Este, se não falha minha memória, é o primeiro livro de
literatura iídiche que me deparei. Uma rápida pequisa na Wikipédia
e descubro que o estranho idioma é falado, principalmente, por
judeus ortodoxos da Europa Oriental; consiste em uma mistura do
alemão com o semita e dialetos eslavos, sendo escrito da direita para
a esquerda com caracteres hebraicos. Mesmo utilizando uma língua tão
peculiar, o autor Isaac B. Singer teve a honra de ser laureado com o
prêmio nobel de literatura no ano de 1978; natural da Polônia
emigrou, ainda na década de trinta, para os Estados Unidos,
publicando, neste país, a maior parte de sua obra. Mesmo não tendo
vivido os horrores do holocausto, o martírio de seu povo marcou
profundamente sua escrita; no próprio prefácio de “Inimigos: uma
História de Amor” Singer comenta: “Embora eu não tenha tido o
privilégio de passar pelo holocausto de Hitler, vivi durante anos em
Nova York com os refugiados dessa provação”. É com este cáustico
humor que as páginas desta obra em comento são grafadas, todos os
quatro personagens centrais da trama vivenciaram intensamente os
horrores da guerra.
O romance conta a estória de Herman Broder, judeu refugiado nos
Estados Unidos, que, mesmo casado com Yadwiga, mantém relações
extraconjugais com Masha. Esta, assim como o amante, emigrou para o
país americano após anos de sofrimento nos campos de concentração
alemães e, posteriormente, russos; é casada com Leon Tortshiner,
embora viva separada dele; cuida de sua sorumbática mãe, Shifrah
Puah; e trabalha em uma modesta lanchonete do Bronx. Fumante
compulsiva e admirada por todos os homens, Masha desenvolve uma
fixação doentia por Herman, passando, no transcorrer da trama, a
exigir que o amante se separe da mulher para oficializar sua união
com ela. Yadwiga, esposa do protagonista, era uma camponesa cristã
da Polônia que trabalhava, antes da guerra, como criada na casa da
família Broder; de personalidade extremamente servil e com déficits
educacionais (mal falava o polonês), não cobrava, de seu marido, as
supostas responsabilidades matrimoniais. Durante as perseguições
nazistas, a simplória cristã ajuda Herman, escondendo-o no paiol de
sua propriedade durante três anos; esta atitude humanista é
recompensada, e após as turbulências do período conflituoso,
Herman casa-se com Yadwiga e muda, junto à mulher, para Nova York.
Nosso herói e protagonista trabalhava para o rabino Rabi Lampert
como ghost writer: escrevia sobre encomenda, assinando com o nome de
seu contratante. Morava no Brooklyn com a esposa, mas em todas as
semanas simulava falsas viagens de negócio para passar alguns dias
no Bronx com a amante. Levando, com poucos atritos, esta vida dupla,
não esperava o ressurgimento das cinzas de sua, até então,
falecida mulher Tamara. Esta que por milagre fora salva da guerra,
chega a Nova York com a intenção de recomeçar sua vida; ao
descobrir as atuais condições conjugais de seu antigo marido, tenta
o divórcio, no entanto, seu antigo amor por Herman ainda perdurava.
É neste torvelinho de imbricadas relações amorosas que a trama,
envolvendo os quatro personagens, se desenvolve. Sem possibilidades
de escolher entre as mulheres, pois nutria sentimentos igualmente
fortes pelas três - inobstante as imensas diferenças e
peculiaridades emotivas de cada um deles - Herman prolonga, seja
através de mentiras ou meias verdades, a situação insustentável.
Para cada mulher o protagonista sentia uma espécie diversa de amor.
Por Masha seu sentimento era mais visceral, uma obsessão ligada ao
desejo; fazia todas as vontades da amante, era impossível
desobedecê-la. Já em relação a Yadwiga o quê pulsava mais forte
era gratidão, não só pelos sacrifícios do período da guerra, mas
também pelo devoto servilismo da humilde camponesa. Por fim, seu
sentimento por Tamara era matizado por uma película de nostalgia: a
lembrança da juventude, de suas raízes e do seu passado menos
tumultuado e, possivelmente, mais promissor. Sem saber o caminho a
trilhar e qual das mulheres escolher, Herman decide não decidir,
esperando que o acaso encontrasse a solução menos iníqua.
Por todo o romance paira uma atmosfera pessimista em relação ao
futuro; para Singer a derrocada do nazismo não seria um prenúncio
aos novos tempos, menos sombrios e mais coloridos; pelo contrário, a
barbárie da guerra era um pequeno anúncio, o capítulo inicial de
uma nova história em que todos seriam os ofensores e, ao mesmo
tempo, os ofendidos. Já no final do livro encontramos esta
significativa passagem:
“Ficou lá sentado, tentando
recapitular as coisas. No paiol, tivera a ilusão de que alguma
mudança básica ocorreria no mundo, mas nada havia mudado. A mesma
politicagem, as mesmas frases, as mesmas promessas falsas.
Professores continuavam escrevendo livros sobre a ideologia do
assassinato, a sociologia da tortura, a filosofia do estupro, a
psicologia do terror. Inventores criavam novas armas mortíferas. O
debate sobre a cultura e justiça era ainda mais revoltante do que a
barbárie e a injustiça. 'Estou atolado no excremento; eu mesmo sou
excremento. Não há saída', murmurou Herman.”
Esta
obra aborda o amor de forma completamente desidealizada; ao discutir
este sentimento por um viés bastante contemporâneo, retratando um
relacionamento triplo, Singer parece tentar dissolver qualquer ranço
ou resquício de lirismo romântico oriundo do tema. Para ele o amor
não é mais nobre do que outras emoções, ele, inclusive, pode se
originar dentro de caminhos ignóbeis, sendo, portanto, impulsionado
pela mesma irracionalidade asquerosa das espúrias motivações
humanas. Ao ler o romance, a sensação que fica é que para nós não
há salvação, porque no fim, independente das nossas escolhas,
nosso destino será sempre o mesmo: a dor e o fracasso.
Avaliação: 7,0/10
FG
Uma visão de espectador... o personagem não é atuante, é mero objeto que se deixa levar pelos acontecimentos... No fim, não tem identidade... não tem sentido... Não tem vontade, não sabe o que é bom, o que é ruim... A praticidade de suas decisões (vou me casar porque devo gratidão - e pronto!)gera superficialidade nas relações humanas e com o mundo. Sem sonhos, sem vontades, sem tomar decisões, sem emoções e rupturas... Sem desfazer o mal feito, errar, cair, se levantar, dar a volta por cima; desiludir e ser desiludido.... Sem motivação não teve conquistas, não viveu o outro lado... ( Tem alguma coisa a ver?)
ResponderExcluirPara responder sua pergunta, acho que devo reler o romance. Pelo que eu me lembro, Broder realmente tinha dificuldades com escolhas definitivas, era acomodado, quase um covarde; por isso é presumível que seu sumiço, ao final da estória (na resenha ocultei este detalhe), revele sua escolha pelo recomeço, ele não suportava mais o passado, precisava se afastar dos problemas. Como durante toda a vida, o protagonista da trama prefere a solução mais cômoda, a fuga. Acho que no fundo todos nós temos uma ligeira propensão a servir como objeto passivo, esperando que os problemas resolvam-se por si só; lutar pelas coisas é sempre mais difícil, principalmente se soubermos que o fracasso é inevitável.
ExcluirNice, seus comentários estão cada vez melhores, e obrigado pelo tempo perdido.