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A Morte de Iván Ilitch - Lev Tolstói




Começar afirmando a genialidade do autor russo, seria impróprio, quase redundante, tendo em vista a obviedade que ultrapassa a mera atmosfera dos clichês - marcantes nos comentários críticos de pseudo-resenhistas. Os defeitos linguísticos de um texto que afirma ser Tolstói um gênio são os mesmo que dizem que o vermelho é vermelho. Essa tautologia, recurso sincero daqueles que se setem intimidados com a grandiloquência da obra do Artista, apesar de empobrecer as observações, é válida pois separa, em esferas existenciais díspares, o gênio dos leitores contemplados pela genialidade. De início, feita a advertência, coloco estas tímidas palavras dentro do coletor de lixo reciclável, esperando que os efeitos nocivos da poluição textual deste comentário sejam, devidamente, apaziguados.

“A Morte de Ivan Ilitch” trata-se não só da morte como destino inexorável do ser humano, ou da angústia gerada pelo conhecimento da finitude da vida, mas também, e sobretudo, da instrumentalização do outro, que é visto apenas como um objeto que servirá de ponte para conquistas individuais dentro de uma sociedade fortemente marcada pelas aparências. Se o medo provocado pela proximidade da morte é característica exclusiva da espécie humana, pois somente nós somos capazes de racionalizar e entender, de forma ainda insipiente, as particularidades da existência; a necessidade de descaracterizar a humanidade dos indivíduos, coisificando pessoas para melhor se adequar ao langor ultra racionalista da modernidade, pelos mesmos motivos também é apanágio de nossa espécie. O uso exacerbado de construções racionais pautadas na projeção de consequências a partir de causas pré fabricadas ou dadas ao acaso,vem sendo a estratégia dos indivíduos adaptados a essa nova realidade.

A novela é o retrato preciso de uma época; com a evolução das ciências e com as conquistas tecnicistas do século XIX, a mentalidade social é forçosamente modificada; não há mais possibilidade de se conviver com o místico, e a dúvida, quando existe, macera o pensamento em doses pestilentas de angústia. São novos tempos; Nietzsche anuncia a “morte” de Deus, pois com as novas descobertas científicas os mistérios da vida são aos poucos desvendados; quando, outrora, recorria-se aos céus para livra-se de moléstias insolúveis, não se imaginava que os segredos das curas seriam desvendados através da razão. Com a finitude do místico, o convívio com as dúvidas e as incertezas torna-se insuportável, e a morte, a partir de então, perde sua dignidade. Sem explicações plausíveis para uma realidade “extra corporal”, o fim da vida significa apenas o fim... e nada mais. O relacionamento interpessoal, seguindo esta mesma lógica racionalista, perde sua dimensão humana; o outro, quando analisado objetivamente, passa a ser compreendido da mesma forma que a digestão alimentar ou os sistemas motores, ou seja, a subjetividade psicológica, que nos diferencia com seres únicos, é deixada de lado em prol de um entendimento prático eficaz para um bom desempenho social.

Liev Tolstói deixa claro que a infelicidade da existência de Ivan Ilitch foi intencionalmente construída pelo próprio personagem. Planejando cada conquista no plano financeiro ou social, ao visualizar todos os degraus que o separavam de seus objetivos vindouros, Ivan abdica dos prazeres genuinamente humanos; casa-se por conveniência, desempenha seu papel burocrático no ministério da justiça, relaciona-se apenas com a sociedade de “escol” (cortando vínculos com os parentes empobrecidos). Movido apenas pela ambição e pela vaidade, encontrava sossego e tranquilidade somente nos jogos de baralho, não obstante as regras e circunstância que deveriam ser observadas para não transformar as partidas em engôdos desagradáveis. Acostumado à monotonia da vida, finge um bom relacionamento familiar, mesmo sentindo imenso desprezo pela esposa e nenhum orgulho da filha mais velha. A praticidade desta estruturação mentirosa de seu cotidiano doméstico supera as possíveis queixas e amarguras oriundas de sua suposta infelicidade. Mas eis que surge a doença, a dor e a possibilidade da morte o faz refletir.

Já no fim da moléstia e sem grandes expectativas de melhora, Ivan Ilitch rememora seu passado, percebendo que, com exceção da infância, nada o que viveu valeu a pena. Quanto mais progredia em idade menos prazeroso ou recompensador tornavam-se seus anos; não tinha boas lembranças, e com a doença, seria apenas um fardo inconveniente jogado aos cuidados de seus familiares. Mas se a morte era o fim como iria suportá-la sem os prazeres de lembranças passadas e nem expectativas com uma nova existência futura? Junto com a dor física surge a angústia existencial; Ivan Ilitch, protótipo do indivíduo moderno, não poderia mais conviver com a finitude; a morte, etapa natural de qualquer organismo vivo, é desanexada da vida. Para quem vai morrer, o desespero; para os que são obrigados a conviver com os moribundos, uma nova prática: esconder o doente para que a morbidez desta condição não seja vista. Ao isolar a morte da vida, a lógica racionalista da modernidade assume seu viés mais ignóbil.

As qualidades desta novela de Tolstói ultrapassam os méritos literários, consegue sintetizar toda uma época. Seu pequeno número de páginas, que podem ser lidas em pouco mais de uma hora, é inversamente proporcional à sua importância artística; então, aos que não leram, apenas um conselho, por favor leiam já!                             

Avaliação: 9,5/10
FG

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