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Mostrando postagens de julho, 2018

Projeto. VI

Claro que a mulher sabia muito sobre ele. Os escritos em alemão, toda a cena pitoresca, os olhares. Eles já haviam se encontrado antes, era óbvio. Provavelmente o seguia, investigava cada passo. Com os dedos na maçaneta, Beto estava há segundos de aliviar a indecisão. Ela estaria do outro lado com todas as respostas. Iria oferecer ajuda. Aquele rosto era a antítese da perfídia. Porém, a aparência é amorfa, não nos diz nada sobre o bem ou sobre o mal. O bom, o belo e o justo não caminham de mãos dadas. A maior beleza preserva segredos intransponíveis, e seduz a astúcia ao ato mais cretino. Não, tudo isso era bobagem, deveria dar vazão ao impulso, esquecer os pensamentos, ignorar a memória, o vislumbre. Viver cada sequência temporal liberto da experiência, sem coragem ou covardia, sem elucubrações; apenas viver o orgânico, a matéria, o corpo físico; abrir a maçaneta e agir em função dos olhos, jamais do intelecto. Mas como enganar a própria fisiologia? As reflexões não apartam escol

Projeto. V

Saiu do prostíbulo aos tropeções. A poucos metros do local, imensa tela exibia a face jovem de Hernandes. Uma voz, ao redor da imagem, dizia: "Terrorista morto! Vitória!" Beto percebeu que a fotografia destoava bastante da aparência atual do irmão. Ninguém, a não ser ele, conseguiria dizer que eram a mesma pessoa. Aquela cena aguçou sua curiosidade. O que encontraria no envelope? Precisava entender. Era óbvio que Hernandes não retornara sem propósito, ele tinha um plano. Desde cedo os sonhos revolucionários, a paixão pela política, a irracionalidade inconformista eram adágios que seguiam seus passos. Anos atrás fracassara, por sorte não morreu; agora estava de volta, mas o mundo era outro, e o fracasso seria ainda mais retumbante. As pessoas não eram mais as mesmas, e ninguém entenderia palavras tão fora de moda como igualdade, liberdade, justiça. E Hernandes, será que preservava os antigos ideais? Aquele encontro ligeiro não fora conclusivo. Toda aquela conversa sobre os li

Projeto. IV

"Parece que estas pastilhas foram desenvolvidas para solucionar a escassez de alimentos. Mas são produtos que interferem na cognição, atrapalham a formação da linguagem; é perfeito para impedir o processamento crítico de informações. Consciente ou não, o governo encontrou uma ótima forma de cercear o pensamento. Aparentemente a solução para domesticar a rebeldia, apaziguar os ânimos fugiu do controle, e a longo prazo afetará a todos." "Aonde quer chegar?" "Estou apenas refletindo. Olha bem Beto, a linguagem serve para interpretarmos a realidade, é uma ferramenta que conecta o sujeito ao mundo externo. Imagine um homem com a missão de cavar um buraco. Se ele possui apenas as mãos seu trabalho será árduo, e dificilmente conseguirá revolver grande quantidade de terra. Irá se limitar à feitura de buracos pouco profundos. As dimensões possíveis seriam rasas. Ele se limitaria ao praticável, com o tempo sequer conceberia a ideia do grande buraco. Suponha que este

Projeto. III

O prostíbulo do setor 43 era um depósito de escória humana. Dava pra sentir o cheiro ocre, verminoso a metros de distância. Putas de todas as idades e silhuetas pululavam o local; beberrões se amontoavam incumbidos de detonar os parcos rendimentos de dias não trabalhados; funcionários se confundiam com clientes; e o som de vozes, berros e gemidos compunham imensa escatologia. Hernandes sentiu ligeiro mal estar dentro daquela Sodoma. Para um governo que pretendia exterminar a luxúria e a falta de valores, o setor 43, e, mais especificamente, o prostíbulo, deveria ser o fundo do esgoto humano, o aterro sanitário das cândidas almas que oravam pelas virtudes de um novo mundo. As mulheres usavam tinta branca na cara, cabelos das mais diversas cores, e vestimentas que acentuavam as curvas do corpo. O linguajar era sofrível, poucos eram capazes de terminar frases ou emitir pensamentos longos. Era um festival de caretas e sorrisos, donde o mais doce esgar se emitia aos arrotos. Nenhum hom

Ivan Karamázov

Achei um papelzinho com anotações de páginas magistrais dos "Irmão Karamázov", na época que anotei estava lendo o livro, isso provavelmente foi a cinco ou seis anos atrás. Além das páginas reproduzi neste mesmo papelzinho duas frases de Ivan, o personagem mais misterioso e genial de toda obra. Agora divulgo este pequeno achado: "(...) quanto mais somos tolos, mais vamos diretamente ao coração da matéria. Quanto mais tolo, mais claro. A tolice é concisa e sem armadilhas, enquanto a inteligência dá muitas voltas e nunca chega ao ponto certo. A inteligência é desleal; a tolice é honesta e vai direto ao assunto. Levei minhas palavras diretamente ao meu desespero, e quanto mais falo de forma tola, mais me explico" "Para que seja possível amar um homem, é preciso que ele se esconda; quando mostra a sua face, o amor desaparece." Quando Ivan abria a boca, Dostoiévski chegava próximo à perfeição. FG 

Projeto. II

Beto acordara cedo pela manhã. Estava com o semblante péssimo, olheiras salientes, uma ligeira calvície disfarçada pelo cabelo grande, além da barba desgrenhada que parecia ter vida própria.  A ressaca e a enxaqueca fremiam com intensidade. Procurou as pastilhas, aliviou o incômodo. A quase um ano morando naquele muquifo, desempregado, ocioso; somente uma grande transformação o colocaria nos eixos. Ou fugia da gaiola urbana e iria viver no campo, longe daqueles odores tonitruantes; ou se recompunha para voltar à vida confortável de agrados e hipocrisias. Ainda sonolento, catatônico; olhou no espelho e resolveu recompor o visual. Se barbeou, deixou o cabelo bem curto e, após longo banho quente - luxo que se permitia em ocasiões especialíssimas -, pegou o quite de maquiagens e se pintou. Ficou idêntico aos jovens urbanos. Vestiu seu uniforme mais modernoso e deixou o apartamento. Foi para o setor 16, bairro de belos jardins e cheio de velhas solteironas. Rejuvelhecido dez an

Projeto. I

Capítulo I O sol se despedia quando Hernandes chegou a cidade. Três dias de caminhada ininterrupta, comendo apenas migalhas de pão e racionando água, deixou o rosto ainda mais encanecido. Tudo estava diferente, muros gigantescos e intransponíveis circundavam toda a periferia urbana, a vigilância era excessiva. Em cada portão de entrada - centenas espalhados naquela circular quilométrica de aço, cimento e brilho - ao menos dez soldados ficavam a postos, conferindo a documentação daqueles que entravam e saiam. Eram rigorosos e seguiam ao pé da letra todas as orientações normativas. Qualquer deslize impedia o regresso a cidade, e muitos eram proibidos de sair. Uma multa não paga, processos em andamento ou a mera recomendação administrativa suspendia parcialmente o direito de ir e vir. O acesso a informações era restrito, somente os marajás dos mais altos cargos políticos e seus funcionários de confiança tinham livre tráfego aos infindáveis códigos que protegiam o sistema operacional.

Cometa

Certas coisas acontecem e são esquecidas; outras persistem. De tudo a minha volta, percebo que a maior parte me ultrapassa, outras, à semelhança de um cometa, passam e desaparecem. Cometi certas falácias, deixei óbvio o que era certo; mas no fundo minha incapacidade de expressão é só um sintoma, uma moldura. Por trás de toda a terra arrasada, faço-me poeta; um poeta anunciador, um poeta do desprezo, um poeta que não entende os próprios versos. A cada novo pensamento, ou um olhar que fulmina, procuro escrever o que me atinge em cheio. Como sou alvo fácil, qualquer silhueta que se anuncie aos meus sentidos capturam meu maior fracasso. Quando me despeço não deixo palavras de adeus, isso seria um crime; cantar e sorrir sobre a face de despedida. Então procuro ser breve, breve como um cometa; e exorto todos a passarem de chofre sobre minha avenida interior. Cometas são todos aqueles que valeram à pena e passaram; alguns foram guardados na memória, outros viraram sensação. Cometas explo

Aventuras de Ravi - XXXI

Colère, antes de ir ao Povo do Maracujá, decidiu passar em casa. Precisava de alguns mantimentos extras, uma sopa de fungos, um guizado de larvas frescas e uma salada de cascas de árvore seriam suficientes; porém, mais do que qualquer iguaria, ansiava pelo machado. Aquelas horas longe do instrumento de estimação estavam deixando-o louco. A lâmina afiada e o cabo comprido trariam conforto e proteção contra criaturas suspeitas. De volta ao tapete e ao lado do menino que parecia dormir um sono intranquilo, pensou sobre tudo o que acontecia. No dia anterior estava na floresta colhendo e semeando plantas e sementes saborosas para ele e seus irmãos, agora teria de entrar no território desconhecido de um povo exótico. Eles poderiam ser perigosos, traiçoeiros; se não fosse a lealdade e afeto que nutria por Giallo e Bleu, certamente não se aventuraria nesta tarefa tão imprudente; afinal, Ravi era um qualquer, e como tal não merecia esforço algum para ser salvo. O caminho percorrido era

Espírito Jovem

Quem seriam os jovens? Que espírito é esse? Quando olho pra vida, com olhar pragmático; sempre enxergo na juventude um momento de hiato, um descontínuo. A vida poderia ser descrita em termos de duração: nascimento, desabrochar, morte. No desabrochar, no desenvolvimento, descobrimos o eu, e este eu se coloca, se insere na história; ele é sempre menor que o mundo, sempre sucumbe a realidade, sempre se retrai e se constrange; a força magnética da vida perpassa cada um de nós numa espécie de circular da servidão. Nascemos com apenas um propósito, o propósito de servir à continuidade do eterno, uma mesma substância que não se relaciona com o tempo. As dimensões se referem às partículas, às unidades que compõem o todo, mas este não obedece qualquer dimensão, para ele o vocabulário escapa. Na vida, como única substância, não existe tempo ou espaço; e sem estas variantes seria ilusório pensarmos em termos de liberdade. Não há liberdade, apenas servidão; e cada um de nós, como partícula des

Algumas Palavras

Neste momento de pausa, vazio; já não sei quais rumos tomar. A juventude me escape pelos olhos. Minha meta de artista fracassa, meu semblante se alegra. Alegria tola, de quem nada fez. As mulheres passam pelo meu túmulo. Todas elas já não sabem chorar. Amigos carrego na alma, e cada um deles é um pedacinho de memória recriada em absurdos. Sozinho em meu sepulcro não sinto, apenas debocho. Debocho daquilo que não sou, daquilo que nunca serei. Parcimonioso, espero um momento de iluminação. Se ele não vier, paciência; a pecha de inquilino de uma vida que sempre me aprisiona é algo que preciso suportar. Em abandono, não me exaspero, não reclamo qualquer incômodo; absorvo até mesmo o menor prazer, o mais vulgar, o que não existe; somente para dizer a todos que caminhei por um mundo invisível, prosaico, sem qualidades, mesquinho. Nesta caminhada tirei algumas lições. Se aprendi com alguma delas, ainda não sei; o que posso dizer não reverbera, está enclausurado sobre as paredes da solidão. E