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Making-of do Discurso Vazio




Recentemente, ao folhear um livrinho de história da filosofia na seção destinada ao holandês de origem portuguesa Baruch Spinoza, encontrei a melhor definição para a inteligência; para o pensador ela não é mais do que uma escrava da vontade cega. Somos seres originais porque ao contrário dos outros animais temos a capacidade de racionalizar comportamentos, atitudes ou ideias; tudo o que fazemos passa pelo crivo do nosso intelecto, quando sentimos fome comemos, no entanto, diferente dos outros organismos vivos, antes da alimentação ponderamos uma serie de informações; para processar a escolha de qual alimento deveremos consumir, os critérios são vários, podemos escolher a comida mais próxima, acessível, saudável, saborosa, calórica ou energética; o escopo é infindável. Nosso raciocínio será imprescindível na organização dos pensamentos condutores de nossas escolhas, e é neste cruzamento de ideias que a vontade se insere. Ao sentir fome temos uma vontade primária de comer, contudo, um diabético, por exemplo, terá uma vontade secundária, mais forte do que a primária, que o impede de comer determinados alimentos, este indivíduo, ainda terá uma terceira vontade, a de não ter a doença para poder comer os alimentos proibidos. Os três tipos de vontade descritos – primária, secundária e terciária – possuem uma morfologia díspar; a vontade primária está ligada a um instinto imediatista de satisfação; já na secundária o que prevalece são as observações das consequências futuras de determinado ato; por sua vez a vontade terciária é oriunda de um desejo inexpugnável, fruto de um inconsciente atormentado que com muita frequência nos direciona à ruína (chamarei esta última modalidade de vontade genuína). No exemplo dado o indivíduo diabético orientará seu pensamento através das vontades primárias e secundárias, sendo que esta será o freio daquela; o desejo de se livrar da doença pode determinar algumas escolhas prudentes - procura de tratamento médico inovador ou a busca pela depuração espiritual - e imprudentes – revolta, quebra de regras, desobediência ou o desespero – ambas são manifestações da vontade terciária, e são estas escolhas, filhas do desejo, que me interessam na abordagem deste texto.

Na minha avaliação, para Spinoza a vontade cega é o desejo obscuro, inalcançável e inatingível, e, portanto, para o filósofo, nossas escolhas mais importantes serão sempre influenciadas por esta vontade genuína. Para melhor esclarecer o conceito das diversas modalidades de vontade, darei outro exemplo do universo alimentar; um gordinho ao sentir fome (primária) deixa de comer porque está de regime, ele, por questões de saúde, precisa emagrecer (secundária), no entanto, pode existir um outro motivo que vai além das justificativas estéticas ou medicinais, estando sempre condicionada às novas conquistas de poder (terciária ou genuína). Antes de qualquer crítica às minhas explanações, devo deixar claro; ao discutir a escolha alimentar, parto do pressuposto utópico que todos os seres da espécie humana gozam de uma vida digna; reconheço, à obviedade, que para aqueles jogados ao enxovalho da miséria não faz o menor sentido analisar tamanhas bobagens. Feita a observação, continuemos.

Nossas motivações são herdeiras de objetivos inconscientes e muitas vezes espúrios; ao escolher como distração a leitura, somos motivados por diversas vontades, combater o tédio (primária), que neste caso substitui a fome no exemplo alimentar, visando ampliar nosso conhecimento de mundo (secundária), para, a partir de então, abraçar com mais intensidade o poder (genuína), seja ele na esfera intelectual, amorosa, afetiva, financeira ou social. Tentamos esconder, por vergonha, vaidade ou humildade, estes objetivos escusos, mas não podemos olvidar que são eles que nos lançam à vida, proporcionando o sucesso ou o fracasso, a felicidade ou a infelicidade. Nossas atitudes mais simplórias perpassarão pelas três modalidades de vontade, mesmo que implicitamente. Quando planejamos objetivos futuros, criamos em nosso íntimo desejos, estes, por sua vez, ficarão incrustados em um local seguro de nossa psiquê, e tudo que fizermos para corroborar na satisfação deste desejo gerará felicidade, ao contrário, quando algum comportamento se distanciar da vontade genuína, sentiremos, em níveis variáveis, tristeza. Uma pessoa normal, quando come sente prazer, aumentando seu grau de felicidade, no entanto um indivíduo que quer emagrecer sentirá tanta culpa ao comer que a satisfação gerada pelo alimento será irrelevante frente ao desespero causado pela sensação de estar descumprindo uma regra pré estabelecida; ao violar os objetivos traçados, aqueles englobados na vontade secundária, afetamos diretamente nossos desejos, seja fortalecendo seu sucesso ou solidificando seu fracasso. Nem sempre as metas lucubradas, quando atingidas, irão satisfazer nossos desejos obscuros; isto acontece porque com muita frequência desconhecemos ou fingimos desconhecer nossa vontade genuína; para os indivíduos que encaixam-se nesta situação seus planos de vida podem estar completamente desconectados aos seus desejos mais íntimos, e é natural, portanto, que a conquista das finalidades propostas causem infelicidade, pois estes objetivos alcançados ampliam a distância entre o indivíduo e sua vontade genuína. O caso clássico é do funcionário que intensifica sua carga de trabalho para aumentar seus rendimentos; ao ver seu salário dobrado ou triplicado este indivíduo pode, ao contrário do que normalmente se pensa, diminuir seus níveis de felicidade, pois sua vontade genuína poderá estar vinculada com mais vigor a outras esferas de poder, díspares daquelas condicionadas ao sucesso financeiro. Depois destas primeiras observações, dois pontos surgem em destaque, e para podermos prosseguir neste amarfalhado texto faz-se mister esclarecer as dúvidas fagocitadas por nossos estranhos conceitos. O quê é o poder, e como ele influencia em nossos desejos? A vontade genuína pode ser adaptada em conformidade aos nossos objetivos projetados no futuro? Nos próximos parágrafos tentarei responder estas duas perguntas.

Chega de mentiras, sejamos sinceros, porque agora desnudarei toda a película de falso moralismo que serve de camuflagem para as nossas ignóbeis motivações. Antes de mais nada, devo advertir que não mais respeitarei você, escroque leitor; serei violento, bárbaro, não seguirei as regras da nobreza aristocrática, nem tampouco os jogos de aparência do mundo burguês, a partir de agora sou plebeu, tenho a pele manchada pelo sol, as mão calejadas pelo trabalho e a face encanecida pelas privações existenciais; não escrevo mais com penas de ouro, uso a enxada e, ser for preciso, a foice; chega de poesia eu quero sangue, principalmente o seu, você mesmo que esta a estalar a língua em sinal de desaprovação, que lê estas palavras com olhar de desdém e expressão de enfado, você imundo, não vire pra trás, é você mesmo... olhe, nem pense em interromper a leitura; vá até o fim, pois caso contrário as imprecações que lancei a ti serão postas em prática; acredite são maldições perversas, nem o próprio medo em pessoa as suportariam. Feito o aviso irei começar meu acachapante e verdadeiro discurso, preparem-se. Finalmente descobri quem é o maior filha da puta da história da humanidade, ele é tosco, no entanto um em cada três indivíduos o veneram; vocês sabem de quem eu estou falando, Jesus Cristo o desgraçado mais idiota de todos os dementes que se tem notícia; sim, temos que reforçar a adjetivação discursiva ao descrever as formas abjetas que são tratadas como ídolos, tenho nojo do cristianismo, e se pudesse não pregaria Jesus na cruz, isto é café pequeno perto das torturas dos povos orientais; estes sim eram criativos, aliás existe uma técnica divertidíssima para matar pulhas como Cristo, é a do bambu chinês; como todos sabem esta planta, quando jovem, chega a crescer 90 centímetros em um dia, esta peculiar característica permitiu a invenção de uma morte hilária e bastante original; os orientais pregavam o ânus dos detestáveis e nefastos criminosos do império em bambus afiados, com o passar do tempo e com o progressivo desenvolvimento da planta, o abdômen dos cretinos eram perfurados; imagina só que engraçado ver os cristãos andando com bambuzinhos no pescoço ao invés de crucifixos, seria extremamente cômico. Putz já estou gargalhando só de imaginar, acho que terei cãibras na barriga; preciso mudar rápido de assunto, falar em comédia às vezes cansa. Mas antes que me esqueça devo explicar meu ódio por Jesus; há basicamente três motivos, este babaca incentivava três comportamentos anti naturais, a humildade, o altruísmo e a solidariedade; agora vocês compreendem meu ponto de vista? Espero que não.

Ufa, foi difícil escrever tantas asneiras, tive, inclusive, que abreviar meus comentários, pois se alongasse mais um pouquinho aquelas parvas frases, teria de bater minha cabeça na parede; confesso, sinto-me ligeiramente mal, com um gostinho amargo na garganta, mas foi necessário, para meus objetivos argumentativos, tamanha transgressão. Havia prometido responder duas perguntas, irei, em breve, respondê-las analisando as tolices do parágrafo anterior.

No livro “O Anticristo” Nietzsche diz que a felicidade é um sentimento gerado pela ampliação do poder, ou seja, pela quebra de uma barreira que oferecia resistência à realização de um desejo. Concordo, mas sempre quando dominamos o outro temos poder sobre ele? Acho que não, o domínio nem sempre é acompanhado do poder; quando dominamos alguém pela força ou pela violência estamos manifestando fraqueza. No filme Ata-me de Pedro Almodóvar, por exemplo, o personagem de Antônio Bandeiras, após fugir do manicômio sequestra uma atriz pornô pela qual era apaixonado, com a intenção de obrigá-la a amá-lo; é óbvio que a insana ideia do personagem encontrava grandes resistências, pois ninguém adquire sentimentos por outro na marra, no entanto, com o tempo, com o convívio forçado entre os dois e com a progressiva diminuição do domínio opressivo dele sobre ela, laços de amizade são estabelecidos; apesar do final trágico, o filme nos informa algo interessante e bastante comum na obra do diretor espanhol, o controle pela violência não é nunca definitivo, e, portanto, não será, em qualquer hipótese, considerado um poder, apenas um domínio circunstancial que pode ser desfeito em algum momento. Só haverá sujeição, pelo uso da força, no campo da matéria; posso obrigar que alguém limpe minhas roupas, lave o meu carro, escreva meus textos, contudo, no universo do pensamento, o controle, pela coação irascível, é sempre fugaz, não posso exigir que os outros gostem de mim, torçam pelo cruzeiro ou admirem William Faulkner. No início deste texto afirmei que a originalidade de nossa espécie advém da capacidade racionalizadora que possuímos, destarte, nunca uma atitude oriunda de nossa irracionalidade animal, que nos impulsiona à barbárie e a violência, poderá dominar, efetivamente, o pensamento do outro, sendo assim, não haverá acréscimo de poder com o uso da força, apenas a sua ampliação virtual.

Se fizéssemos uma análise do discurso, encontraríamos três estratégias argumentativas do convencimento, a primeira, frequente em leis, normas e regulamentos, é a coercitiva ou imperativa; a segunda, adorada pela poesia e pela arte em geral, está vinculada aos processos de sensibilização do leitor; e, por fim, temos a argumentação genuinamente racional, frequentes em textos científicos, nela há a busca da explicação definitiva através da verdade concreta. Neste texto utilizei a estratégia imperativa em alguns momentos, um exemplo foi quando exigi a continuação da leitura ameaçando vocês, caros leitores; neste mesmo parágrafo eu procurei sensibilizá-los positivamente, com as expressões “chega de mentiras” ou “sejamos sinceros” e negativamente, com os constantes insultos e com exemplos toscos que revelavam uma imoralidade perversa (será?); já a terceira modalidade argumentativa foi usada em boa parte deste texto, não obstante as inúmeras falhas e imperfeições. Não quero confundi-los, mas esta nova postagem possui uma unidade multifária ou uma emaranhada desconexão; no início falávamos sobre inteligência e a vontade, depois de algumas digressões fixamos nossas atenções à análise superficial do poder e da violência, agora tentamos esmiuçar as estratégias argumentativas do discurso, não estaremos perdidos em nosso estouvado colóquio? Sim, não e talvez, estas três palavrinhas respondem tudo. Ao utilizar o discurso coercitivo, tento dominar os leitores pela força; o poder supostamente conquistado será sempre fugaz, nunca haverá a interferência persuasiva sobre as ideias do interlocutor; o uso do imperativo, portanto, revela pobreza textual, insegurança e, sobretudo, fraqueza; a técnica da argumentação racional, ao revés, é austera e objetiva, mas muitas vezes a inconsistência discursiva, a desnaturação do texto ou o fastio causado pela metodologia exagerada podem corromper as qualidades das informações propostas, corroborando para o insucesso dialógico e para o arrefecimento das relações de poder outrora imaginados; temos por último a estratégia sensorial, nesta o autor procura mexer com os mecanismos cognitivos do interlocutor, através de estímulos emocionais, ódio, raiva, alegria, tristeza, júbilo, medo são algumas sensações diretamente provocadas por esta modalidade discursiva. Quando, utilizando a palavra, convencemos o outro racionalmente, adquirimos um poder genuíno sobre ele, no entanto, como já insistentemente explanado, as formas imperativas geram apenas um domínio contingencial; entrementes fica a dúvida: a argumentação emotiva tem a capacidade de criar poder entre o remetente e seus destinatários? Vejamos.

Ao ler uma poesia que nos deixa extasiado, sem palavras, entorpecidos pela beleza de um instante; que provoca sensações ambíguas e paradoxais, nos exortando, a cada novo impulso respiratório, a aquiescer diante de uma criação humana sublime, magistral e inefável; sentimo-nos prostrados e confortavelmente insignificantes; mas, em razão destes choques emocionais, estaríamos presos a um implícito poder externo? Sendo mais claro; a beleza, assim como a verdade, tem a capacidade de dominar o pensamento alheio? Antes de responder analisarei subjetivamente o belo, para tanto, deixo abaixo o que considero uma obra poética matizada por um espectro de cores celestiais.

Mar Intacto*

Impossível é não odiar
estas manhãs sem teto
e as valsas
que banalizam a morte.

Tudo que fácil se
dá quer negar-nos. Teme
o ludíbrio das corolas.
Na orquídea busca a orquídea
que não é apenas o fátuo
cintilar das pétalas: busca a móvel
orquídea: ela caminha em si, é
contínuo negar-se no seu fogo, seu
arder é deslizar.

Vê o céu. Mais
que azul, ele é o nosso
sucessivo morrer. Ácido
céu.
Tudo se retrai, e o teu amor
oferta um disfarce de si. Tudo
odeia se dar. Conheces a água?
ou apenas o som do que ela
finge?

Não te aconselho o amor. O amor
é fácil e triste. Não se ama
no amor, senão
o seu próximo findar.
Eis o que somos: o nosso
tédio de ser.

Despreza o mar acessível
que nas praias se entrega, e
o das galeras de susto; despreza o mar
que amas, e só assim terás
o exato inviolável
mar autêntico!

O girassol
vê com assombro
que só a sua precariedade
floresce. Mas esse
assombro é que é ele, em verdade.

Saber-se
fonte única de si
alucina.

Sublime, pois, seria
suicidar-nos:
trairmos a nossa morte
para num sol que jamais somos
nos consumirmos.

(*Poema de Ferreira Gullar retirado do livro Toda a Poesia da Editora José Olympo)

Não seria bastante ousado discursar sobre o belo? É claro que sim, por isso preciso de um suporte que proporcione aos leitores um contato com o etéreo; a poesia Mar Intacto de Ferreira Gullar, por motivos particulares, é a que melhor dialoga com meu inconsciente, através dela eu pude visualizar, mesmo utilizando um periscópio ultrapassado, pedaços de meus desejos mais recônditos e inalcançáveis; com sua ajuda consegui desnudar parte da minha vontade genuína e descobri o inevitável, venho, há muito tempo, remando em sentido contrário aos meus verdadeiros anseios; desenho objetivos espúrios que só me geram infelicidade e fracasso, e o pior, não consigo me desvincular das metas traçadas. Aos poucos percebo que a esperança é perversa, pois ela só prolonga os tormentos; portanto, não tenho dúvidas, se encontrasse uma lâmpada mágica um dos meus pedidos seria, certamente, a aniquilação deste insidioso sentimento. Sem esperança não sentiríamos mais as insuportáveis dores psicológicas, destruiríamos a angústia, nos libertaríamos das dúvidas existenciais, conquistando a alforria dos absconsos desejos humanos; seríamos, destarte, seres automatizados para lograr metas pré estabelecidas, aumentar a produtividade e concentrar, através de cálculos racionais, nossos empreendimentos em ações lucrativas; resumindo: deixaríamos, contradizendo Nietzsche, de ser demasiadamente humanos, nos transformando em máquinas, androides adaptados ao sucesso. Mas onde estaria o prazer diante desta suposta perfeição anódina? E qual o sentido da arte em uma realidade metricamente trabalhada? Gullar, por favor, cale-se, me deixe em paz, pare de me atormentar com verdades, eu quero a ilusão de uma festa kitsch, das guloseimas açucaradas, dos palhaços, das princesas, dos dias de mentira, dos falsos sorrisos e da felicidade enganosa; vá Gullar e não volte, me deixe sofrer os delírios da ingenuidade; apenas as sombras turvas de minhas vontades são suficientes, pois prefiro sofrer enganos, do que chorar tristes verdades.

Ferreira não me abandone, retorne, não suporto mais, quero companhia, estou sozinho e sofro calado; seus conselhos são belos, as lágrimas provocadas por eles me acalmam. Você está certo, o amor e fácil e triste, mas eu não consigo visitar outra praias, me sinto exilado a caminhar sobre as montanhas, observo, do alto, o horizonte, e enxergo apenas o mesmo mar, distante, muito distante. Sei que estamos sozinhos, nada irá por si só se oferecer; aceitar o inaceitável... ora, eis a dimensão do assombro.

Continuemos com as frases de efeito, eu quero amofinar vocês, caros leitores; vejamos: tudo que me escapa me fortalece; o não eleva a potencialidade do sim; o poder floresce mesmo sobre o solo árido do fracasso; o querer é apenas uma materialização do sentir. Chega de máximas irracionais, sempre quando alcanço um nível exagerado de abstração, sinto-me discursando o nada; este texto faz algum sentido? As horas passam e parece que minha cabeça explodiu dezenas de vezes, entre uma explosão e outra recolho meus miolos espalhados, mas, ao juntar todos os pedaços, percebo a falta de algumas partes, a cada minuto perco um pouco de massa encefálica; espero, contudo, que ao raiar do dia e sobre luz natural eu possa reencontrar minha inteligência escondida.

Eu havia prometido responder se a argumentação sensitiva pode produzir poder entre o falante (autor) e o ouvinte (interlocutor), a minha resposta é negativa; após os delírios e divagações, percebi que o discurso que recorre a mecanismos emotivos não se compõe de uma relação bilateral. Ao ler Ferreira Gullar ou qualquer outro poeta seremos não só os leitores, mas também os autores do que está sendo lido; toda a experiência artística é individual, a beleza, portanto, não terá o condão de dominar o outro, ela apenas dará ensejo ao autocontrole. O artista não cria um domínio sobre o seu público, ao contrário, ele, através de sua obra, dá poder aos seus interlocutores; o belo, diferente da verdade, é dado diretamente aos sentidos, ele não precisa ser explicado; quando adquire forma não é mais um instrumento de opressão (força) e nem de controle (razão), é apenas doação, oferenda. Destarte, podemos concluir que, pelo diálogo emotivo, ofertamos, aos outros, pacotes repletos de ferramentas propícias ao fortalecimento do poder interno; ao dizer eu te amo ou eu te odeio estaremos oferecendo ao interlocutor poder; quando descobrimos os sentimentos alheios, e caso estejamos diretamente envolvidos neles, ampliaremos nosso domínio interno, seja diminuindo nossa míope soberba ou arrefecendo nosso pessimismo patológico. Droga, outra explosão mental, novamente não sei o quê falo.

Mesmo diante de uma confusão cognitiva, algo me parece certo, a arte proporciona um poder constitutivo, que não serve para dominar o outro apenas para dominar a si próprio. No início de minha argumentação havia dito que a vontade genuína abriga nossos desejos mais obscuros, e que através deles sempre buscamos galgar mais poder; fazendo uma aproximação das duas conclusões deste parágrafo, fica evidente que nossos desejos nunca estarão imunes a arte. Somos impelidos, pela vontade genuína, ao domínio do outro, no entanto quanto maior o autocontrole melhor será a nossa capacidade de lograr sucesso nas conquistas alheias. Outra conclusão, elaborada anteriormente, foi que nem sempre nossos objetivos, quando aferidos, colaboram para a satisfação de nossos desejos, e o motivo destas incongruências é a incapacidade de saber ao certo o conteúdo da vontade genuína; mas, como explanado, caso esteja correto meu raciocínio, a arte aumenta o poder interno, então se reservarmos, no escopo de nossas metas, um espaço para a apreciação estética, estaremos corroborando, em maior ou menor grau, para a satisfação de alguns desejos, sendo assim, mesmo sobre um oceano de lágrimas, qualquer manifestação artística só poderá gerar alegria. Posso chorar com um filme, uma música ou com um livro, no entanto este choro é apenas circunstancial, no fundo estaremos sempre mais próximos da felicidade. Depois deste longo caminho percorrido cheio de meandros e obstáculos, sinto que as minhas recentes descobertas serviram para acalentar meu sofrimento. Não tenho me dedicado à leitura com o simples e ilegítimo propósito de ampliar meu domínio sobre o mundo, como outrora angustiosamente imaginava, meus objetivos são menos ignóbeis, quero apenas adquirir autocontrole para recrudescer minha força diante dos meus inevitáveis fracassos. Sei que não posso dominar completamente meus desejos, e que muitos deles permanecem escondidos em locais pétreos de meu subconsciente, no entanto posso diminuir minha náusea existencial, medindo com perícia as dosagens das minhas diversas vontades, sejam elas instintivas, racionais ou inconscientes.

Por fim, apenas como guisa de conclusão, devo dizer quais são minhas motivações para escrever tanta bobagem. Sinceramente não sei, este blog nasceu de uma mescla de vontades, o tédio me impulsionou a leitura compulsiva, e ao perceber que eu aprendia com a leitura, ela logo se tornou uma meta; foi da racionalização deste instinto de sobrevivência, que os textos surgiram, proporcionando a criação desta página “cibernética”. Todavia, nada existiria caso meus desejos íntimos fossem outros, tudo que eu escrevo é produto de imensa decepção; e a poesia lá de cima, certamente, pode explicar, com maior sobriedade do que qualquer outro argumento, estas motivações que pululam meu inconsciente.

Nova explosão mental, agora estou em frangalhos. Toda esta postagem é oriunda do meu desazo intelectual, nada sobrevive, tudo é apenas discurso vazio, lixo gráfico que deve ser esquecido. Confesso, se eu pudesse, ao trair minha morte, me matar e presenciar a chama, que jamais alcançarei, consumir meu corpo; encontraria um pedaço de mim que nunca fui mas que sempre desejei ser.

Agora é definitivo, estou oco.

FG

Comentários

  1. Ainda não li até o fim, antes disso, minha cabeça explodiu e ainda estou catando os pedacinhos... depois continuo...

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    1. Mas com este comentário inteligente e irônico, parece que você chegou próximo ao fim; parou por quê?

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