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O Bom Gosto Artístico, parte I




Estava pensando, refletindo sobre algo aparentemente inútil; como era possível adorar, simultaneamente, obras de comprovada relevância artísticas e outros produtos parvamente realizados com o propósito exclusivo de entreter pelo viés anticultural? Não seria uma fraqueza do espírito aceitar tolices como uma maneira de aquiescência à vulgaridade que, ao animalizar o objeto, diminui a percepção e a avaliação das formas disponibilizadas aos nossos sentidos? Em outras palavras: ao consumir a enxurrada de mercadorias pseudo culturais estaríamos assumindo nossa propensão ao mau gosto? Sinceramente, acredito que tais perguntas não devem ser respondidas, sem antes definir o que seria este suposto bom gosto artístico, e como podemos relacionar nossas diversas preferências - sejam elas culturais, afetivas, amorosas, estéticas, filosóficas, culinárias, profissionais, ou políticas – objetivando estabelecer um critério com a potencialidade de adjetivar, como bom ou ruim, gostos particulares e subjetivos.

Ao dizer que prefiro as loiras do que as morenas, estou estabelecendo uma preferência que dificilmente poderá ser negativamente avaliada, sem recorrer à avaliações parciais; quem prefere morenas dirá que possuo mau gosto, ao contrário, para os que compartilham com minha opinião capilar, meu gosto pelas loiras é reflexo de genuína apreciação estética. Então, supondo que preferências são exclusivamente subjetivas, quais os motivos de avaliá-las segundo padrões objetivos e universais? Seria possível dizer que o gosto por loiras ou morenas reflete uma sensibilidade mais ou menos apurada? Bem, a segunda pergunta, em uma análise superficial, parece absurda; no entanto, ao perscrutar além da superfície artificial que a recobre, será possível visualizar elementos escondidos e camuflados imprescindíveis a uma boa compreensão de nossas futuras reflexões. Todos nós sabemos que existe um padrão estético de beleza, e que este é formado culturalmente; somos, deste o nascimento, incutidos coercivamente por preferências já enraizadas no interior do universo social, sendo assim, instigados a pensar homogeneamente, em semelhança as gerações passadas, desenvolvemos uma sensibilidade coletiva, que não se prende a uma originalidade individual. Seria, então, o bom gosto a adaptação perfeita a este molde de preferências culturalmente imposto pela coletividade? È óbvio que não, quando nos rebelamos aos padrões, estamos abrindo fronteiras que transcendem o universo limitado das interpretações sensitivas; sendo mais claro, ao encontrar beleza em objetos alternativos ou completamente díspares aos socialmente apreciáveis, estamos manifestando um imenso senso de inteligência. Deixando de lado o plano sensível, e adentrando ao racional, poderíamos responder que a inteligência é a capacidade de resolver problemas recorrendo a raciocínios particulares, fruto de nossas próprias observações; quando utilizamos conceitos diferentes para criar uma nova ferramenta, propícia à solução de um problema prévio, estamos desenvolvendo conhecimento, utilizando a inteligência. Ser inteligente é ao mesmo tempo ser original. Feita a digressão, podemos voltar a discussão anterior; recriar preferências a partir daquelas impostas coletivamente, não é uma distorção ou uma anomalia manifestada nos indivíduos desprovidos de bom gosto, pelo contrário, é uma forma de desenvolver nossas habilidades sensitivas, comprovando ser alguém com sensibilidade apurada, ou, utilizando uma expressão imprópria, imensa inteligência artística. Sabemos que hoje o padrão de beleza ainda é o europeu, pele e olhos claros, nariz e boca fina, cabelos lisos, e que basta assistir meia hora de televisão para comprovar que ainda somos constantemente bombardeados com esta padronização estética, seja através das propagandas comerciais ou outros produtos mais populares, como as telenovelas. Se admitíssemos que os desvios de preferências são nocivos e manifestam a mais profunda insensibilidade, deveríamos reconhecer, previamente, o imenso mau gosto dos indivíduos que enxergam beleza em traços africanos ou orientais, mas, como explanado à cima, apreciar a beleza “exótica” é reflexo de uma pureza originalíssima, advinda de grande inteligência estética. Neste ponto de minhas argumentações, alguns poderiam achar que qualquer discrepância às preferências historicamente estabelecido é sinal de bom gosto, e que o encantamento com a estética padronizada e culturalmente construída reflete um insidioso acomodamento sensitivo, comum aos insensíveis com péssimas referências de gosto. Caso pensasse assim, estaria invertendo a lógica estabelecida; e este texto poderia ter uma única frase: o bom gosto é o mau gosto, e vice-versa. Não, definitivamente não! A obra de Richard Wagner, por exemplo, nasceu grandiosa e ainda guarda grande status artístico; apreciar o compositor alemão de maneira alguma reflete nossa insensibilidade, seria bisonho pensar desta forma, e é até vergonhoso esclarecer tamanha obviedade. Vincent Van Gogh, como todos sabem, não teve qualquer reconhecimento em vida, muitos motejaram de suas obras, hoje, contudo, quadros como “Os Girassóis” e “Noite Estrelada”, são monumentos do impressionismo de século XIX, admirados e estudados pelos amantes das artes plásticas. Para quem assistiu ao filme “Amadeus” de Milos Forman, a estória da destrutiva inveja do compositor Antonio Salieri por Wolfgang Amadeus Mozart, sabe que as óperas do italiano Salieri eram melhor aceitas pela aristocracia vienense do que as geniais composições do prodígio alemão, no entanto, sabendo de sua inferioridade artística, o italiano traça planos pérfidos para roubar o talento de seu adversário; no fim da vida, já isolado ao ostracismo Salieri enlouquece, enquanto Mozart é imortalizado por seu trabalho. E o que dizer da arte vanguardista de Marcel Duchamp - obras conceitualistas, sem qualquer apreço estético e que refletem a hipocrisia da sociedade contemporânea - talvez a maior referência artística moderna; revolucionou o pensamento e as formas de interpretar o ambiente sensitivo, deixando claro que a arte pode transcender o oceano da sensibilidade e ser interpretada por processos racionais; a arte, para ele, estaria além da forma, sendo superior a ela. Concordar com o artista francês é apenas uma questão de gosto ou, ao contrário, identifica uma supervalorização da ideia de verdade? Antes de responder façamos outra pergunta: o bom gosto, assim como a verdade, é absoluto, mutável com o tempo ou não existe? Se for absoluto, e acredito que não seja, este texto é ainda mais inútil do que eu imaginava, e os que se inclinam a tal pensamento, por obséquio, parem de ler. Entre as duas outras posições não tenho uma opinião formada, afinal, ao escrever tento amenizar minhas dúvidas; percorrendo caminhos matizados pela incerteza, me sinto cada vez mais perdido, e admito: não sei o que escrevo, deixo que meu fluxo hermético de pensamento me conduza a lugar algum e que lá, ante ao sossego, encontre o risco, o caos, a verdade, a beleza e a…

Mentira, não acredito no meu próprio raciocínio; entre banalidades, minto. O quê tento provar? O quê irei descobrir? Um penico, apenas um penico; que ilusão idiota. Seriam então as “grandes figuras aquelas que impõe aos outros sua ilusão particular”? “A Fonte”, seria uma ode ao mau gosto? Pra quê tantas perguntas? Pare, não escreva mais, é insuportável, insuportável! Grito, vocifero, estou enleado à forma, quebro a estrutura textual, e entre períodos razoavelmente curtos e longos lanço ao espelho sorrisos cáusticos e sinceros lamentos; preciso descansar, talvez dormir, um cochilo já seria suficiente.

Não sei por quais aleias devo retornar, se me entrego a crônica inebriada pelo elixir da loucura, ou se retomo o diapasão inicial, austero e tradicionalista; escolher, neste caso, não é uma preferência, mas uma atitude influenciada por circunstâncias contingenciais. Sem elas não somos nada, pois não pensaríamos se nada acontecesse; o tédio, o amor, a revolta, o medo, a esperança, a desilusão, a dor, a alegria, o bem-estar, a náusea, ou qualquer outra coisa que nos dê vida, irá a todo o momento influenciar em nossas escolhas, das mais fugazes às mais duradouras. Talvez este seja um ponto de inflexão do meu próprio discurso; se o gosto exige escolha e se as escolhas são influenciadas por estados de espírito, então, caso exista um critério de qualificação de preferências, deve haver também outro critério qualificador das circunstâncias que determinam nossos gostos. Se esta premissa for verdadeira, chegaríamos a estranhíssima conclusão de que - utilizando um exemplo hipotético - um indivíduo solitário, taciturno, com grandes desilusões amorosas e com uma propensão incrível ao tédio, sentindo fome, ávida ansiedade para que algo diferente aconteça, que após ler uma poesia e escutar bossa nova, possui predisposição ao bom gosto.

Mesmo distorcendo tendenciosamente um raciocínio ligeiramente válido, para chegar a conclusões duvidosas, acho que quando respeitamos um espaço de coerência podemos utilizar como estratégia argumentativa todas as ferramentas. Não quero antecipar conclusões, ainda é muito cedo para isso, mas não se enganem, não me convenci, por enquanto, que as preferências são inclassificáveis, preciso me aprofundar em minhas reflexões. O amor, por exemplo, é um sentimento totalmente particular, não há o bom ou mau gosto amoroso, ninguém diz: “tenho mau gosto, me apaixonei por uma pessoa feia, burra, vulgar, de péssimas condições financeiras, e desprezada pela família”, talvez uma terceira pessoa, que visualize o relacionamento a distância, possa chegar a estas aviltantes conclusões. Para o apaixonado(a) supostos defeitos são irrelevantes e muitas vezes transformados em exultantes qualidades, para ele(a) sua preferência amorosa sempre será sinal de bom gosto, não por que a amada ou o amado seja perfeita(o), mas sim pelo estranho encantamento por características que a princípio eram vistas como repulsivas, contudo, ao conectá-las à pessoa amada transformam-se no mais culposo prazer dos sentidos. Amar o ser perfeito seria muito chato, um engôdo monótomo, afinal, quais as surpresas de um relacionamento deste tipo. Sempre, aos olhos de quem ama, haverá bom gosto no amor, pois quando amamos admiramos no amado(a) as boas e as más qualidades com a mesma devoção e apreço. Amar é um estado de deslumbramento, pode surgir quando menos se espera, pois tudo pode ser idealizado, tudo sempre se encontrará em sua melhor disposição, nunca haverá espaço à crítica; estar ao lado do sujeito amado(a) é, no limite, estar próximo ao paraíso. Como dito, não havendo possibilidades de racionalizar o amor - nele não se cabem críticas - não é possível classificá-lo. Na arte, ao contrário, podemos identificar bons e maus elementos, sendo assim, um filme, um livro ou uma pintura podem, através de uma análise crítica impessoal, ser classificadas como boas ou ruins; no entanto, o problema abordado neste texto não é este, o que pretendemos classificar é o gosto e não a obra. Um crítico de arte em seus processos avaliativos não diz se gosta ou não de determinada obra, mas sim identifica supostos defeitos e qualidades, é uma avaliação técnica e não pessoal. Ele, o crítico, como qualquer outra pessoa possui preferências muito íntimas que, por mais que se esforce ao contrário, irá influenciá-lo em suas avaliações, todavia, por sua especialização, ele conseguirá produzir juízos mais próximos da imparcialidade, o que não impedirá que em sua esfera privada ele confesse ter adorado um best-seller de parvas qualidades artísticas. Sendo o gosto por obras de arte algo completamente subjetivo, deveríamos, à semelhança das preferências amorosas, considerá-lo inclassificável? Acho que não, pois ao contrário do amor, nossa apreciação artística não estará isenta de crítica. Não poderei dizer que você ama a pessoa errada – não escolhemos no amor, mas posso afirmar que você gosta da obra errada – neste caso houve escolha, mesmo que circunstancialmente afetada. Portanto, deve haver um critério que possa nos predizer se temos ou não bom gosto artístico.

 Ao analisar as preferências amorosas, descobrimos que o ser amado, como qualquer outro, possui defeitos e qualidades; o indivíduo que ama não fecha os olhos aos defeitos de seu amor, ao invés, passa a apreciá-los de forma tão apaixonada quanto aprecia as qualidades. Como, dentro do universo inebriado e espectral das relações amorosas, sempre haverá bom gosto, pois boas e más qualidades disputariam, em igualdade de forças, o enlevo de quem ama, da mesma forma, em uma analogia, o bom gosto artístico é dado àqueles que mesclam entre o rol de suas preferências obras de relevante valor e outros produtos de duvidosa qualidade.

FG   

Comentários

  1. Sensacional Felipe, o texto traz traços seus bem característicos da sua personalidade! Parabéns!

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  2. PRA MIM UM PENICO VAI SER SEMPRE UM PENICO. AGORA, UM PENICO BONITO NEM SEMPRE É UM PENICO BONITO. A FORMA NÃO É IMPORTANTE, O QUE IMPORTA É A UTILIDADE. NÃO SE DEVE JULGAR SE ALGUEM USA COMO PRATO OU COMO VASO, OU AINDA COMO OBRA DE ARTE

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    Respostas
    1. Você por aqui? Novidade.
      Ainda não tinha pensado sobre a utilidade da obra de arte, talvez este seja um caminho a ser seguido, caso eu escreva a terceira parte deste infindável assunto. Confesso, um penico nunca será genuinamente artístico, ele pode sensibilizar pela provocação, mas apenas se estiver inserido dentro de um contexto político ou social específico, e isto, em minha humilde opinião, é insuficiente para caracterizá-lo como arte.
      Valeu Bernardo pelo comentário inesperado.

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