um passeio ao ar livre,
Nietzsche expõe sua ideia mais insuportavelmente pútrida e bela,
pergunta a Breuer qual seria sua reação se um demônio viesse a
terra e dissesse que ele deveria viver eternamente, em um ciclo
infindável, a mesma vida; que todas as suas escolhas teriam o peso
definitivo da imutabilidade e do prolongamento interminável; o
doutor, aturdido, fica sem palavras, desespera-se ao perceber que não
suportaria esta dolorosa pressão do absoluto e eterno, pensa, por
instantes inesgotáveis, em abandonar tudo, sua mulher, seus filhos,
seus pacientes, amigos e sua profissão. Entrementes, em casa e com a
ajuda de seu fiel companheiro Freud, submete-se a técnica do
mesmerismo, cria mentalmente, em estado hipnótico, uma realidade
paralela, tomando, em concreto, a decisão de abandonar tudo;
percebe, todavia, o valor e a felicidade de sua estável vida,
descobre que seu amor desesperado por Bertha era uma pequena
distorção de frustrações com o envelhecimento e o cotidiano, e o
pior, ao se ver sozinho no mundo, não aguenta o silêncio da
solidão. De volta ao estado normal, sente-se curado, e decide amar
suas escolhas.
Ao reencontrar Nietzsche, relata
sua experiência curativa; o filósofo se surpreende ao perceber que
Breuer havia compreendido seu conceito mais profícuo, o do amor
fati; o médico ao dizer que “a
chave para viver bem é primeiro desejar aquilo que é necessário e,
depois, amar aquilo que é desejado” esclarece
com perfeição o mais belo pensamento do filósofo tedesco.
Friedrich, absorvido pelo sucesso de sua própria concepção
teórica, implora ajuda a Breuer; pede, ao médico, o caminho da
libertação; no entanto, Josef sente-se incapaz de ajudá-lo em
definitivo, pois descobre que a cura para os problemas psicológicos
precisam ser encontradas individualmente, os papeis dos médicos
da alma seriam meramente
auxiliatório.
Nietzsche, ao ouvir os concelhos de Breuer, fica deslumbrado;
finalmente seu pensamento ganhava contornos de verdade, sua máxima,
do descobre quem tu és,
torna-se definitiva.
Nietzsche não se cura
totalmente do amor por Salomé,
mas percebe, auxiliado por Josef, que seu sofrimento tinha outras
razões, estava ligado ao isolamento e a insuportável solidão. No
final do romance o filósofo, ao confessar sua dor, sente-se
aliviado; eis o resumo de toda a ciência da psicologia:
“- É estranho, mas no
exato momento em que, pela primeira vez na minha vida, revelo minha
solidão em toda sua profundeza, em todo seu desespero..., nesse
preciso momento a solidão se desvanece! O momento em que lhe contei
que jamais fui tocado foi exatamente o momento em que me permiti pela
primeira vez ser tocado. Um momento extraordinário, como se alguma
enorme pedra de gelo interior subitamente rachasse e se
despedaçasse.”
Breuer finaliza a frase de
Nietzsche com maestria, diz: “O isolamento só existe no
isolamento. Uma vez compartilhado, ele evapora.”
Acho que o romance poderia ter um
subtítulo, Quando Nietzsche chorou e nos fez chorar...;
ler e reler o livro é
reconfortante, pois se o sofrimento e o amor são inevitáveis, é
por que nós assim os desejamos. No fim, se pudéssemos reinventar os
sentimentos humanos, tenho certeza, criaríamos uma cópia fiel do
que já vivemos. Sofrer por amor é nauseante e insuportável, porém
o quê seriamos sem estes sofrimentos? Me permito dizer, depois de
profundas e superficiais reflexões, que amar sem ser amado possui a
mesma dimensão etérea de um amor correspondido.
Avaliação: 8,5/10
FG
Obs:* cópia parcial do soneto mais famoso de Camões.
Tenho a estranha sensação que o primeiro e o último parágrafos ficaram excessivamente melosos.
UAU!!!
ResponderExcluirAdorei!!! Com certeza quero ler... Desilusão e solidão... combinam... mas passam... se não passar, tem algo errado... O ser humano é um moldável, está sempre sofrendo, sorrindo, perdendo e ganhando... A dor no peito, a angústia, a náusea, as dores abdominais, as lágrimas sem fim... descrevem corretamente o nosso desespero e sofrimento... Não consigo imaginar alguém no mundo que não entenda essas palavras.
Acho que a solidão é benéfica no primeiro momento, leva ao crescimento... depois, tudo fica tão claro... tudo passa... fica apenas uma lembrança. E como é bom saber que passou!
Muito bom seu comentário... que bom que vai ficar para sempre nas páginas da net...
Dá pra colocar um quadro agradável na primeira página?
ResponderExcluirO auto conhecimento é uma evolução. Não somos os mesmos depois que alcançamos a nossa essência! Nos tornamos mais fortes, seguros e capazes de vencer nossos bloqueios. O personagem deve ter experimentado uma verdadeira sensação de paz no fim da " terapia". Não?
ResponderExcluirCom frequência, tenho vontade de saber das pessoas próximas a mim, o que em mim as incomoda... para descobrir o que me incomoda em mim mesma ( não consegui escrever melhor)... Tenho dificuldade de me interpretar... acho que todo mundo, não?
ResponderExcluirTentarei responder os quatro comentários.
ResponderExcluirAntes de tudo, devo agradecer pelo elogio e aconselhá-la a ler o livro o mais rápido possível, vale muito a pena. A respeito do segundo comentário, acho que por enquanto manterei o quadro do Caravaggio, ele não é tão desagradável quanto você diz; quem sabe no futuro eu possa substituí-lo. Seu terceiro comentário foi quase uma cópia dos clichês motivacionais dos livros de auto-ajuda. Alcançar a nossa essência? Teremos alguma? Tanto Breuer quanto Nietzsche, ao revelarem seus medos e angústias, sentiram-se mais leves e aliviados, no entanto os problemas humanos são múltiplos e sempre reaparecem, o importante é saber conviver com as perdas e as dores, pois, assim como as conquistas e a felicidade, elas são importantíssimas ao nosso desenvolvimento (acabo de cometer o mesmo erro que você, "copiei" frases esdrúxulas dos textos motivacionais, provavelmente é inevitável, quando tentamos amenizar o pessimismo, recorrer a tal estratégia). Por fim, o seu último comentário ficou um pouco estranho (não entendi); você quis perguntar algo?, e qual foi sua pergunta?
Obrigado novamente pela consideração. Parece que ao menos uma pessoa lê meus textos, já é um começo.