“Morte em Veneza” é simplesmente a melhor obra literária que
li; a qualidade do texto, com frases intermináveis, estruturadas com
um formalismo precioso; as reflexões epistemológicas a respeito da
arte e do fenômeno estético; a paixão construída pela idealização
da beleza; o ritmo narrativo suave que acompanha a própria calmaria
da vida litorânea; o olhar condutor, inefável e exuberante, que nos
coloca no centro da trama; são alguns elementos que transformaram a
aura desta novela em algo próximo ao divino. As passagens destacadas
abaixo demonstram a veracidade desta observação
“E a forma não tem ela mesma duas faces? Não é
simultaneamente moral e imoral – moral, enquanto resultado e
expressão da disciplina, mas imoral e até amoral na medida em que,
por sua própria natureza, pressupõe uma indiferença moral, sim, e
está essencialmente dedicada a vergar a moralidade, submetendo-a a
seu cetro orgulhoso e absoluto?”
“Deste modo pensava Aschenbach em seu êxtase, essa era a
dimensão do seu sentir. E o marulho das ondas e o brilho do sol
teceram a seus olhos uma imagem sedutora. Era o velho plátano
próximo aos muros de Atenas – aquela sombra sagrada, perfumada
pelo aroma das flores de agnocasto, adornada de estátuas e oblações
em honra das ninfas e de Aqueloo. O riacho muito límpido cascateava
no cascalho liso aos pés da árvore de ramos estendidos; as cigarras
ciciavam. Mas na relva em suave declive, onde se podia estar deitado
mantendo a cabeça mais alta, dois homens estavam estendidos,
protegidos do calor do dia: um velho e um jovem; um feio, outro belo;
a sabedoria junto à graça. E entre amabilidades e gracejos
espirituosamente sedutores, Sócrates instruía Fedro sobre o desejo
e a virtude. Falava-lhe da cálida emoção que surpreende o homem
sensível quando seus olhos se deparam com um símbolo de beleza
eterna; falava-lhe dos desejos lúbricos do ímpio e mau, que não
pode conceber a beleza ao ver sua imagem e que é incapaz de
veneração; falava do temor sagrado que assalta um espírito nobre
quando lhe aparece um corpo divino, um corpo perfeito, de como então
ele estremece e fica fora de si, mal se atrevendo a olhar, venerando
aquele que possui a beleza, dispondo mesmo a oferecer-lhe sacrifícios
como a uma estátua divina, se não temesse que o tomasse por louco.
Pois a beleza, meu caro Fedro, e apenas ela, é simultaneamente
visível e enlevadora. Ela é – nota bem – a única forma ideal
que percebemos por meio dos sentidos e que nossos sentidos podem
suportar. Ou o que seria de nós se acaso o Divino, a Razão, a
Virtude e a Verdade dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não
iríamos sucumbir consumidos pela chama do amor, qual Sêmele outrora
diante de Zeus? Assim, a beleza é o caminho que conduz ao espírito
o homem sensível – apenas um caminho, um meio apenas, pequeno
Fedro... E então aquele astuto sedutor expôs o mais sutil, ou seja,
que o amante é mais divino do que o amado, pois o deus está
presente no primeiro mas não no outro – talvez o pensamento mais
terno e irônico que jamais foi concebido, fonte de toda malícia e
da mais secreta volúpia do desejo.”
Eu poderia ficar horas
selecionando trechos magistrais desta milagrosa obra. Sim, as
palavras são tão belas que fazem o mais cético dos homens
acreditar, ao menos por alguns instantes, em algo que transcenda
nossa materialidade anódina. Foi a primeira experiência
drasticamente física que tive com a leitura; meus olhos, em muitos
momentos, ficaram marejados, tive suaves espasmos musculares, minha
vista muitas vezes ficou embaçada, forçando-me a interrompe a
leitura; tudo isso foi provocado apenas pela absorção das palavras
– não estava doente. Eis a magia da arte, o grande remédio para
suportar a vida. O curioso é que a alguns anos atrás, assistindo a
adaptação cinematográfica da obra, tive quase as mesmas sensações,
no entanto, com o filme meu deslumbramento foi motivado pela
belíssima música de Gustav Mahler que deu à adaptação o matiz
perfeito para traduzir o intraduzível; na época não entendia minha
admiração pelo filme, ele não dizia aparentemente nada, era só a
estória de um homem maduro que se apaixona pelos traços angelicais
de um jovenzinho polonês, fica à praia admirando a estética
perfeita do rapaz até ser fulminado pela doença – durante sua
estadia em Veneza uma epidemia de cólera assolava a cidade – e
morrer; contudo, era ouvir os primeiros acordes da Adagieto de Mahler
para ficar admiravelmente enternecido com o que assistia, e até hoje
quando ouço a música sinto-me ligeiramente consternado, sendo
difícil conter as lágrimas, princialmente se estiver sozinho.
Depois deste hiato temporal, fiquei deslumbrado ao perceber que era
possível me sensibilizar apenas com palavras. Hoje, graças a força
artística da obra, sinto-me encorajado a viver apenas em função de
prazeres contingências; não é necessário grandes objetivos,
imensas aventuras ou conquistas imensuráveis – o prazer pelo
prazer, mesmo dentro de uma esfera de tranquilidade serena, é
suficiente para suportar a vida e até mesmo desejá-la como algo
sublime. Não quero pregar o hedonismo, há outras formas de saborear
a existência, no entanto, apenas o prazer descompromissado - aquele
conquistado ao acaso, dentro de uma atmosfera de assombro – eleva e
dignifica a alma. Amar a literatura é ao mesmo tempo amar a vida. E
pergunto: existe pureza amorosa tão grande quanto esta?
Avaliação: 10/10
FG
Abaixo o link para os interessados na música de Gustav Mahler.
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