Devo admitir: a música é a arte mais democrática. Necessitamos apenas dos ouvidos para se deleitar com a sonoridade sublime desenvolvida por alguns artistas que alcançaram a perfeição. Schubert, o que dizer desse magistral compositor? Ao ouvir esta canção, sinto meu corpo destruído, consumido por doces espasmos musculares; minha visão se turva diante da insuportável beleza dos acordes do violoncelo, do delicado cintilar das teclas do piano, e, sobretudo, do inefável viajar das agudas e amargas ondas sonoras de um violino propositadamente claudicante. Tudo que desejo torna-se intraduzível; choro cáusticas alegrias, vociferando oceanos lacrimosos de ironia, apenas para conquistar migalhas mesquinhas que não merecem nada além do rústico e gutural rugido epidérmico de leões marinhos.
Aceitar o tormento, mesmo rodeado da sinceridade mais essencialmente singela, corrói meus frágeis ossos; não quero a simpatia alheia; esqueçam que eu existo, pois eu já esqueci. A cada abrir de olhos, devo nascer de novo nestas tardes cavernosas. Estou morto, não quero viver. Quem sabe, ao parar no tempo, consiga encontrar os resquícios de dignidade, perdidos em meu passado de hipócrita e ingênua promiscuidade. Caminhei sobre íngremes montanhas, percorri vales sombrios, comi fungos venenosos, para no fim vomitar meus pensamentos mais insignificantes; sinto-me consumido pelo fracasso, não tenho e nem vejo futuro; espero apenas o presente, que paradoxalmente não chega nunca; estou aprisionado ao pretérito mais que imperfeito, o subjuntivo traiu a minha sorte em proposições frágeis, e o imperativo é perverso, me obriga a realizações irascíveis e animalescas. Clamo por um incêndio mental, pois a fumaça que se esvai pelos meus raros e torpes orifícios, são adereços de enganosos lamentos. Deixem-me em paz, quero me afogar em solidão; sofrer cada centímetro de minha existência. A partir de hoje abandono todos os mentirosos, farei uma greve de socialização; minha oralidade não será mais desperdiçada, falarei o necessário e nada mais.
O som não pode ser inutilmente utilizado, odeio o cantarolar verborrágico que nada diz. Falar alucinadamente, transformando o outro em objeto de ressonância egocêntrica é o nosso pior defeito. Brincamos, de reproduzir eco, com nossos interlocutores; parece que estamos diante de um abismo e quando falamos a única consequência esperada é ouvir a repetição de nossas sibilantes palavras; me recuso a conversar, me expor perante seres que não querem escutar. Todos nós somos egoístas, individualistas ao extremo; alguns possuem paciência, mas no fundo desejam, angustiosamente, sua vez de existir. Quando dizemos algo existimos, no entanto, ao aguardar a fala do outro, somos, aos olhos dele, invisíveis; eis a destruidora verdade: vivemos apenas internamente; no mundo social não passamos de rudimentares objetos.
Não tenho medo de dizer: somos seres descartáveis, servimos para situações pontuais, após cumprir nosso papel seremos, inevitavelmente, jogados no lixo; nossas relações serão sempre circunstanciais e de preferência pragmáticas. Até mesmo o "para sempre" cumpre sua função insidiosa. Somos podres, a vida é podre, o respirar é podre; nossos desejos pútridos, anseios verminosos, escolhas perversas, sentimentos contaminados, espúrios, fraudulentos, enganosos, e perorados pelo almíscar azedo, sub-reptício, do nosso réprobo interno.
Não desejo viver, tampouco espero a morte, quero apenas que meus olhos se consumam pela arte, que meus ouvidos chorem pétalas portentosas de musicalidade inebriante. Meus sentidos não foram feitos para a perfídia existencial, quero me abstrair dos anelos inconsequentes; hoje tenho novos amigos, a maioria, infelizmente, já jaz morto; mas não me importo, eles deixaram gravações sublimes de presença e aconchego.
Schubert, você vale mais que mil amores. Obrigado!
FG
Obs: Este mini texto foi produzido de forma hermética, inspirado por pensamentos que surgiam enquanto eu escutava a música. Ele não faz o menor sentido, mas mesmo concordando com cada palavra, renego frase por frase.
Dá pra perceber durante a leitura que você vai liberando suas idéias... deixando fluir o pensamento ao som da música. É só deixar a música rolar e acompanhar o seu texto. Gostei. Show!
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